domingo, 26 de setembro de 2010

A nova geração de escritores no ano da morte de José Saramago



Ípsilon
Vítor Ferreira
Ideologia

A nova geração de escritores no ano da morte de José Saramago

05.08.2010 - Raquel Ribeiro

A morte de José Saramago é o fim simbólico de uma geração politicamente comprometida. 
.Como é que os novos escritores lidam com a ideologia? O Ípsilon falou com aqueles que podem vir a ser os herdeiros do Nobel português
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A literatura pode viver até de uma forma conflituosa com a ideologia. O que não pode é viver fora da ideologia.
.José Saramago
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A morte de José Saramago em Junho representou o fim de uma geração politicamente comprometida, de uma literatura de causas, herdeira da luta contra o fascismo e a censura, do fim da ditadura, do colapso do Império, da transição para a democracia e da adesão à Europa.
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Este é o ano da morte de José Saramago. No seu obituário, no "Expresso", Clara Ferreira Alves escreveu que pode ser que "um dia um escritor ainda sem nome se sinta tentado a escrever um livro com este título", ecoando "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Porque, tal como nesse ano (1936), "este é um ano em que estão a acontecer muitas coisas, é um ano histórico e da história, um ano implacável, um ano de princípios e de fins".

Esse(a) escritor(a) pode ainda não ter nome, mas não significa que este ano, este Portugal, esta crise, este mundo em que vivemos não preocupem os nomes da nova literatura portuguesa. E também não significa que, apesar de lidarem de outra forma com o comprometimento ideológico na literatura, estes jovens escritores não tenham ideias muito próprias (ideológicas, até) sobre a função social (ou política) da literatura.

À sombra da montanha
A figura de José Saramago é uma "montanha na paisagem dos autores portugueses dos últimos 40 anos. E a sua sombra acaba por ser ampla", diz o escritor José Luís Peixoto, 35 anos. É à sombra da montanha Saramago que a nova literatura portuguesa terá de viver (para o bem e para o mal).
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Num artigo publicado pelo "Le Monde Diplomatique" de Julho, em homenagem a Saramago, João Tordo, 34 anos, escreveu que a morte do Nobel "marca o fim de uma era na literatura portuguesa", mas, ao mesmo tempo, "deixa o caminho aberto a uma nova geração que deve agora assumir-se, não como os 'herdeiros', mas como os viajantes nessa mesma estrada que o Nobel logrou abrir". Tordo afirma que "é responsabilidade dos que ficam (...) não deixar que esse caminho termine, abruptamente, num beco sem saída".

Nem todos querem percorrer essa estrada. Pedro Rosa Mendes, 42 anos, reconhece que vai criar inimigos em Portugal por dizer que, "enquanto leitor, humildemente, o grande romancista contemporâneo português é o [António] Lobo Antunes". Explica: "O que o Lobo Antunes tem a mais do que o Saramago como grande autor é a liberdade ideológica; é ser um homem livre. Várias vezes tive a sensação de que Saramago era um escritor aprisionado dentro de um homem livre nas suas opiniões, no sentido em que o homem era mais livre do que o escritor, mais livre do que a ficção que escrevia. Há um programa e há uma obrigação política na ficção do Saramago. Isso comporta a qualidade da coerência física, mas tem o grande problema da qualidade criativa."

É essa liberdade que talvez Saramago tivesse no princípio, antes dos "Ensaios", explica Dulce Maria Cardoso - antes dessa "acção totalitária de que todos temos de fazer o mesmo, de pensar como a massa, de votar em branco". Saramago era "uma espécie de autoridade moral, como se dissesse 'agora está tudo errado e eu vou mostrar como isto dever ser feito'. Tinha ideias muito claras acerca do mundo: havia os bons e os maus. É tudo muito mais complexo. A maioria dos activistas acha que é preciso um fundamentalismo para mudar as coisas. Quando isso acontece, cegamos. É perigoso."

Peixoto foi Prémio José Saramago em 2001. valter hugo mãe em 2007. João Tordo em 2009. Pedro Rosa Mendes nunca venceu um Prémio José Saramago - nem pode porque tem mais de 35 anos. Dulce Maria Cardoso, 45, também não. É, aliás, crítica da "obsessão com a juventude desta sociedade", e admite que isso também é uma contradição no prémio de que Saramago era patrono: "Ele é uma espécie de mito, a prova de que a força do trabalho e do talento resulta: nasceu pobre, nunca pertenceu à elite privilegiada e prova que, se nos esforçarmos e trabalharmos muito, chegamos lá. Começou a escrever muito tarde. Mas é o patrono de um prémio a que só se pode concorrer até aos 35 anos. Isso mostra o quão difícil é pôr a teoria em prática." Tendo em conta a idade com que começou a escrever regularmente, Saramago não teria podido concorrer ao seu próprio prémio.

Políticos apartidários
Para valter hugo mãe, o mundo mudou. Este já não é o tempo da escrita de Saramago, ideológica, política e socialmente comprometida. Acima de tudo, o que estes escritores não querem é pertencer a um partido: "O nosso tempo não se compadece com grandes paixões partidárias. O compromisso com o PCP do Saramago é mais do que uma preocupação política, é partidária. Perdemos a euforia pela construção de uma democracia que as pessoas da geração do Saramago tinham."
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Aqui, política e partidarismo não se confundem, tal como não se confundem o escritor com o cidadão. No caso de Saramago, o compromisso ideológico do escritor esteve sempre ligado ao marxismo ("Serve-me para compreender o mundo", disse o Nobel numa entrevista a Carlos Reis, em "Diálogos com José Saramago) e o compromisso político do cidadão esteve sempre ligado ao Partido Comunista.

Destes novos escritores não se pode dizer que sejam apolíticos. Pelo contrário: valter hugo mãe faz parte da comissão de honra da candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República. Aceitou o convite, pela segunda vez, "porque além de estar convicto de que ele é o Presidente ideal, é também o único candidato que poderá derrotar Cavaco" - "E eu não seria um saramaguiano convicto se não quisesse que Cavaco saísse", sublinha.

José Luís Peixoto já esteve ao lado do Bloco de Esquerda e participou activamente em campanhas eleitorais. Não é filiado. Mas separa essa participação da tarefa de escritor: "É uma forma de participação cívica que qualquer cidadão pode escolher ter. Não me inibo de a ter, mas acredito que os meus livros existem noutra dimensão." Considera-se "politicamente de esquerda": "Nunca me considerei de direita e não consigo compreender o que é o centro e como se é do centro. As minhas ideias sempre se inclinaram para esse lado esquerdo e pela forma como ele vem sendo desenhado desde os ideais da Revolução Francesa. Vejo as coisas de diferentes perspectivas: muda o próprio mundo e eu com ele."

Pedro Rosa Mendes, Dulce Maria Cardoso ou João Tordo, por nunca terem militado, não são necessariamente menos politizados. Mendes explica que nunca lhe "passou pela cabeça fazer política" e que os partidos políticos "são mais plataformas e aparelhos que determinam o que fazer para fazer política, e menos fóruns de ideias e de debate". Inscreveu-se numa juventude partidária quando era estudante de Direito, mas nunca foi às reuniões. O jornalismo também pode ter tido um papel nessa não-pertença. "Sou uma pessoa muito politizada. Interesso-me por política. É politicamente que olho para a realidade e isso determina e influencia a forma politizada como escrevo e a ficção que faço."

Dulce Maria Cardoso concorda. Como cidadã (e como escritora), tem uma opinião política ("só um cidadão lobotomizado não a tem"), mas diz que "a obra é uma coisa, a pessoa é outra". Na classe política, não confia: "Há tão pouca sinceridade que é muito difícil pensar seriamente na actividade partidária. Não há responsabilização pelos erros cometidos, há um desvio da coisa pública em função de interesses privados." Isso não quer dizer que a ficção não seja uma leitura política do mundo. valter hugo mãe: "Tudo o que escrevo há-de ter uma profundidade política subjacente, mas não estou disponível para abraçar partidariamente nenhuma orientação. Frustra-me, não me identifico rigorosamente com ninguém, enquanto não se resolver este modo inquinado de governar."

Há aqui um tom de profunda desilusão. E estas ideias vão ao encontro da eterna discussão sobre o divórcio entre os cidadãos e a política. João Tordo é um céptico convicto, desconfiado de toda a bondade humana: "Tenho uma permanente dúvida acerca de tudo. Sou incapaz de dogma, não posso ser partidário. Não tenho ortodoxias. Não sou inconformista nem sou rebelde. Voto, mas não participo em manifestações. Certas vezes reconheço que foi por desinteresse, grande parte das vezes foi por não acreditar." Mais do que políticos apartidários, estes escritores são cépticos politizados.

Mundos negros, outras causas

Mas a ideologia pode ser, nesta geração, outro tipo de compromisso. João Tordo afirma que esta crise económica o "preocupa pessoalmente": "Enquanto escritor, escreves sempre em resposta a alguma coisa. O mundo está a passar por um momento negro. Espero que as obras sejam uma reflexão sobre isso".
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Para Tordo, a literatura não tem de "ter um dever cívico": "Não acho que seja para propagar causas. Posso até fazer isso num livro, mas longe de mim educar alguém. Qualquer escritor que o faça intencionalmente cai no risco de se tornar um demagogo". O seu próximo romance sai no final do mês. Chama-se "O Bom Inverno" e, explica Tordo, "não tem nada de causa social, nem ensina nada a ninguém: são 12 pessoas fechadas num sítio, num bosque isolado. Não é um policial, nem é uma história de crime. É um estudo de personagens." Mas Portugal preocupa-o, porque "esta crise é a nossa ditadura". Está a preparar um romance que só sairá em 2011 "sobre um acontecimento que marcou a história política portuguesa, nos anos 50". O seu objectivo é "buscar um sentido para tudo isto, para a situação estranha que vivemos neste momento".

