Enric Vives-Rubio
Rui Cardoso Martins
Viagem entre a vida e a morte pelas entranhas de Lisboa
27.07.2009 - Alexandra Lucas Coelho
Há uma catástrofe em Lisboa. Um cego e uma criança caem num esgoto. Caminham por baixo da terra, a contar histórias um ao outro. Rui Cardoso Martins acredita que há palavras que salvam. Mas nós nunca mais vamos andar por Lisboa da mesma forma depois de ler "Deixem Passar o Homem Invisível".
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Igreja de S. Sebastião da Pedreira (sem o autor)
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Julho e, olá, que é isto? De repente o céu desce, Lisboa muda de cara, uma chuva fina como picos de água com gás, e flores de buganvília a rodopiarem na sarjeta, sopradas pelo vento. Pelo menos desde 1755 sabemos que todo o mal pode acontecer, e quando faz sol não se acredita. Até parece que temos os pés no chão. Mas o chão é só uma tampa entre nós e o fundo. E no fundo, basalto, vermes, ratos. Pedacinhos de ossos, diria Camilo Pessanha, se não fossem mesmo esqueletos inteiros.
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Por exemplo, aqui, em S. Sebastião da Pedreira, o Marquês de Pombal "mandou abrir uma sepultura para milhares de corpos", lembra Rui Cardoso Martins em "Deixem Passar o Homem Invisível", o seu segundo romance. "A zona que vai desde o Parque, ali acima, até debaixo dos armazéns espanhóis e provavelmente parte desta encosta, serviu de vala comum no Terramoto de 1755."
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Não se pode andar em Lisboa da mesma forma depois de ler este livro e o largo de S. Sebastião é só o princípio - da viagem entre a vida e a morte que é o livro, e da conversa peripatética que o Ípsilon propôs ao autor.
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O encontro ficou marcado para as 11h30 e agora são 11h15, o autor ainda não chegou. Dá para entrar na igreja e procurar aquele anjo azul com uns olhos raspados amarelo-gema, dois sóis no lugar dos olhos. Está na capa do livro.
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A igreja tem uma escada de cada lado e ao cimo uma varanda. Há um som de broca no ar, as cáries de Lisboa sempre em reparação. Mas quando se empurra a porta de vidro, a temperatura cai e a cidade desaparece. Fica aquele silêncio das igrejas que cheira a pedra fria e a lamparina.
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António, o cego do livro, também faz isto. Entra com a sua mulher na igreja para ver as cenas em azulejo. "Ver não é um verbo proibido entre os cegos, pelo contrário", aprendeu o autor.
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Fachada e escadarias enganam. A igreja de S. Sebastião é inesperadamente pequena. Altar em talha dourada, paredes cobertas com a vida do santo, três nucas de mulheres e uma nuca de homem entre os bancos corridos.
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Mas há outro homem de pé, agarrado às grades da capela baptismal, como faria um prisioneiro.
Quando ele sai é possível espreitar a imagem por cima da pia, presumivelmente João Baptista a baptizar um Jesus de mãos cruzadas sobre o seio, e Deus sobre ambos, sentado numa nuvem.
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Do céu à caixinha de "esmolas pelas almas do Purgatório", trata-se sempre e sem dúvida de fé. Mas ter fé é diferente de acreditar, aprendeu o autor à sua custa.
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Uma "piedosa matrona que extrae as setas ao mártir S. Sebastião" aparece na capela seguinte, e este S. Sebastião dá ares de Johnny Depp com sobrancelhas depiladas, cabelo em cachos, bíceps de Neptuno. Mirem-se no exemplo, já lá estava tudo.
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Várias figuras de azulejo têm os olhos raspados mas nenhuma se parece com o anjo da capa.
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De volta à varanda, ainda sopra aquela espécie de chuva. Passa um avião quase a aterrar no meio das casas. Mais um medo que Lisboa tem, e logo esquece.
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Uma camioneta de móveis do Redondo descarrega do outro lado da rua. A esquina dos "armazéns espanhóis" anuncia descontos de 70 por cento. O pátio ao lado da igreja tem três velhos bancos de madeira atados com cordas. Certamente já aqui se sentou alguém que acredite em milagres.
