sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Portugal na Poesia de Alexandre O'Neill (excertos)

Arranjo gráfico de Luiz Duran para a contracapa da antologia Tomai Lá do O'Neill.
 
 
Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.  
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.  
Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
 
.
Também o medo a cantar ópera:
.
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários (muitos)
intelectuais (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
(...)  
Está lá a vida de cão que levámos, com ou sem poesia:
.
Cão formal da poesia
cão estouvado de alegria
cão moído de pancada
e condoído do dono
cão de gravata pendente
e remexido rabo ausente...
.
Está lá a “vidinha” que aceitámos:
.
A poesia é a vida? pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem

- e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo de um poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.
.
Está lá a Pátria que nos pariu:
.
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
(...)
Ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
(...)
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
.
E ainda:  
.
País engravatado todo o ano
e a assoar-se à gravata por engano.
.
Por tudo isto não me espanta que o Alexandre O’Neill afirme:
.
António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,

por isso gosto dele (ai de mim, coitadinho ! )
.
.
http://www.vidaslusofonas.pt/alexandre_o_neill.htm
.
.

Sem comentários: