NOITE DE SENTINELA
- Cabrões ! - Com um piparote bem medido, Américo espalmou o mosquito contra o
pescoço. - Já não me lixas mais.
Sentia-se chegar ao limite da resistência, os tornozelos e os nós dos dedos
dolorosamente inchados de tanta ferroada. Prestes a desatar aos berros.
Ao redor do aquartelamento, à volta dos postes de iluminação, os mosquitos saíam
da noite em hordas cerradas.
"Maldita terra, malditos mosquitos. Não bastava este calor de morrer."
Pousou a G-3 no parapeito do posto de vigia e pôs-se a espiar o negrume.
Múltiplos ruidos, indestrincáveis, de todos os timbres, elevavam-se para além do anel
de luz das lâmpadas da periferia do aquartelamento. Era um bramar soturno, hostil,
prenhe de suspeições.
Por instantes esqueceu-se dos mosquitos, percorrido por um arrepio.
Mas o ressonar dos dois camaradas de posto, mesmo a seus pés, serenou-o.
"Se estivesse sozinho morria de cagaço."
Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros fosforescentes indicavam
as três horas da madrugada. Dentro de três quartos de hora despertaria o
Mendes para o render. Seria a sua vez de ferrar o galho, se fosse capaz.
Apetecia-lhe fumar um cigarro mas a imagem ameaçadora do capitão
sobrepôs-se ao desejo. Não lhe apetecia mesmo nada apanhar uma porrada e ir parar ao
Leste, que era bem pior do que o Norte, segundo diziam.
"- Sentinela, éh sentinela !"
Emaranhado nos seus pensamentos, levou tempo a recompor-se.
- Estavas a dormir, logo na primeira noite ?
Pela voz, reconheceu o furriel Neves.
- Aqui no poleiro, não dá o sono a ninguém, meu furriel.
- Podia passar por aqui um regimento de turras que não davas por nada.
Vamos lá a ver se abres mais os olhos.
Américo sentiu os passos do furriel perderem-se na noite. Enervado,
tornou a olhar o relógio. Estava na hora. Até já passavam cinco minutos.
- Acorda, Mendes, está na hora.
O camarada soergueu-se da enxerga, estremunhado.
- Já ? Não me estás a tramar ?
- Vá, levanta-te. Não acordes o Fernandes.
- Logo agora que estava a sonhar com uma miúda muito boa lá da terra. Tens um cigarro ?
- Olha o capitão.
- O capitão que vá bardamerda. Dá cá o cigarro.
O clarão do fósforo iluminou dois rostos terrosos. Depois ficou a ponta
vermelha do cigarro a fazer arabescos na noite.
- Não te deitas ?
- Não tenho sono. Fico contigo um bocado.
- Saudades ? Deixa lá que qualquer dia já chega o correio.
Falavam em surdina, para não acordar o Fernandes. Os mosquitos tinham
acalmado e para além dos morros começava a assomar o palor da madrugada.
- Sabias que o meu filho fez ontem um ano ? - disse Américo, com tremuras na
voz. - É verdade, fez ontem um ano que ele nasceu em França.
- Tu estavas na França, não é ? Que maluqueira foi essa de voltares
para fazer a tropa ?
- Sei lá ! Comecei a pensar que nunca mais poderia regressar
a Portugal, que o meu filho nunca poderia conhecer os avós. A mulher
também se sentia triste sem a família. Resolvemos regressar. Mas quando
acabar esta merda, volto para a França.
- Dizes bem, esta merda.
Subitamente, um estampido acordou a noite.
- Ouviste ?
- Foi no posto 3.
Soou outro tiro, logo seguido duma rajada.
O aquartelamento encheu-se de sobressalto : luzes, vozes alteradas,
correrias, o latir do Fantasma.
- Será um ataque ? aventou Américo de dedos crispados na G-3.
O Fernandes despertara.
- O que é que a gente vai fazer ?- balbuciou.
A pergunta fê-los sentir como galinhas aprisionadas.
- Terá morrido alguém ?
- E nós aqui sem saber de nada.
- Que porra de situação.
- Calma - aconselhou Mendes. - Não me parece coisa grave.
- Sentinela ! - gritaram lá de baixo.
- Quem está aí ? - perguntaram em coro.
- É o furriel Meneses. Estejam tranquilos que ainda não é desta que vão
morrer. Foi o parvo do Costa que julgou ter ouvido um ruído estranho e desatou
às rajadas como um maricas. Algum javali.
- Que cagaço, meu furriel ! - Américo soltou uma risada nervosa. -
Já pensávamos que os turras tinham atacado.
- Ponham-se mas é a pau com os ataques dos mosquitos.
- Que susto aquele gajo nos pregou - desabafou o Fernandes. - Ia-me borrando todo.
- O furriel disse que eram os javalis mas podiam muito bem ter sido os turras.
- Nunca se sabe.
- Afinal, quem é que está de sentinela ? Eu ou vocês ? - galhofou o Mendes.
A parada enchia-se de vida com as primeiras pinceladas da manhã.
O segundo pelotão vair sair para a mata - suspirou o Fernandes. - Já é de dia.
- Graças a Deus - benzeu-se o Américo, olhos postos na luminosidade
que acobreava o dorso dos morros.
CHEGADA DO CORREIO
- João Moreira.
— Pronto!
— Carlos Afonso.
— Estou aqui.
Empoleirado numa mesa do refeitório,qual deus louco,
o cabo-cripto Ruivo semeia, às mãos-cheias, a alegria e a tristeza, as lágrimas
e os risos.
— Pedro Antunes.
— Eu...
- José Fernandes.
— Dá cá.
Mãos nervosas como gadanhas. Dedos
hirtos que se engalfinham nas cartas e aerogramas.
O Ruivo era o tipo mais importante da
Companhia. Ou, pelo menos, assim o cria.
Na verdade era ele que estava
incumbido da distribuição do correio que o avião trazia duas vezes por semana
de S.Salvador, juntamente com os frescos.
O avião chegava geralmente por volta
das onze horas da manhã e razava duas ou três vezes o aquartelamento, com as
goelas abertas, a dar tempo que se montasse a segurança à pista.
Enquanto o furriel vagomestre Máximo
procedia à conferência da carne e do peixe, o Ruivo recebia das mãos do piloto
o saco do correio. Aquele saco era um coração gigantesco, palpitante, poderoso.
O principal sustentáculo da Companhia. Mais do que as G-3 e a cerveja, as
metralhadoras e os cigarros, os morteiros e as negras da Sanzala.
— Hoje pesa - dizia invariavelmente
o piloto.
— Deve vir cheio de cornos -
gracejava por sua vez o Ruivo.
Concluida a transacção do correio e
dos frescos, a D.O. começava a deslizar pela pista e dentro em pouco não era
mais do que um mosquito zumbidor rumo a S.Salvador.
O pessoal da segurança saía do capim
e saltava lesto para o unimog que arrancava de prego a fundo para o caldeirão
ao rubro do aquartelamento.
— Américo Pereira.
— Aqui.
- Carlos Marecos.
— Viva!
Restam três cartas. As unhas
cravam-se nas palmas das mãos. Os rostos contorcem-se em esgares doloridos.
O Ruivo passeia um sorriso
displicente por aquele mar de olhos esgrouviados e acaricia o magro monte de
correspondência que resta com
artifícios de amante sabido.
— Despacha-te... pá!
- Calminha..., tens tempo de saber
que o teu filho já chama pai a outro.
- Vai gozar com a tua avó.
O litúrgico deu lugar ao burlesco. Ruivo
procura escamotear o tempo, prolongar o seu reinado.
- Daqui a nada tás a apanhar um
borracho nos óculos.
Atingido o ponto crítico de
ruptura.É perigoso ir mais além.
- José Mendonça.
— Até que enfim.
- Pedro Moreira.
- Uf...!
— Manuel Augusto.
— Mas... não há mais nada...? —
pergunta uma voz incrédula.
- Nada mais. Começa a procurar outra
que essa já te pôs os cornos.
Há rostos lívidos de angústia, sorrisos
rasgados de orelha a orelhas, dorsos quebrados de solidão, olhos refulgentes de
alegria.
“Sou o tipo mais importante da
Companhia” — conclui, mais uma vez, o Ruivo.
NOITE DE
CONSOADA
Pouco passava
das dez horas da noite e na caserna do 1o pelotão já se bebera até chegar como
o dedo. O Fernandes sacou do realejo e largou a tocar modinhas do Minho. Todos
se puseram a dançar, os dorsos nús cheios de reflexos acobreados.
- Puxa pela garganta, Fernandes. Mostra a esta
malta quem são os nortenhos - gritou o Pacaça. Levou uma cerveja à boca e a
maçã-de-adão começou a subir e a descer no pescoço de touro.
- Cinco segundos, hem! Quem é capaz de fazer
este tempo? Alguém tem peneiras? - desafiou ao redor, de olhos envinagrados.
Mas ninguém lhe ligou. Dançava-se e bebia-se
por entre guinchos ululantes. O odor dos corpos suados misturava-se com o
cheiro azedo da cerveja entornada. O Pacaça agarrou outra cerveja e recomeçou a
sua corrida contra o tempo: um.. . dois. . . três... quatro segundos.
Ufano, os olhos negros incendiados, desafiava a
malta.
- Hei-de chegar aos três segundos ainda esta
noite - taramelava, numa dança de ébrio.
O Barão começou a cantar:
«Estou farto deles»
E o pelotão acompanhou-o em coro:
«Da chicalhada,
Esses
pançudos,
Que não fazem nada».
Américo segurou Mendes por um pulso.
- Quero-te mostrar uma coisa - ciciou-lhe ao
ouvido.
Nos olhos já lhe bailavam meia dúzia de Sagres.
- Anda daí.
A malta continuava a cantar:
«Vai prá mata
Ó meu malandro.
Por tua causa
É qu’eu aqui ando».
Mendes, acabou de beber a cerveja e deixou-se
conduzir. Américo tirou a mala de debaixo da cama e abriu-a.
- Olha! Tá lindo, não tá?
Mendes segurou a fotografia. O rosto traquinas do filho do Américo fê-lo engolir em seco.
- Tá lindo, não tá? - insistia a voz cheia de lágrimas do Américo.
«Abre a cantina,
Ó cantineiro,
Anda co’a malta
Caga no Primeiro».
- Quando penso que hoje é noite de consoada! - -
soluçava o Américo.
O Fernandes estava fantástico nessa noite,
quase fazia o realejo falar. Os corpos contorciam-se, alucinados, ululantes. O
Barão saltou para cima duma cama:
- Meus senhores, vamos beber em honra da malta
que está nos postos de sentinela esta noite.
Foi então que uma ideia genial chispou naquele
mar de álcool.
- E se lhes fossemos levar uma pinga? - juntou
uma voz.
Como por magia uma garrafa de bagaço nasceu das
mãos do Pacaça.
- Em frente, marche! - comandou o Barão.
À aproximação daquele mar proceloso, as
sentinelas gritavam, alarmadas:
- Quem vem lá?
- É o pai Natal que te trás um presente -
respondia-lhe o pelotão.
E sem tempo para uma resposta, a garrafa de
bagaço começava a gorgolejar garganta abaixo dos felizes contemplados.
MARIA
O Pacaça esqueceu-se que era um
grande bebedor. Já nem mesmo uma boa partida de lerpa o fazia esquecer a
imensidão exasperante dos dias.
— É um caso perdido - comentava,
descoroçado o Barão. — Eu que tinha tantas esperanças neste rapaz!
O Pacaça sorria, o carão inundado
por um fogaréu que lhe crescia nas entranhas.
Impreterivelmente todas as noites,
antes de se escapulir do quartel para a cubata de Maria, passava pela cozinha
buscar os restos do jantar.
— Lá vem o rapa-tachos - galhofavam
os cozinheiros.
Quando havia faltas, chegava ao
ponto de repartir com a rapariga a sua ração. Estirado no catre, qual ritual,
gostava de vê-la comer, silenciosa, cheia de olhares idólatras.
No final, olhos semi-cerrados, o
rosto crispado de desejo, chamava-a:
— Anda cá.
Naquela noite estranhou-a. Não lhe
achou o ardor habitual. O olhar turvou-se-lhe ciumento.
— O que tens?
— Nada - respondeu Maria, abraçando-o.
O Pacaça repeliu-a com brutalidade.
— O que tens? - repetiu,
sondando-lhe os olhos baixos.
— Tenho um filho na barriga -
anunciou, com simplicidade, Maria.
— Um filho!? - gritou Pacaça,
sentando-se de repelão no catre. — Meu!?
Apanhou as calças e vestiu-as
atabalhoadamente. Sentia o estômago às reviravoltas como quando estava com a
ressaca.
Maria continuava sentada na beira do
catre, esfíngica estátua de ébano.
O Pacaça calçou as botas e pegou na
camisa.
