Terra do Sol
Estados de alma, intervenções e sinais de Tavira, do Algarve e de todo este mundo... e alguns raios de Sol!
Segunda-feira, Maio 15, 2006
O centenário de um herói
At Seg Mai 15, 12:44:00 PM, said…
O general e o medo
por Rui Ramos, in Público, 2006-05-14
Delgado prometera a "adopção progressista e tão rápida quanto possível dos hábitos correntes nos países democráticos". Mas no seu discurso de Chaves, a 22 de Maio de 1958, admitiu que nada havia para "suceder a trinta anos de ditadura senão um regime de força"
O general não queria ser o Américo Tomás da oposição: se era essa a ideia, "enganaram-se no tipo de general que escolheram"
A guerra civil do salazarismo
A irreverência que o general exibiu em 1958 era antiga, e não prejudicara a sua carreira fulgurante dentro do Estado Novo. Em 1944, tinha sido condenado a 15 dias de prisão por motim, e quase ao mesmo tempo nomeado director-geral do Secretariado da Aeronáutica Civil. A ousadia e o desassombro estavam na origem de um regime que, na década de 1930, rompera com décadas de rotina parlamentar. A afoiteza continuava a ser cultivada pelos numerosos militares que, como Delgado, ocupavam posições importantes no Estado Novo. Em Abril de 1958, antes de Delgado iniciar a campanha, foi o coronel Santos Costa, ministro da Defesa, quem ameaçou Salazar de que "ou isto muda", ou "tudo se perderá", porque "o descontentamento no país é enorme". O descontentamento era, para começar, enorme entre os próprios salazaristas. Todos queriam "mudar". Para ampliar a sua base de apoio e por conveniências de inserção internacional, Salazar mantivera o regime indefinido: esta era uma ditadura que fazia eleições, um conjunto de admiradores de Mussolini que tinha ajudado os Aliados durante a guerra. Isto queria dizer que o Estado Novo poderia vir a ser tudo, dependendo de quem fosse o delfim do ditador, que em 1958 faria 69 anos. Como evoluiria o regime? Para uma monarquia nacional-católica, como a Espanha de Franco? Ou para uma democracia ocidental, igual à dos outros estados da NATO, a que Portugal pertencia desde 1949? Era preciso decidir, até porque o país e o mundo começavam a mudar.
Salazar, anos antes, avisara os seus correligionários sobre o perigo de se dividirem. No Verão de 1957, porém, acreditou-se que o Presidente da República, general Craveiro Lopes, decidira substituir Salazar por Marcelo Caetano, o ministro da Presidência. Santos Costa passou a opor-se à reeleição de Craveiro. Craveiro, mortificado, começou a receber militares revoltados com o ministro. Salazar fingiu hesitar, mas acabou por afastar Craveiro. Caetano reagiu mal. Os salazaristas contavam espingardas.
Foi este ambiente que levou Delgado a arriscar a campanha de 1958. Quando, a 14 de Maio, pronunciou o seu "obviamente, demito-o", estava a assumir em público a intenção que, em segredo, se atribuía a Craveiro Lopes. Corria então que Salazar, exasperado, pensava abandonar o poder. Talvez só faltasse um empurrão: foi esta a convicção de Delgado até ao fim.
O espírito do 28 de Maio
Há o hábito de reduzir Delgado à sua psicologia, como se tivesse sido apenas alguém em quem a coragem era o reverso positivo de uma certa falta de bom senso. Mário Soares definiu-o como "um homem que não sabia evitar situações de melindre". Em 1953, Santos Costa aconselhou-o a que se deixasse de "atitudes de rapaz", e arranjasse mais "senso e equilíbrio". O próprio Delgado referia-se a si próprio como um "general que sabia ser tenente". De facto, Delgado - o oficial literato e desinibido, militarista e repontão - correspondia uma figura típica da vida portuguesa desde o século XIX. As suas Memórias revelam a admiração pelos mais célebres exemplos desse género: Mousinho de Albuquerque e sobretudo Francisco Homem Cristo, de quem Delgado, a certa altura, se sentiu o continuador. Deu-se ainda com outra figura parecida, o capitão Henrique Galvão. É daí que derivam o estilo truculento da Pulhice do Homo Sapiens (1933), e a admiração do modelo cívico anglo-saxónico, assente na responsabilidade individual e no sentido prático, sem preconceitos, por contraste com o jacobinismo e o reaccionarismo de importação francesa. Era esse o espírito de muitos dos jovens militares que tinham feito o 28 de Maio, como Delgado.