Tal como Tordo, Dulce Maria Cardoso sente-se incomodada com os abusos de poder, mas "tornar isto matéria literária não me interessa, e a literatura não serve para isso, serve para criar ficções, criar mundos". Nesse "apenas" que é a escrita de um livro está "a ambição toda do mundo". O seu segundo romance, "Os Meus Sentimentos", reflecte sobre o "desencanto com a forma como a Revolução acabou", e há "bufos do antigo regime que transitaram pacificamente de uma para a outra situação". Eles andam aqui, entre nós. A ideologia, explica Cardoso, "está na escolha das personagens": "Não é ao acaso que te surgem personagens com aquelas vidas: uma depiladora, um jornalista, um político."

Cardoso diz que se há uma "causa" nos seus livros, é a do sofrimento. "Alguém atento aos meus livros notará que sou contra o sofrimento animal. Mas não quero fazê-lo enquanto activista. Gosto mais de histórias. Mas sou sensível ao sofrimento de todas as formas, dos animais, dos injustiçados, dos que têm fome". No livro que está a escrever, reflecte sobre o retorno de Angola (de onde saiu na infância, via Ponte Aérea), o fim do Império e as suas consequências no Portugal contemporâneo.

Mais do que ideologia, diz José Luís Peixoto, "é a convicção que alimenta o livro". "A ideologia é, à partida, um sistema social e/ou político, a convicção pode ser outra coisa. O escritor, pela natureza do que faz, integra essa condição de uma forma implícita, não a escolhe. Acaba por comunicar sempre com a sociedade". Mas não deve "delinear a papel químico as suas convicções políticas": o livro deverá ser "o mais completo e humano possível, e o humano é constituído por muitas e complexas vertentes", argumenta. Aliás, "Nenhum Olhar" é exemplo de como Peixoto não acredita que "os textos devam ser uma fotocópia de convicções do autor": aquelas personagens "não encontram uma saída, deixam-se abater perante as dificuldades", explica. Para Peixoto, a escrita é bondade, o altruísmo "é um órgão essencial ao seu funcionamento". "Se partir logo sem essa bondade, é vazio. Com isto não quero dizer que não tenha lá, explícita, uma ideia social ou uma utopia. Mas quero que tenha uma bondade, e que a esperança nessa bondade se multiplique". No seu novo romance (sai no Outono), "Livro", Peixoto traça um retrato de Portugal dos anos 40 até aos nossos dias. É sobre a imigração, mas "é sobre muitas mais coisas". Quando o tempo narrativo chega à actualidade, "confronta-se a visão que os imigrantes têm de Portugal e, através dela, tenta-se reflectir sobre o país. Não sendo um manifesto social, tem uma dimensão sociológica", diz.

O real social
valter hugo mãe admite que é em livros como "O Apocalipse dos Trabalhadores" que faz a sua política. Esse livro é uma "moção de sobrevivência no limiar da dignidade laboral. É a história de duas mulheres-a-dias aquém do sistema. Nem se pode falar [aqui] da precariedade dos recibos verdes, porque a mulher-a-dias é uma excrescência do tecido laboral." O livro mostra como, dentro dessa estigmatização, aquelas mulheres conseguem atingir "uma utopia da felicidade". É essa a "perspectiva útil da literatura" em que mãe acredita. "Não a literatura esgotada numa função, tem de ter sempre uma componente estética, mas uma literatura que sirva o leitor. Interessa-me que os livros sejam contra a indiferença, contra a desmobilização. Esse era o bastião de Saramago, incitar as pessoas à consciencialização." O mesmo se passa em "A Máquina de Fazer Espanhóis", por exemplo, sobre a estrutura das novas famílias, o desprezo pela terceira idade ou a herança histórica de uma geração de portugueses.

Para Pedro Rosa Mendes, a ficção "não é uma forma de fazer política". Sente, aliás, uma desconfiança em "relação à politização da ficção". Mas há algo que lhe interessa: "Uma dimensão política da realidade." Em "Peregrinação de Enmanuel Jhesus", Rosa Mendes não está "ali a defender nada, não há um programa político, não há um a favor e um contra. No entanto, o livro é profundamente político porque todas as vozes são as vozes de um projecto de sociedade ou de uma postura filosófica perante aquele mundo". Não são as dele, lá está: "Isso faço noutro lado." O jornalismo dá-lhe a realidade. Essa ideia de real é que é importante. "O real é essencial: não estou a escrever sobre o meu mundo ou a minha depressão", sublinha, para logo acrescentar: "Os meus botões são infinitamente menos importantes do que as coisas que eu vi."
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"A criação portuguesa", lamenta, "é muito virada para si própria, onírica e introspectiva". Nesse sentido há "um défice de real", e a realidade torna-se "sempre aquilo que estamos a viver dela". Mas há outra, há outras. "A política é isso: um exercício de imaginação apartir da realidade, uma utopia, e isso faz a história do indivíduo com o mundo."
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