sábado, 12 de junho de 2010

Todos iguais em África? Não, todos diferentes

Jovens alunos em Luanda MIGUEL MADEIRA
Por Susana Moreira Marques
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Talvez Angola possa ser o país a reequilibrar a discussão da lusofonia, até aqui pesando sempre entre Portugal e Brasil sem um papel reservado a África
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De Luanda a Maputo - longe como de Lisboa a Atenas -, atravessa-se um continente. Cabo Verde está no meio do mar, que é como quem diz voltado para muitas coordenadas, não só africanas. São Tomé e Príncipe é nova ilha. E a Guiné-Bissau fica entre outras Guinés e outras culturas. Viajando estas distâncias, podemos continuar a falar português. O que não quer dizer que nos possamos entender.

"A língua é o elemento de comunicação, mas nós não comunicamos a língua. Comunicamos valores e identidades", lembra-nos Lucílio Manjate, um jovem escritor de 29 anos de Maputo. A palavra-sigla PALOP provoca suspiros do lado dele da linha telefónica, nos tais países africanos de língua oficial portuguesa.

A primeira coisa que podemos ouvir - se quisermos - vinda desse continente é que não só os portugueses, mas os europeus em geral, teimam em olhar, preguiçosamente, de forma genérica. Porque não podemos falar de uma língua portuguesa em África, mas de várias línguas portuguesas em países multilingues e multiculturais de formas que, de fora, temos dificuldade em imaginar.

Em Moçambique falam-se cerca de 20 línguas. "O escritor aprendeu uma determinada língua, mas pensa noutra", explica Lucílio Manjate, e ainda que não use directamente palavras das línguas bantu, a lógica e visão do mundo para as quais remetem as várias línguas nacionais estão presentes na escrita em português.

Como escritor, Manjate reserva-se o direito de criar a sua própria linguagem. Como cidadão que cresceu num país independente, ainda é preciso resolver o fantasma do colonialismo e sentir o português não como língua de fora, da qual se desconfia, mas de dentro.

Nacional como a mandioca


Isto é cada vez mais verdade em Angola, onde, quando se realizar um censo, se espera descobrir que um terço da população tem o português não como primeira língua, sobretudo nos centro urbanos, sobretudo entre as gerações mais jovens.

"Hoje, em Angola, a língua portuguesa é tão nacional como a mandioca", diz o escritor e jornalista João Melo. E, como quando se importou a mandioca, juntam-lhe outros ingredientes, a gosto.

Nas escolas, aprende-se o português-norma, de Portugal, mas pelas ruas de Luanda ouvimos outro português, muitas vezes com semelhanças ao português do Brasil.

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, diz João Melo, essa influência não é um feito da Rede Globo. Durante o século XX, a colonização portuguesa e a ditadura militar no Brasil contribuíram para um afastamento entre Angola e o Brasil, mas os laços que actualmente se retomam são muito antigos. "Quem for estudar o século XVII, verá que a relação entre Angola e Brasil era directa, não passava por Portugal." A própria língua portuguesa como é falada no Brasil incorporou uma série de vocábulos de línguas angolanas - principalmente do quimbundo - levadas pelos escravos.

O reequilíbrio angolano

Para um escritor em Angola, o mercado brasileiro é aliciante, não apenas pelo potencial de vendas - "uma questão de escala", resume João Melo - mas também pela afinidade cultural. Se João Melo ler a sua obra para uma plateia brasileira, esta sabe do que fala. "Luanda é hoje uma metrópole terceiro-mundista", diz o escritor, e a literatura angolana, fortemente urbana, fala a quem vive nas grandes metrópoles brasileiras.

De resto, talvez Angola possa ser o país a reequilibrar a discussão da lusofonia, até aqui pesando sempre entre Portugal e Brasil, sem encontrar um papel para África.

Para João Melo, se Angola se afirmar como uma potência económica regional, isso terá que ser acompanhado de políticas culturais, incluindo a criação de políticas próprias de promoção da língua portuguesa. Mas, para já, está tudo por fazer. Neste momento, Angola não tem leitores e um país com pouco acesso ao livro dificilmente produz literatura.

Também em Moçambique é quase impossível comprar um livro fora da capital, explica Manjate. Para ele, que quer ter leitores em Moçambique, Angola, Cabo Verde, Portugal, Brasil e onde quer que se leia em português, o "sonho da lusofonia" vale a pena. Para isso, é preciso encontrar as razões certas, que não podem ser só políticas. Para ele, "a utopia tem que ser cultural, humanitária, dos afectos".
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