Filho de um militar, foi formado num exército que, na década de 1920 era, pelos efectivos, corpo de oficiais e papel na vida pública, o maior e mais importante em Portugal desde o princípio do século XIX. O corpo de oficiais cultivou então o brio profissional, e o patriotismo, traduzido no nojo aos "políticos". O exército não governava, mas não devia deixar governar quem o fizesse mal.
Tinha "responsabilidades". Essas eram agora maiores, porque, em resultado da crise do pós-guerra, como Marcelo Caetano disse a Salazar, "o exército voltou a ser o fiador do Estado Novo". O que Delgado propôs aos generais foi que assumissem essas responsabilidades. Em 1926, tinham-se revoltado contra a incompetência e facciosismo dos republicanos. Em 1958 deviam, pelas mesmas razões, fazer outro "28 de Maio" contra Salazar. Por isso, na sua proclamação eleitoral, invocou o "espírito do 28 de Maio", na qualidade de "um dos patriotas que intervieram" na revolta. O contexto internacional era inspirador. Em França, a 15 de Maio, o general De Gaulle oferecera-se para assumir o poder na IV República, apoiado pelo exército da Argélia. O fracasso dos políticos franceses entregava o Estado a um chefe militar. Porque não em Portugal? O objectivo não era fazer confundir as forças armadas com o poder político, mas o contrário. Em Chaves, a 22 de Maio, explicou: "eu quero ser Presidente da República de um regime provisório e ir-me embora! Porque eu sou contra a tropa metida em política". O seu objectivo era "acabar com essa vergonha da tropa estar a substituir o civil nas funções que só a um civil competem". Não por acaso, era exactamente o mesmo raciocínio corporativo que esteve na base do protesto de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, contra Salazar. Nos grandes corpos que tinham sustentado o regime, as Forças Armadas e a Igreja, havia quem visse que o futuro dependia de se libertarem da identificação com o salazarismo.
Ganhar as eleições antes do voto
Delgado, depois de muitos anos no estrangeiro, não tinha verdadeira influência nas forças armadas. Decidiu por isso apoiar-se na oposição, seguindo uma pista aberta por Henrique Galvão e António Sérgio. Era um grande risco. Para os salazaristas, esse passo desclassificou-o: a colaboração da oposição significava que qualquer transição liderada por Delgado implicaria retaliações. A oposição tivera a iniciativa política pela última vez entre 1945 e 1949. Provara apenas a sua incapacidade. Os dilemas da Guerra Fria tinham acabado de a paralisar. Em 1958, não lhe restava mais do que esperar uma ruptura dentro do regime. Delgado aproveitou esta predisposição. A agitação nas ruas, com a ajuda da oposição, poderia criar ambiente para um resultado eleitoral inesperado, ou forçar um golpe dentro do regime. Para isso era preciso mostrar que este já não metia medo. Delgado sabia o que estava a fazer: "se eu não ganhar as eleições antes do dia 8 de Junho, também nunca mais as ganho". Contou sobretudo com um público urbano de funcionários, empregados de escritório e do comércio, e profissionais liberais, que ressentiam o condicionamento policial e a contenção financeira de Salazar.
Delgado confiava em que a divisão do outro lado impediria que alguém aceitasse o seu desafio. Mas Salazar e Santos Costa responderam-lhe. A escolha de Américo Tomás para se opor a Delgado foi astuta: precisamente porque não entusiasmava ninguém, o almirante também não inquietava. Santos Costa provou que a força armada estava com ele, através de uma exibição brutal de polícia nas ruas. No aniversário do 28 de Maio, em Braga, fez um discurso a reclamar as bandeiras de Delgado: "os homens do 28 de Maio somos nós, não são eles", "o Exército somos nós, não são eles", e por isso "os homens com medo são eles, não somos nós".
No fim, as autoridades reconheceram uma votação de 23,5 por cento a Delgado. Num eleitorado pequeno e vigiado, com menos de um mês de campanha, sem acesso à rádio, sem meios para impedir fraudes, era um resultado notável. Em 1959, Salazar desistiu de se submeter a outra provação semelhante, mudando o sistema de eleição do Presidente.
O desconhecido
Salazar tentou apagar algumas tensões, afastando Santos Costa e Marcelo Caetano no Verão de 1958. Delgado adoptou então o método das velhas conspirações republicanas de antes de 1926: a utilização de civis armados para ajudar jovens oficiais a tomar conta de instalações militares. Tudo falhou. Em grande medida, porque o medo não tinha acabado. Havia o medo da polícia. Mas era um medo que não impedia as pessoas, em privado, de comentar e maldizer, como se nota nas informações da PIDE. O medo maior não era esse: era o medo do desconhecido. Comentando a "revolta da Sé", em Março de 1959, Mário Soares notou: "o que sairia de um tal movimento se acaso tivesse triunfado? É difícil de prever". Havia republicanos e monárquicos, socialistas e comunistas, católicos e maçons. Eram capazes de se juntar para derrubar Salazar. Mas depois? Foi esse medo do imprevisível que também paralisou os generais que não acompanharam Delgado em 1958. Três anos depois, em Abril de 1961, tentaram obrigar Américo Tomás a fazer o que Delgado prometera: demitir Salazar. Quando Tomás resistiu e Salazar os demitiu a eles, desistiram. Queriam acabar com o poder de Salazar, mas tinham medo de "aventuras".
Delgado prometera a "adopção progressista e tão rápida quanto possível dos hábitos correntes nos países democráticos". Mas no seu discurso de Chaves, a 22 de Maio de 1958, admitiu que nada havia para "suceder a 30 anos de ditadura senão um regime de força". E reflectiu: "eu pergunto a alguém se tem qualquer ideia de como é que um país infantil do ponto de vista democrático, sem partidos organizados, completamente amorfo, louco, sedento de liberdade, se pensa que em vinte e quatro horas se podem fazer eleições gerais?" Quer dizer que Delgado, no imediato, oferecia sobretudo a expulsão do poder de Salazar e Santos Costa. Mas não podia garantir exactamente o que viria a seguir.
A oposição nunca confiou nele. É conhecida a resistência do PCP à sua candidatura. Mas os outros oposicionistas não foram muito mais acolhedores. Não era um dos deles. No fim de 1958, quando preparavam a visita a Portugal de um deputado trabalhista inglês, Delgado sugeriu que, para provocar agitação, arranjassem uns rapazes para lhe atirar "uns tomates", de modo que os salazaristas ficassem com as culpas. Os seus novos correligionários ficaram chocados: "era o antigo oficial da Legião Portuguesa que tinha vindo de súbito à superfície"(Mário Soares). Nas suas memórias, Santos Costa conta que perguntou a Aquilino Ribeiro se a oposição queria mesmo Delgado como presidente. Aquilino respondeu-lhe: "mas é evidente que não, meu caro amigo". O que "nós precisamos, acima de tudo, é de alguém que nos abra a porta. O resto se verá depois". Só que, como disse numa carta de 1958, Delgado não queria ser o Américo Tomás da oposição: se era essa a ideia, "enganaram-se no tipo de general que escolheram".
Delgado foi sempre em frente, "mais longe do que iria a maioria dos homens", como disse em 1962. No exílio desde 1959, conspirou com todos, adoptou os pontos de vista mais radicais. Foi dos primeiros não-comunistas a admitir a independência do ultramar, revelando a mesma ousadia de De Gaulle no caso da Argélia. Imprevisível e impetuoso, tornou-se insuportável para os outros oposicionistas. Permaneceu, porém, a referência principal do combate ao salazarismo. Como Silva Marques conta nas suas memórias, até aos simpatizantes do PCP o que mais interessava era "notícias de Humberto Delgado". Ao contrário do que por vezes se diz, a PIDE tinha razões para o matar. Um ano antes, em 1964, na cama de um hospital de Praga, magro e envelhecido, dissera a Mário Soares: "arrisquei e perdi tudo na luta: família, posição, amigos, dinheiro. Sou um homem aniquilado e terrivelmente só". Logo a seguir, porém, pediu champanhe para comemorar a visita de Soares. E uns meses depois, num novo encontro em Paris, efusivo, marcou-lhe "rendez-vous em Portugal". O desconhecido era, para ele, tão espesso como para os outros. Acontecia que ele, ao contrário dos outros, não tinha medo.
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário