08 de agosto de 2010
Porto Santo
de volta
.
As folhas dos dias estavam em branco
.
(gentileza de Amélia Pais)
.
Em Agosto havia
tempo e vagar. Obras
paradas, cães sem coleira
e um vizinho sentado à janela
entre cortinas de mofo. Hang on
sleepy town. Tudo adiado.
Sobrávamos nós, os conspiradores,
murados no terraço pela sombra
das montanhas; sobravam
também, toda a tarde,
as luzidias ilhas de vinil
em rotação –
e enquanto o espinho
de diamante as percorria,
víamos por vezes
acender-se na penumbra
a cidade de onde nos tinham
degredado desde sempre
e para sempre, tão forte
era o apelo da estranha língua
nativa: ruas sem retorno, negras
escadarias, túneis que levavam,
madrugada dentro, aos enredos
do futuro –
por favor, por favor,
que tudo comece. Num silêncio
sem paz nem sossego
ficávamos depois abandonados.
E esses foram, já se sabe,
os melhores dias.
.
Rui Pires Cabral
.
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Em Agosto havia
tempo e vagar. Obras
paradas, cães sem coleira
e um vizinho sentado à janela
entre cortinas de mofo. Hang on
sleepy town. Tudo adiado.
Sobrávamos nós, os conspiradores,
murados no terraço pela sombra
das montanhas; sobravam
também, toda a tarde,
as luzidias ilhas de vinil
em rotação –
e enquanto o espinho
de diamante as percorria,
víamos por vezes
acender-se na penumbra
a cidade de onde nos tinham
degredado desde sempre
e para sempre, tão forte
era o apelo da estranha língua
nativa: ruas sem retorno, negras
escadarias, túneis que levavam,
madrugada dentro, aos enredos
do futuro –
por favor, por favor,
que tudo comece. Num silêncio
sem paz nem sossego
ficávamos depois abandonados.
E esses foram, já se sabe,
os melhores dias.
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Rui Pires Cabral
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07 de agosto de 2010
Jeremy Lipking
manhã em traços largos
.
Cantar Para um Pastor
.
Acorda meu sangue preso
Acorda meu sangue mudo
Se te amo, não te amo
E meu cantar não diz tudo
Meu olhar de madrugada
Pastor da noite comprida
Luz no peito vigiada
Liberdade consentida
Acorda meu sangue preso
Rasga o ventre do meu dia
Se te amo, não te amo
Meu pastor de alegria
Meu pastor de alegria
Meu olhar de madrugada
Se eu piso campos verdes
É sempre noite na estrada
Se te amo, não te amo
Meu olhar da madrugada
Trago uma pomba de espanto
Nesta garganta velada
.
Matilde Rosa Araújo
.
Acorda meu sangue mudo
Se te amo, não te amo
E meu cantar não diz tudo
Meu olhar de madrugada
Pastor da noite comprida
Luz no peito vigiada
Liberdade consentida
Acorda meu sangue preso
Rasga o ventre do meu dia
Se te amo, não te amo
Meu pastor de alegria
Meu pastor de alegria
Meu olhar de madrugada
Se eu piso campos verdes
É sempre noite na estrada
Se te amo, não te amo
Meu olhar da madrugada
Trago uma pomba de espanto
Nesta garganta velada
.
Matilde Rosa Araújo
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Registo
.
(gentileza de Amélia Pais)
.
fotografo contigo.
a figueira, a porta
que se abre
depois da muralha.
fotografo tudo –
a ingenuidade dos olhos
de quem segura
as asas (o espírito)
desta terra.
acompanho o corpo presente,
um algarismo na pedra
− sinais resguardando a casa.
o rosto desaparece com o tempo.
Os braços abrem
entre a tinta e a madeira.
o vento nasce
− no interior
do mundo
.
Ruy Ventura
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fotografo contigo.
a figueira, a porta
que se abre
depois da muralha.
fotografo tudo –
a ingenuidade dos olhos
de quem segura
as asas (o espírito)
desta terra.
acompanho o corpo presente,
um algarismo na pedra
− sinais resguardando a casa.
o rosto desaparece com o tempo.
Os braços abrem
entre a tinta e a madeira.
o vento nasce
− no interior
do mundo
.
Ruy Ventura
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05 de agosto de 2010
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Soneto bucólico
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Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando;
O verso sem medidas, alegre e brando,
Expedindo no rústico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Na pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no estígio lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
.
Luís de Camões
.
Com o biquinho as penas ordenando;
O verso sem medidas, alegre e brando,
Expedindo no rústico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Na pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no estígio lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
.
Luís de Camões
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04 de agosto de 2010
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Valentino Radman
um pintor de Zadar
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Aprendamos o rito
.
Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.
Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes :
Nas perguntas que fazes é que mentes.
Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.
.
José Saramago
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Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.
Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes :
Nas perguntas que fazes é que mentes.
Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.
.
José Saramago
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A vigília do pescador
Na praia o vulto do pescador
É mais denso que a noite...
E enquanto espera
A sua ânsia solidifica em concha
E sonoriza os ventos livres do mar.
E enquanto espera
A sua ânsia descobre
os passos da maré na praia
e o sono do borco das canoas.
É manha
e o pescador
ainda espera
e enquanto o mar
Não lhe devolve o seu corpo de sonhos
Num lençol branco de escamas
Um torpor de baixa-mar
Denuncia algas nos seus ombros.
.
Arnaldo Santos
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É mais denso que a noite...
E enquanto espera
A sua ânsia solidifica em concha
E sonoriza os ventos livres do mar.
E enquanto espera
A sua ânsia descobre
os passos da maré na praia
e o sono do borco das canoas.
É manha
e o pescador
ainda espera
e enquanto o mar
Não lhe devolve o seu corpo de sonhos
Num lençol branco de escamas
Um torpor de baixa-mar
Denuncia algas nos seus ombros.
.
Arnaldo Santos
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