— Um filho!?
Velou noite fora.
“Um filho!?”.
Era algo de insólito que se
incrustara subrepticiamente no seu mundo simples e que, à traição, o socara no
estômago, como um copo de bagaço em jejum.
Ouvia o ressonar dos camaradas. A
lua ocupou, gorda e enfarinhada, o rectângulo da janela, pincelando a oca a caserna.
Depois, tranquilamente, desapareceu.
“Que diabo posso fazer? Levar o
garoto comigo? Abandoná-lo?”
A esta última alternativa. o coração
confrangeu-se-lhe. Na sanzala, em todas as sanzalas por onde passava, as
crianças mulatas constrangiam-no.
— Éh filho duma lata de conserva!
— Éh café com leite!
Nunca deixara de repreender os
camaradas, quando estes troçavam dos garotos.
Certa vez ia jogando à porrada com o
Barão. Não tinha estômago para ouvir aquelas coisas.
“Iria o seu filho ser um dia alvo de
troças idênticas?”
Sentia-se acalorado. Com os pés.
atirou o lençol para o fundo da cama, indiferente aos mosquitos.
“E se ficasse em Angola?”
Arrepiou-se e cobriu-se de novo com
o lençol.
Na sanzala, os galos lá cantavam. Em
breve despontaria a alba.
Passou ao de leve pelo sono. Um sono
prenhe de pesadelos e de reviravoltas na cama. A uma reviravolta maior a
despertina regressou. Contou os meses pelos dedos.
“No fim da comissão já o miúdo teria
um ano. Já lhe chamaria pai.”
A ideia de ficar, qual monstro libidinoso,
enroscou-se-lhe no cérebro.
“E por que não? Já ouvira dizer que
davam terras lá para o sul. Não tinha medo ao trabalho. Afinal, se regressasse,
não teria também que ir cavar o seu pão na Alemanha ou na França? Pelo menos em
Angola compreendia as pessoas, falava-se língua de gente. Por que não? Ficar
com a criança, com Maria”.
O Pacaça sorriu e fechou os olhos,
apaziguado. Não tardou a adormecer. Pela janela já escorria uma claridade
diáfana.
FANTASMA
O Américo pensava no filho, que no próximo
domingo fazia dois anos, quando a explosão o atirou ao ar. Caiu de costas na
cama fofa do capim.
Por um bom lapso de tempo não conseguiu
raciocinar, os ouvidos numa zoada tremenda. Gradualmente, foi recuperando a
lucidez.
«Meu Deus! O que teria sido? Meus Deus, meu
Deus, devo estar ferido. Será grave?»
Vozes alvoroçadas subiam ao redor.
«Meu filho, nunca mais te torno a ver».
Após mais uns minutos de imobilidade,
apercebeu-se que não sentia dores. Ousou mexer um pé, depois o outro, as mãos,
o pescoço, o suor a cegá-lo. Sentou-se.
«Meu Deus, estou vivo».
Pôs-se de pé. A zoada nos ouvidos parou. Finalmente,
compreendeu que não estava ferido.
Na picada sobrepunham-se ordens, gritos,
correrias.
«Foi uma mina, foi uma mina. Onde estará a
minha G-3? Se o capitão me apanha sem a arma dá-me uma descasca.»
Reentrou na picada.
- Há feridos?
Ninguém lhe respondeu. O capitão, na berma da
picada, acocorado sobre o rádio de transmissões, estava a comunicar com a
Companhia, numa voz despropositadamente alta. O Barão fumava um cigarro, com a
G-3 a servir de cajado. O enfermeiro punha um penso na testa do Costa.
- Estou muito ferido? - perguntou este, pálido
como um cadáver.
- Nem deita sangue. Feriste-te numa folha de
capim.
- Qual folha de capim, qual carapuça, isto foi
um estilhaço. Bem senti.
O unimog atingido afocinhara, com os pneus da
frente rebentados. Um cheiro intenso a borracha queimada pairava no ar.
- Vem já aí o 2° pelotão socorrer-nos anunciou
o capitão largando o rádio. - Alferes Mendonça mande já os homens sair da
picada e monte a segurança. Que bandalheira é esta?
Só então o Américo sentiu a falta do Fantasma.
- O Fantasma? Onde tá o Fantasma?
- Cagou-se todo com o medo e cavou por esses
morros acima - troçou o Barão.
Américo emitiu um assobio e esperou. Nada, do
Fantasma nem sombras.
- O
Fantasma tá aqui, Américo. Em cima do unimog.
Américo correu para a viatura danificada. Um grande
novelo, branco e peludo, jazia sob os bancos.
- Fantasma - chamou Américo.
O animal não se moveu.
- Fantasma! - tornou o dono, a voz sumir-se.
Pegou-lhe por uma pata inerte e puxou-o. Estava
morto. Um estilhaço perdido fizera um rombo na caixa da viatura e perfurara-lhe
o peito, ao nível do coração.
Américo continuou a puxar e o corpo tombou na
picada com um baque surdo. Uma roseta de sangue alastrava pelo peito do
cadáver, humedecia a terra esfarelada.
Mendes pousou a mão no ombro do Américo.
- Tem calma. . -
- O que há aí?- interpelou-os o capitão. - Não
ouviram as ordens?
- O Fantasma morreu - disse Mendes.
- Atirem-no para o capim. Antes o cão do que um
homem. Mexam-se.
- Ficaste viúvo, Américo - troçou o Barão.
-
Deixa-o
- disse secamente Mendes.
Surdo a tudo, Américo debruçara-se sobre o
corpo do Fantasma, os lábios lívidos como que agitados numa prece.
ARMADILHAS
A mensagem, captada pelo pessoal
do posto de transmissões, propalou-se rapidamente pelo aquartelamento:
"Caiu uma catrefada de turras
nas armadilhas do trilho Luvo."
As casernas esvaziaram-se e a
parada encheu-se de frenesim. Os cozinheiros largaram os tachos e correram a
engrossar os magotes efervescentes. 0 pessoal da limpeza desenvencilhou-se das
vassouras e embicou direito ao posto de transmissões. Para aumentar a balbúrdia,
o jipe da água com o auto-tanque a reboque irrompeu pela parada a grande
velocidade, quase cilindrando um dos grupos.
- Querem trancar o jipe? - refilou o condutor, envolto numa nuvem de
poeira.
O furriel mecânico Reis
apercebeu-se do incidente e saiu disparado da messe dos sargentos, de rosto
apoplético por quatro ou cinco Sagres.
-
O que há?
- Estes gajos atravessaram-se
diante do jipe - desculpou-se o condutor.
- Quantas vezes já te disse para
andares mais devagar dentro do
aquartelamento? - gritou o furriel
assanhado.
O condutor achou por bem bater em
retirada e o jipe começou a rastejar de rabo entre as pernas para a cozinha.
Só então o furriel Reis se
apercebeu da agitação reinante.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou
ao redor.
- Parece que caiu um exército
de turras nas nossas armadilbas - respondeu-lhe o básico Marecos, feliz por
esclarecer um furriel.
O furriel Meneses estava estendido
na cama, embrenhado na leitura duma revista quando se levantou a balbúrdia. Depois
ouviu o derrapar do jipe.
''São os fangios do Reis” pensou,
mas como a agitação persistia pousou a revista e foi abrir a
porta.
- O que há? - perguntou ao Reis
que regressava agitadíssimo à messe.
- Cairam uns gajos nas armadilhas
do Luvo.
- Nossos?!
- Turras, parvo.
Meneses começou a ver tudo à roda.
Parada, homens, casernas, céu, bandeira, num turbilhão alucinante. Encostou-se à
parede para não cair.
-
Sentes-te mal, pá? - assustou-se Reis.
Lentamente,
tudo foi reocupando o seu devido lugar. Ficou só o coração a estraçalhar o
peito.
- Queres um copo de água?
Meneses abanou a cabeça.
- Não,
obrigado. Já estou bem.
- Devias ir medir a tensão, aconselhou o
Reis. Deves andar a precisar duns copos. Anda dai.
-
Vai tu. Já estou bem.
O
Reis ainda duvidava.
- Vê lá se te dói alguma coisa.
Meneses reentrou na camarata. Atirou-se para cima da cama.
“Caídos nas armadilhas que ele e o alferes Vasconcelos tinham
montado.”
Vozes, saídas das próprias entranhas esmagavam-lhe as têmporas.
“Assassino... Assassino...”
Afundou a
cara na almofada, as mãos crispadas nos ferros da cama.
Um rugido
animal subiu-Ihe à garganta e as lágrimas saltaram, por fim, a ferver, rosto
abaixo.
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