* Luís Buñuel
Em seu livro Meu último suspiro, escrito no início da década de 1980, o cineasta Luís Buñuel reserva um capítulo à guerra civil espanhola. É interessante notar que, enquanto muitos artistas e intelectuais renegavam suas posições políticas, pouco antes de morrer, em plena década de 80 – quando o movimento comunista já se encontrava na defensiva (já não estava “na moda”), Buñuel dá um testemunho sincero sobre os acontecimentos que vivenciou cerca de 45 anos antes. Ele esclarece: “Não pretendo escrever por minha vez a história do grande dilaceramento que atingiu a Espanha. Não sou um historiador e não estou certo de ser imparcial. Só quero tentar contar o que vi, o que recordo”. Do livro, que vale uma leitura completa, destacamos alguns trechos em que Buñuel, com sua “simpatia teórica pela anarquia”, relata suas impressões sobre a ação dos anarquistas, comunistas e trotskistas naqueles momentos decisivos.
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A Guerra da Espanha
1936-1939"No mês de julho de 1936, Franco desembarcou à frente das tropas marroquinas com a intenção firme de acabar com a república e restabelecer a "ordem" na Espanha.
Minha mulher e meu filho tinham regressado a Paris um mês antes. Eu estava sozinho em Madri. Uma manhã, bem cedo, fui acordado por uma explosão, seguida de muitas outras. Um avião republicano bombardeava o quartel de la Montaña, e ouvi também alguns tiros de canhão.
Nesse quartel de Madri, como em todos os outros quartéis da Espanha, as tropas estavam de prontidão. No entanto, um grupo de falangistas se refugiara nele e havia já alguns dias que partiam tiros do quartel, atingindo os transeuntes. Seções operárias já armadas, apoiadas pelos guardas de assalto republicanos – força de intervenção moderna fundada por Azaña –, atacaram o quartel na manhã de 8 de julho. Às dez horas tudo estava terminado. Os oficiais rebeldes e os membros da Falange foram todos fuzilados. A guerra acabava de começar.
Para mim era um pouco difícil me dar conta da realidade disso. De minha sacada, ouvindo ao longe o barulho da metralha, via passar na rua, debaixo de mim, um canhão Schneider puxado por dois ou três operários e – o que me pareceu assustador – dois gitanos e uma gitana [N.E.]. A revolução violenta que sentíamos preparar-se há alguns anos, e que pessoalmente eu tanto desejara, passava sob minhas janelas, sob meus olhos. Ela me encontrava desorientado, incrédulo.
Uns quinze dias depois, o historiador de arte Elie Faure, que apoiava entusiasticamente a causa republicana, veio passar uns dias em Madri. Fui visitá-lo uma manhã em seu hotel e ainda o vejo junto à janela do quarto, com suas ceroulas presas nos tornozelos, olhando as manifestações de rua que se tornavam diárias. Chorava de emoção ao ver o povo pegando nas armas. Um dia, vimos desfilar uma centena de camponeses, armados de qualquer maneira, alguns com fuzis de caça e revólveres, outros com foices e forcados. Num visível esforço de disciplina, tentavam marchar em filas de quatro. Creio que nós dois choramos com isso.
Nada parecia poder vencer essa força profundamente popular. Mas depressa a incrível alegria, o entusiasmo revolucionário dos primeiros dias cederam lugar a um desagradável sentimento de divisão, de falta de organização e de total insegurança, sentimento que durou até as proximidades do mês de novembro de 1936, quando uma verdadeira disciplina e uma justiça eficaz começaram a estabelecer-se no lado republicano.
Não pretendo escrever por minha vez a história do grande dilaceramento que atingiu a Espanha. Não sou um historiador e não estou certo de ser imparcial. Só quero tentar contar o que vi, o que recordo.” ( p. 210-211)
(...)
“Dentro do campo republicano começavam a surgir graves divisões. Os comunistas e os socialistas queriam antes de mais nada ganhar a guerra, fazer tudo pela vitória. Os anarquistas, ao contrário, considerando-se como tendo triunfado, organizavam já sua sociedade ideal.
Gil Bel, diretor do jornal sindicalista El Sindicalista, um dia marcou encontro comigo no Café Castilla e me disse:
- Fundamos uma colônia anarquista em Torrelodones. Há já umas vinte casas ocupadas. Você deveria pegar uma.
Fiquei muito espantado. Em primeiro lugar, essas casas pertenciam a pessoas expulsas, às vezes fuziladas, ou em fuga. Em seguida, Torrelodones situava-se junto à serra de Guadarrama, apenas a alguns quilômetros das linhas fascistas, e ali, vulneráveis, os anarquistas organizavam tranqüilamente sua utopia!
Outro dia, em companhia do músico Remacha, um dos diretores do Filmsono onde eu trabalhara, almoço num restaurante. O filho do dono foi gravemente ferido combatendo contra os franquistas na serra de Guadarrama. Entram vários anarquistas armados que dirigem um Salud compañeros! em volta deles e imediatamente pedem garrafas de vinho ao dono. Não posso conter minha indignação. Digo-lhes que deveriam estar na serra, lutando, ao invés de esvaziar as adegas de um homem de bem cujo filho estava lutando contra a morte.
Eles me ouvem sem reagir e vão embora, mas levando ainda assim as garrafas. É verdade que deram “bônus” em troca, pedaços de papel que não significam grande coisa.
Todas as noites, brigadas inteiras de anarquistas desciam da serra de Guadarrama, onde se desenrolava a luta, para saquear as adegas dos hotéis. Seu exemplo antes nos estimulava a nos voltarmos para os comunistas.
Bem pouco numerosos no início, mas fortalecendo-se de semana em semana, organizados e disciplinados, os comunistas me pareciam – e ainda me parecem – irrepreensíveis. Colocavam toda a sua energia a serviço de levar adiante a guerra. É triste dizê-lo, porém necessário: os sindicalistas anarquistas os odiavam talvez mais ainda do que aos fascistas.
Esse ódio começara alguns anos antes da guerra. Em 1935, a F.A.I. (Federação Anarquista Ibérica) desencadeou uma greve geral, muito dura, entre os operários de obras. Uma delegação comunista dirigiu-se à F.A.I. – esse episódio foi contado pelo anarquista Ramós Acín, que financiara Las Hurdes – e disse aos responsáveis pela greve:
- Há entre vocês três alcagüetes da polícia.
E citaram nomes. Mas os anarquistas responderam com violência aos delegados comunistas:
E daí? Já sabemos! Mas preferimos os alcagüetes da polícia aos comunistas!
Apesar de minha simpatia teórica pela anarquia, não conseguia suportar seu comportamento arbitrário, imprevisível, seu fanatismo. Em alguns casos, quase bastava ter o título de engenheiro ou um diploma universitário para ser levado à casa campo. Quando ante a aproximação dos fascistas, o governo republicano decidiu deixar Madri para instalar-se em Barcelona, os anarquistas bloquearam a única estrada que permanecia desimpedida, perto de Cuenca. Em Barcelona – um exemplo entre vários – liquidaram o diretor e os engenheiros de uma fábrica de metalurgia, para provar que a fábrica podia funcionar perfeitamente apenas em mãos dos operários. Fabricaram um caminhão blindado e o mostraram, orgulhosamente, a um delegado soviético. Este pediu um parabélum e atirou, danificando facilmente a blindagem.
Acredita-se até – mas há outras versões – que um pequeno grupo de anarquistas foi responsável pela morte do grande Durutti, atingido por uma bala quando descia do carro, na rua de la Princesa, para ir em socorro da Cidade Universitária sitiada. Esses anarquistas incondicionais – que davam a suas filhas o nome de Acratia ("não-poder") ou Quatorze de setembro – não perdoavam a Duritti a disciplina que ele conseguira impor às suas tropas.
Nós tínhamos que temer também as ações arbitrárias do POUM, grupo teoricamente trotskista. No mês de maio de 1937, viram-se os membros desse movimento, aos quais se haviam juntado anarquistas da F.A.I., erguendo barricadas nas ruas de Barcelona contra as tropas republicanas, que tiveram que combatê-los e subjulgá-los.
Meu amigo, o escritor Claudio de la Torre, a quem eu acabava de dar um Marx Ernst como presente de casamento, morava numa casa isolada a pouca distância de Madri. Seu avô tinha sido maçom, o que, aos olhos dos fascistas, era a coisa mais abominável da terra. Os maçons eram tão detestados quanto os comunistas.
Claudio tinha uma cozinheira muito respeitada porque seu noivo combatia com os anarquistas. Um dia, dirijo-me a sua casa para almoçar, quando, de repente, vejo vir em minha direção, em pleno campo, um carro da POUM, perfeitamente identificável pela grande sigla pintada que exibe. Fico intranqüilo, porque só trago comigo documentos socialistas e comunistas que não têm valor algum aos olhos do POUM. Ao contrário, podem até criar-me problemas. O carro pára junto a mim, o chofer me pergunta qualquer coisa – creio que seu caminho – e arrancam novamente. Respiro aliviado.
Volto a repetir que só dou aqui minha impressão pessoal, uma entre milhões, mas creio que ela deve corresponder a um certo número de homens que pertenciam à esquerda naquela ocasião. Acima de tudo dominavam a insegurança e a confusão, agravadas por nossas lutas internas e pelo choque de tendências, apesar de ameaça fascista às nossas portas.
Eu via sob meus olhos um velho sonho realizado e isso só me proporcionava uma certa tristeza.
Um dia, através de um republicano que transpusera o front, tomamos conhecimento da morte de Lorca.” (p. 216-220)
(...)
Paris durante a guerra civil.
“Lá permaneceria até o fim da guerra. Oficialmente, em meu escritório da rua de la Pépinière, ocupava-me de reunir todos os filmes de propaganda republicana rodados na Espanha. Na realidade, minhas funções eram mais complexas. Por um lado, era uma espécie de chefe do protocolo, encarregado de organizar determinados jantares na embaixada e não colocar, por exemplo, André Gide ao lado de Aragon. Além disso, ocupava-me ‘de informações’ e de propaganda.
Durante esse período, e sempre para solicitar apoios de todos os tipos para a causa republicana, viajei muito, para a Suíça, Anvers, Estocolmo, várias vezes para Londres. Em diversas oportunidades retornei também à Espanha em missão.
Em geral, levava comigo valises cheias de milhares de panfletos impressos em Paris. Em Anvers, os comunistas belgas nos ofereciam seu apoio total. Graças à cumplicidade de alguns marujos, nossos panfletos viajaram até num navio alemão com destino à Espanha.” ( p. 224)
...
“Ao contrário do governo francês, que sempre recusou comprometer-se e intervir em favor da república, intervenção que teria modificado rapidamente o curso dos acontecimentos – e isso por covardia, por medo dos fascistas franceses, por medo de complicações internacionais –, o povo francês, e em particular os operários membros da C.G.T., prestava-nos uma ajuda considerável e desinteressada. Não era incomum, por exemplo, que um ferroviário ou um chofer de táxi me procurasse para dizer: “olhe, dois fascistas chegaram ontem à noite pelo trem das 20 e 15; são assim e assim, ficaram em tal hotel”. Eu tomava nota das informações e as transmitia a Araquistaín, que foi certamente nosso melhor embaixador em Paris.
A não-intervenção da França e de outras potências democráticas nos paralisava. Embora Roosevelt se tivesse declarado a favor da República Espanhola, cedia às pressões dos católicos americanos e não intervinha, como também não o fazia Leon Blum na França. Nunca esperamos uma intervenção direta, mas podíamos pensar que a França autorizaria transportes de armas e até expedições de “voluntários”, como fizeram, do outro lado, a Alemanha e a Itália. O desenrolar da guerra teria sido inteiramente diferente.
Devo mencionar também – ainda que brevemente – o destino reservado aos refugiados na França. Muitos, à sua chegada, foram simplesmente encerrados nos campos. Grande quantidade deles caiu mais tarde em mãos dos nazistas e morreu na Alemanha, principalmente em Mauthausen.
Organizadas pelos comunistas, treinadas e disciplinadas, as brigadas internacionais foram as únicas que nos forneceram, ao mesmo tempo, uma ajuda precisa e um bom exemplo. É preciso também render homenagem a Malraux, embora alguns dos aviadores escolhidos por ele não passassem de mercenários, e a todos aqueles que foram combater por iniciativa própria. Eles foram numerosos e de todos os países. Em Paris, forneci salvo-condutos a Hemingway, a dos Passos, a Joris Ivens, que realizou um documentário sobre o exército republicano.” ...(p. 225-226)
(...)
“Rodávamos filmes na Espanha, durante a guerra, com a colaboração – entre outros – de dois operadores soviéticos. Esses filmes de propaganda deviam ser apresentados no mundo inteiro e também na Espanha. Um dia, não tendo nenhuma notícia sobre o material filmado já há alguns meses, marquei uma entrevista com o chefe da delegação comercial russa. Ele me fez esperar mais de uma hora. Insisti junto a um secretário. Finalmente, o homem me recebeu friamente, perguntou meu nome me disse:
- Que está fazendo em Paris? O senhor deveria estar no front, na Espanha.
Respondi-lhe que não lhe competia de modo algum julgar minha atividade, que eu executava ordens e que queria saber o que acontecera com os filmes rodados para a República Espanhola.
Respondeu-me com evasivas. Retirei-me.
Tão logo cheguei a meu escritório, escrevi quatro cartas, uma para L’Humanité, uma para o Pravda, outra para o embaixador soviético e a última para o ministro espanhol. Nelas denunciava o que me parecia ser sabotagem dentro da própria delegação comercial soviética, sabotagem que me foi confirmada por amigos comunistas franceses que me disseram: “Sim, é um pouco assim em todos os lugares”. A União Soviética tinha inimigos, ou pelo menos adversários, entre seus representantes oficiais. Aliás, algum tempo depois, o chefe de delegação comercial, que me recebera tão mal, foi uma das vítimas dos grandes expurgos de Stalin.” (p. 227-228)
(...)
“Não é de espantar que os republicanos espanhóis, como eu, tenham sido mais ou menos favoráveis ao pacto germano-soviético. Estávamos tão decepcionados com a atitude das democracias ocidentais, que ainda desprezavam a União Soviética, recusando qualquer contato eficaz, que vimos no gesto de Stalin uma maneira de ganhar tempo, de aumentar as forças que, de qualquer modo, seriam lançadas na grande batalha.
O partido comunista francês, em sua maioria, também aprovou o pacto. Aragon o disse em alto e bom tom. Uma das poucas vozes discordantes – dentro do partido – foi a de Paul Nizan, brilhante intelectual marxista, que me convidou para seu casamento (a testemunha era Jean Paul Sartre). Mas todos sentíamos que, qualquer que fosse nossa opinião, esse pacto não iria durar, fracassaria como todo o resto.
Mantive minhas simpatias pelo partido comunista até o fim dos anos 50. Depois disso, fui afastando-me cada vez mais. Seja onde for, o fanatismo me repugna. Todas as religiões encontraram a verdade. O marxismo também. Nos anos 30, por exemplo, as doutrinas marxistas não toleravam que se falasse de inconsciente, de tendências psicológicas profundas do indivíduo. Tudo tinha que obedecer aos mecanismos sócio-econômicos, o que me parecia absurdo. Uma metade do homem era esquecida.
Termino essa digressão. A digressão é minha maneira natural de relatar, um pouco como ocrre no romance picaresco espanhol. No entanto, com a idade, com a diminuição inevitável da memória imediata, antecedente, tenho que tomar cuidado. Começo uma história, abandono-a imediatamente por um parêntese que me parece muito atraente, após o que esqueço meu ponto de partida e me perco. Pergunto sempre aos meus amigos: ‘Por que lhes estou contando isso?’” (p. 233-234)
(...)
“Em 1936, o povo espanhol se manifestou pela primeira vez em sua história. Instintivamente, atacou primeiro a Igreja e os grandes proprietários, representantes de uma opressão ancestral. Queimando as igrejas e os conventos, massacrando os padres, o povo designava claramente seu inimigo hereditário.
Do outro lado, do lado fascista, os crimes eram cometidos por espanhóis mais ricos e mais cultos. Eram cometidos – o exemplo de Calanda pode estender-se a toda a Espanha – em maior quantidade, sem verdadeira necessidade, com uma frieza mortal.
Isso me permite dizer hoje, com certa serenidade, que no fundo o povo sempre é mais generoso. As razões que tinha para revoltar-se não eram ignoradas por ninguém. Se durante os primeiros meses da guerra, no lado republicano, um certo número de excessos me horrorizou (não tentei escondê-los), bem depressa, a partir do mês de novembro de 1936, uma ordem legal foi estabelecida e as execuções sumárias cessaram. Quanto ao mais, estávamos em guerra com rebeldes.
Durante toda a minha vida, impressionou-me muito a famosa fotografia onde se vêem, diante da catedral de Santiago de Compostela, dignitários eclesiásticos, cobertos com seus ornamentos sacerdotais, fazendo a saudação fascista, ao lado de alguns oficiais. Deus e a pátria estão ali, lado a lado. Só nos traziam a repressão e sangue.
Nunca fui adversário fanático de Franco. Em minha opinião, ele não representava o diabo em pessoa. Inclino-me até a acreditar que evitou que a Espanha exangue fosse invadida pelos nazistas. Mesmo no que se refere a ele, incluo certa ambigüidade.
O que digo atualmente, embalado pelos devaneios de meu niilismo inofensivo, é que a abastança e a cultura mais desenvolvidas que havia do outro lado, do lado dos franquistas, deveriam ter limitado o horror. Nada disso ocorreu, pelo contrário. E é por isso que questiono, sozinho diante de meu dry-martini, as vantagens do dinheiro e as vantagens da cultura.” (p.239-240)
Extraído de: Meu último suspiro / Luíis Buñuel; tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[N.E.] Segundo definição do Dicionário Aurélio, gitano é o cigano da Espanha.
Este texto encontra-se em www.cecac.org.br15/05/2005
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