BD
Nos labirintos da vida
- Mü, a Cidade Perdida
- Hugo Pratt (argumento e desenho)
- Tradução de Paula Caetano Edições Asa
. Todos procuram a entrada "para um mundo subterrâneo, para Aztlan, o reino perdido de Posídon", afirma Colombia a um auditório extremamente interessado. A tarefa não é simples, diz Steiner: "Para entrar no mundo das lendas é necessário ser-se criança ou iniciado." A consequência maior desta asserção é que apenas a Corto será permitido percorrer o difícil e perigoso caminho que leva até à luz, desafiando os seus medos e fantasmas, debatendo-se com a dúvida acerca da sua própria experiência libertadora e superando os desafios que o fazem transcender-se. É uma viagem labiríntica, quase claustrofóbica, brilhante metáfora sobre os múltiplos caminhos da existência humana que levam ao conhecimento de si mesmo. Não por acaso, e com alguma ironia, o monge irlandês Brendan lembra que um labirinto é feito para nos perdermos nele. É uma forma de recordar a Corto Maltese que ele terá de sair dali sozinho e pelos seus passos, sem ajuda externa. Talvez a observação seja redundante, talvez seja pertinente, mas o certo é que o herói está mais interessado em encontrar Soledad, a amiga desaparecida misteriosamente de bordo do navio ancorado...
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Há de tudo em "Mü, a Cidade Perdida" - um caimão gigantesco, um guerreiro índio musculado, homens-escorpiões e o próprio Rasputine, que vê Corto enterrar-se em areias movediças com a maior das indiferenças. Mas nem os mais clarividentes esperariam ver o herói num corpo-a-corpo com a sua própria sombra, provisoriamente perdida. As implicações são enormes, pois um homem sem sombra não pode progredir no "labirinto harmónico" sem a recuperar. Será mesmo necessário morrer para renascer, condição essencial para acabar com o pesadelo?
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Ao situar o enredo da história em torno da Atlântida, o propósito de Hugo Pratt era o regresso à "tradição das bandas desenhadas de aventuras dos anos 30". Em particular, o autor aludiu uma vez à série norte-americana Brick Bradford, de Clarence Gray (desenho) e William Ritt (texto), onde também há incursões nas civilizações pré-colombianas, e chegou a admitir que os dois heróis viessem a encontrar-se ("gosto da ideia de fazer reencontrarem-se personagens de banda desenhada"). De facto, tal não aconteceu, mas nem por isso o resultado é menos fantástico: "Mü, a Cidade Perdida", relativamente mal-amada mesmo pelos mais incondicionais admiradores de Pratt e do seu herói, pode ser considerada a mais estranha aventura de Corto Maltese, passada num mundo sem tempo nem lugar, território da eternidade impregnado de lendas, símbolos e mistérios que ocultam a sua decifração a cada passo do herói em direcção a eles.
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Nesta última banda desenhada, o autor aprofunda um registo narrativo e gráfico que já era bem visível na obra imediatamente anterior ("As Helvéticas"). A matriz histórica, política e de aventuras - que contribuíra para a legítima popularidade da série - cede lugar a uma maior ênfase na dimensão "contemplativa", que é característica dos últimos anos da vida de Pratt. Dominique Petitfaux, o grande biógrafo do criador veneziano, lembra que "Mü" é "mais onírica do que realista", mas também "mais irónica do que onírica": "Nessa época ele estava 'do outro lado do espelho', num mundo de mitos e desejoso de render homenagem aos que o tinham ajudado a construir o seu universo interior." Por isso, não surpreende que o artista invista pouco no grafismo, que aparece aos olhos dos admiradores mais radicais um pouco simplificado, e mesmo descuidado. Mas esse é apenas um efeito externo de algo mais essencial, assim sintetizado por Dominique Petitfaux: "A continuação dos episódios de Corto Maltese e as mudanças que se podem constatar remetem-nos, em última análise, para a evolução íntima do autor, para o seu envelhecimento e, indo ainda mais além, para essa realidade última que é a passagem do tempo."
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Há de tudo em "Mü, a Cidade Perdida" - um caimão gigantesco, um guerreiro índio musculado, homens-escorpiões e o próprio Rasputine, que vê Corto enterrar-se em areias movediças com a maior das indiferenças. Mas nem os mais clarividentes esperariam ver o herói num corpo-a-corpo com a sua própria sombra, provisoriamente perdida. As implicações são enormes, pois um homem sem sombra não pode progredir no "labirinto harmónico" sem a recuperar. Será mesmo necessário morrer para renascer, condição essencial para acabar com o pesadelo?
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Ao situar o enredo da história em torno da Atlântida, o propósito de Hugo Pratt era o regresso à "tradição das bandas desenhadas de aventuras dos anos 30". Em particular, o autor aludiu uma vez à série norte-americana Brick Bradford, de Clarence Gray (desenho) e William Ritt (texto), onde também há incursões nas civilizações pré-colombianas, e chegou a admitir que os dois heróis viessem a encontrar-se ("gosto da ideia de fazer reencontrarem-se personagens de banda desenhada"). De facto, tal não aconteceu, mas nem por isso o resultado é menos fantástico: "Mü, a Cidade Perdida", relativamente mal-amada mesmo pelos mais incondicionais admiradores de Pratt e do seu herói, pode ser considerada a mais estranha aventura de Corto Maltese, passada num mundo sem tempo nem lugar, território da eternidade impregnado de lendas, símbolos e mistérios que ocultam a sua decifração a cada passo do herói em direcção a eles.
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Nesta última banda desenhada, o autor aprofunda um registo narrativo e gráfico que já era bem visível na obra imediatamente anterior ("As Helvéticas"). A matriz histórica, política e de aventuras - que contribuíra para a legítima popularidade da série - cede lugar a uma maior ênfase na dimensão "contemplativa", que é característica dos últimos anos da vida de Pratt. Dominique Petitfaux, o grande biógrafo do criador veneziano, lembra que "Mü" é "mais onírica do que realista", mas também "mais irónica do que onírica": "Nessa época ele estava 'do outro lado do espelho', num mundo de mitos e desejoso de render homenagem aos que o tinham ajudado a construir o seu universo interior." Por isso, não surpreende que o artista invista pouco no grafismo, que aparece aos olhos dos admiradores mais radicais um pouco simplificado, e mesmo descuidado. Mas esse é apenas um efeito externo de algo mais essencial, assim sintetizado por Dominique Petitfaux: "A continuação dos episódios de Corto Maltese e as mudanças que se podem constatar remetem-nos, em última análise, para a evolução íntima do autor, para o seu envelhecimento e, indo ainda mais além, para essa realidade última que é a passagem do tempo."
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