Janeiro/2010
Rivais, os escritores portugueses José Saramago e António Lobo Antunes mobilizam partidários apaixonados e protagonizam uma disputa que envolve vida pessoal e literatura
Por Anna Carolina Mello
A rivalidade não é tão agressiva quanto a que se deu quando o escritor peruano Mario Vargas Llosa descobriu que sua mulher se envolvera com o ex-amigo Gabriel García Márquez; nem tão ressentida quanto aquela que o britânico Martin Amis provocou ao passar para trás a mulher do colega Julian Barnes, contratando outro agente literário. A rixa entre os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes não teve vexame ou dissolução de amizade. Mas há algo que a torna especialmente divertida: mesmo sem um motivo aparente para existir, ela mobiliza partidários apaixonados dos dois lados. Comparam-se as obras, medem-se os prêmios e até as vidas pessoais de ambos entram no escrutínio dessa disputa. Nesse embate, sobram palavras e apreciações pouco agradáveis.
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Recentemente, ambos despertaram os ânimos de suas respectivas torcidas com lançamentos quase simultâneos: Saramago, com Caim; Lobo Antunes, com Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?. Eles não se evitam na vida civil, como os citados acima, mas também não fazem questão de disfarçar a hostilidade. Em 1998, Lobo Antunes e seus partidários receberam o mais duro dos golpes: o Nobel de Literatura concedido a Saramago - o primeiro e provavelmente durante muito tempo único entre escritores de língua portuguesa. Na ocasião, um jornalista do The New York Times ligou para Lobo Antunes atrás, naturalmente, de declarações ácidas. Informado do ocorrido, Lobo Antunes silenciou por alguns segundos do outro lado da linha. Depois, fez-se de desentendido e, dizendo que a ligação estava ruim e que mal podia ouvir, desligou.
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Nessa época, Saramago já era bastante festejado no Brasil, com romances como Memorial do Convento (1982) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995). Lobo Antunes, ao contrário, era praticamente um desconhecido, com poucos e mal-vendidos livros, entre eles Os Cus de Judas (1979) e Manual dos Inquisidores (1996). Em 2000, durante a feira de livros de Frankfurt - em que são fechados os principais contratos de publicação do mundo - Lobo Antunes rejeitou um pedido de entrevista feita pelo jornal Folha de S.Paulo. "Deixem o Brasil para o Saramago. É o único lugar que ele tem", disparou. No ano passado, durante a Festa Literária Internacional de Paraty, voltou ao tema de forma mais bem-humorada. "Vocês gostam mais do outro", brincou com o público.
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Saramago, por seu turno, já disse que não conhece "esse sujeito" e que "não se interessa por ele". Em 1998, presenteado com um livro do oponente por um jornalista do tabloide português Tal & Qual, o escritor fechou a cara e devolveu o livro, porque acreditava ser uma provocação. A versão fantasiosa do fato, contudo, atiçou os ânimos: dizia-se que o autor havia jogado o exemplar no chão, por conta do título da reportagem - Atirado ao Chão -, que brincava com o nome do romance de Saramago, Levantado do Chão (1980).
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À parte as fofocas, existe a divisão literária. Nas páginas a seguir, os jornalistas e críticos José Castello e Paulo Polzonoff Jr., que no Brasil ocupam lados opostos nesse ringue, defendem cada um a obra de sua preferência. Apaixonada mas civilizadamente - sem vexame nem dissolução de amizade.
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O ENSAÍSTA ENVERGONHADO
Ao romper com as regras clássicas da gramática e optar por uma linguagem flutuante, Saramago questiona o dogma contemporâneo da clareza por José Castello
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José Saramago disse certa vez: "Talvez eu não seja um romancista, mas um ensaísta que escreve romances". Em vez de diminuir a potência de sua ficção, a ideia do ensaísta envergonhado a alarga. Para o escritor português, a literatura deixa de ser só uma experiência estética, ou um jogo de linguagem. Ela se alça ao posto de saber e ombreia com a verdade. Ao desestabilizar as certezas históricas com o sal da ficção, Saramago não só relativiza verdades consagradas, mas destaca seu aspecto imaginário. Ele amplia, ainda, o terreno da própria ficção, que deixa de ser apenas invenção e sonho, para se tornar algo bem mais potente: um elemento crucial na constituição do mundo.
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Personagens como o revisor Raimundo Silva, de História do Cerco de Lisboa - que, ao introduzir uma palavra inexistente em um ensaio histórico, revira a verdade - ou o escriturário sr. José, de Todos os Nomes - que completa com a imaginação as informações do Registro Civil -, ampliam a potência da verdade, em vez de danificá-la. Alargam, assim, as fronteiras da literatura, que deixa de ser uma ilusão a nos distrair da vida, para se tornar uma pergunta com que a perfuramos.
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Ao romper com as regras clássicas da gramática e optar por uma linguagem flutuante, Saramago questiona um dos mais sagrados dogmas contemporâneos: a clareza. Nem sempre a objetividade e a transparência são garantias de acesso à realidade. Ao contrário: retendo as coisas em sua moldura de luz, a clareza é, com frequência, falsificação. Para ele, só uma linguagem dançante, que acompanhe os deslizes e imperfeições do pensamento, nos aproxima, de fato, do mundo.
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Em uma era pragmática, Saramago se preocupa mais em seduzir e hipnotizar o leitor do que em convencê-lo. As dificuldades propostas por seus livros - como o sósia que perturba a vida do professor Tertuliano Máximo Afonso, em O Homem Duplicado - não são questões a desvendar, ou solucionar. São, ao contrário, desafios. Saramago sabe que a escrita nada mais pode que sondar o enigma humano. É a partir desse limite de desamparo (e sabedoria) que ele escreve.
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A tragédia relatada no Ensaio Sobre a Cegueira não atinge só os personagens do romance, mas o próprio leitor, que é obrigado, também, a "cegar-se" para lidar com o filtro opaco e limitado da língua. Os personagens de Saramago carregam em seus ombros o duplo sentido da palavra sujeito: se eles fazem e acontecem (afinal, a imaginação manda), estão também submetidos (sujeitos) às apertadas amarras que delimitam a realidade.
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Muitas vezes reduzida, injustamente, a um exercício de estilo, a literatura de Saramago é não só vital, mas convulsiona os fundamentos de nossas vidas. "Vivemos para dizer o que somos", o escritor insiste em afirmar. A literatura, para José Saramago, é a busca interminável (e fracassada) do outro. Por isso, não conseguimos abandonar seus livros.
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José Castello é jornalista e escritor, autor de Fantasma e A Literatura na Poltrona, entre outros.
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O CARPINTEIRO DA FRASE
Uma das maiores virtudes de Lobo Antunes é o desprezo por esta entidade cada vez mais homogênea chamada leitor Por Paulo Polzonoff Jr.
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António Lobo Antunes chamou minha atenção em 1998, em uma entrevista encontrada na internet. Lembro-me de ficar entusiasmado com frases como "Os leitores são umas putas. Amam-nos e depois nos deixam". Mas o que mais me atraiu naquele autor desconhecido foi a visão da literatura como uma obra de carpintaria - para tomar emprestada uma ideia do escritor mineiro Autran Dourado. O primeiro contato com um livro do escritor foi, entretanto, frustrante. Deliciosamente frustrante. Ao contrário de autores de vanguarda, como o irlandês James Joyce, havia mais do que um simples desejo de revolucionar a escrita na falta de linearidade daquela prosa. Havia um propósito.
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Mas mergulhar nos desvãos da mente humana é complicado. E Lobo Antunes sabe transpor para o papel esta complicação toda. É possível que o leitor se sinta atordoado. Aí é que encontramos mais uma (se não a maior) virtude do escritor: o desprezo para esta entidade cada vez mais homogênea chamada leitor. Não se deixe enganar: este desprezo é uma expressão de respeito pela individualidade do leitor. Na obra do escritor, nenhum grupo merece destaque. É como se não houvesse multidões. Os personagens são seres muito particulares, idiossincráticos, indefiníveis. O coletivo inexiste. As pessoas não andam nem agem em bando. Mais importante: não sentem em bando. Até mesmo a guerra não é vista como uma ação organizada de um grupo militar. Lobo Antunes olha para cada personagem com atenção individualizada.
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Esta atenção ao ser humano como unidade é a responsável tanto pela fama quanto pela rejeição à sua obra. Nos romances do português, não há grandes ilhas, e sim um gigantesco arquipélago formado por ilhotas individuais, cada qual com seus rios, vales, montanhas, praias e até vulcões. Mas seria um erro dizer que Lobo Antunes é um escritor para poucos. Sim, o estilo de seus romances pode afastar o leitor mais desprevenido. Os Cus de Judas, por exemplo, é um livro atordoante. Mas só até que o momento em que se estabelece um diálogo muito natural entre aqueles parágrafos interrompidos por digressões diversas.
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Lobo Antunes tem ainda um lado bastante acessível: o de cronista. Infelizmente, seus livros de crônicas não foram publicados no país. Nos textos curtos, ele exibe seu talento para o mundo pequeno de personagens menores ainda. Dramazinhos cotidianos alçados à condição de arte: o pompom da cortina emoldurado e pendurado no Louvre, ou o diálogo na padaria expresso com tanta beleza que pode levar (sem exagero) às lágrimas.
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O escritor é dono ainda de algumas das frases mais belas da língua portuguesa. Às vezes - ainda que isso possa parecer, na melhor das hipóteses, uma excentricidade -, gosto de abrir um calhamaço como Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo e ler apenas uma página, a esmo, em voz alta, saboreando o fraseado.
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Paulo Polzonoff Jr. é jornalista e tradutor. É autor de A Face Oculta De Nova York.
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http://bravonline.abril.com.br/conteudo/literatura/jose-saramago-antonio-lobo-antunes-fla-flu-romancistas-523931.shtml
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