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Igreja de S. Sebastião da Pedreira (com o autor)
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Antes das 9h, o autor estava a deixar os filhos, Henrique e Sara, a seguir foi fazer exercício e portanto chega cheio de fome. Enquanto come uma sandes mista na esplanada mais próxima da igreja, passa um cavalheiro rechonchudo, que pára de repente, todo ele entusiasmo.
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- Bom dia! Tenho aqui umas colónias muito boas, quer ver?
Rui Cardoso Martins quase se engasga.
- Umas quê?
- Umas colónias!
- ...
- Perfumes!
Com a sua gentileza habitual, o autor declina, e acaba a sandes a matutar, enquanto o vendedor se afasta.
- Só me acontecem coisas malucas. Umas colónias! Daqui a pouco era o Mapa Cor-de-Rosa.
- Andei na igreja à procura do anjo da capa, mas não o encontrei.
- Esse não está lá. Está no Museu do Azulejo. Um amigo meu fotografou-o.
Aquilo dos olhos raspados foi uma epidemia vândala. Os azulejos começaram a aparecer por aí assim.
Subimos à igreja e Rui espreita o pátio com os velhos bancos.
- Os escuteiros são aqui.
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Isto é relevante para o livro, porque o companheiro de viagem do cego António é um escuteiro de oito anos chamado João. Agarram-se um ao outro durante uma enxurrada monumental em Lisboa que os apanha em frente a esta igreja. Até que o chão cede.
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"Deixem Passar o Homem Invisível" é, então, a odisseia de António e João por um antigo esgoto que desce pelas entranhas de Lisboa, de S. Sebastião ao Tejo. As autoridades salvadoras vão descrendo que eles possam estar vivos, mas há quem continue a acreditar, como o mágico Serip (Pires ao contrário), que vai gritando em italo-português pelas grades das sarjetas, enquanto faz o percurso à superfície.
Fora gritar, é isso que vamos fazer esta manhã.
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- Eu tinha a ideia de que seria possível atravessar Lisboa por baixo, a descida ao Rio dos Infernos - diz Rui na varanda da igreja, a olhar para o chão onde no livro se abre o buraco.
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Nada que a realidade não tenha inventado. Aconteceu por exemplo a um autocarro de Lisboa.
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- Andei em investigações no Museu da Água, onde falei com o dr. Raul.
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Este dr. Raul também se chama dr. Raul no livro, tal como as investigações do livro, em busca dos mapas de velhos boqueirões, são as que o autor fez.
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- Eu queria partir de S. Sebastião por ser uma vala comum do Terramoto. Ali está a cidade nova, os armazéns espanhóis, aqui uma igreja muito bonita. Escavar o basalto para o metro nesta zona foi terrível, teve de ser com uma broca.
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Rui Cardoso Martins viu fotografias e leu os livros da construção do metro, um dos três subterrâneos de Lisboa (os outros são esgotos e águas limpas). E apesar da falta de mapas, porque muitos arderam nos vários incêndios da câmara, confirmou a existência de um boqueirão entre S. Sebastião e o rio, primeiro tão apertado que obriga a andar de gatas, e depois com mais de dois metros.
Perguntou ao dr. Raul:
- É possível entrar aqui e sair no Tejo?
O perito não viu razão para que não fosse.
- A partir daí podia começar a aventura.
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Debaixo do chão ser cego não é desvantagem, porque não se vê nada de qualquer forma, e a única coisa em que os cegos são diferentes das outras pessoas é nisso. "Cegos são pessoas que não vêem, na minha opinião", diz a epígrafe do livro. Ou seja, não são atrasados nem surdos.
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- Tive um amigo cego no liceu, lá em Portalegre, um tipo bestial. Sempre pensei fazer um livro que colocasse os cegos na sua dimensão humana. É o contrário de os transformar em metáfora e alegoria, ou do ensino do papel social de ceguinho, que tem de ser modesto, que não pode dizer que gosta de mulheres.
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António não é modesto e o que mais quer ver são mulheres bonitas.
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Mas a Rui Cardoso Martins também interessava a ideia do milagre, até que ponto se acredita, e fez uma viagem a Fátima de propósito.
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- Quando um cego cega, vai passando de milagre falhado em milagre falhado.
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Essas são as viagens em que "é preciso comer alguma coisa ou o Apocalipse cai-nos na fraqueza".
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Rua de S. Sebastião
Damos as costas à igreja, descendo a rua pelo meio da rua, uma sina lisboeta. Passeios curtos, persianas encardidas, molas sem roupa, A Lealdade Penhores, Lda.
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Tudo isto é a capital de que Rui aprendeu a gostar. Nascido em Portalegre em 1967, vive em Lisboa desde a universidade (Comunicação Social na Nova, fomos colegas de turma, já esclareci isto uma vez). De resto, talvez apenas um alentejano possa escrever que "o pão nunca se deita fora, só em último caso, bolor negro ou rato", e outras frases deste romance.
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A sua estreia tão forte, "E Se Eu Gostasse Muito de Morrer", teve mais de uma edição em Portugal, tradução em Espanha e vai sair agora na Hungria. Quem o tenha lido deixou Rui Cardoso Martins naquele sem-tempo da infância alentejana, e vai reencontrá-lo agora em Lisboa no tempo dos GPS.
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- Ainda o primeiro livro não tinha saído e eu já estava a pensar neste. Até fui ver "A Última Ceia". Eu preciso de ver.
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"A Última Ceia" está em Milão, e isso também está no livro, em "flashback". António, o cego, e Serip, o mágico, fazem um "trucco" para contornar as filas de espera e ver a obra-prima de Leonardo.
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E agora atenção, do lado direito da rua:
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- Sushi alentejano! - O autor aproxima-se do menu na porta, que diz "Eddy's Kitchen ®". - Marca registada! Gosto muito quando dois mundos colidem.
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De certa forma, é o que vai acontecer também um bocadinho mais à frente, no antigo bebedor de cavalos, agora abrigo de homens. Sacos de plástico, garrafas de água vazias, um carrinho de bebé podre, o cimo de uma cabeça a mexer-se do lado de lá do muro.
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- Está ali um sem-abrigo.
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A cabeça mostra a cara. É uma mulher de boné. Começa a grasnar como um corvo.
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Rui sabe de uma indignação monárquica, aqui. Quando um homem não levantou bem a bandeira à sua passagem, o rei D. Carlos exclamou: "Seu alarve!"
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- E a freguesia ficou a chamar-se dos Alarves.
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Uns metros mais e passamos por baixo da Rua Filipe Folque. As escadas que vêm de cima têm um "graffito" com cara de boneco japonês e asas de anjo.
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- Um dia vim fazer este caminho como estamos a fazer agora. Era um dia em que tinha de matar o tempo, o dia em que a Tereza fez a operação de quase nove horas, em Santa Maria.
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A Tereza é a mulher com quem Rui começou a namorar há 14 anos e casou há 10, mãe do Henrique e da Sara, jornalista, crítica de livros, editora, biógrafa, argumentista - Tereza Coelho. Quem leu jornais e livros em Portugal desde os anos 80, leu-a de certeza, e não se esquece. Escrevia sem esforço e fulminante, via-se logo que era dela, e escreveu muito, mas como se não tivesse importância, porque o que ela queria mesmo era ler. Não há muitos escritores assim.
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Foi a equipa do Santa Maria que pôs Rui a andar, no dia da operação. Acharam que ia dar em maluco se ficasse ali.
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- Fiz este caminho, voltei lá ao fim da tarde e tinha corrido muito bem.
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Um tumor fora da cabeça.
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Depois Rui começou a escrever "Deixem Passar o Homem Invisível" no Natal de 2007.
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- E entreguei-o à Tereza um ano depois. Já estava lá a frase final.
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Leiam para crer. É o livro de um amor como no poema de Quevedo, "hão-de ser pó, mas pó enamorado", alguém duvida? No dia a seguir a Rui lhe entregar o livro, Tereza foi outra vez hospitalizada e morreu semanas depois, de uma septicémia.
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"Minha Olívia Palito, onde estás tu, querida, para te salvar?", pergunta António, dentro do esgoto quando pensa na mulher. "Queria dar-te mais um beijo, abraçar-te na nossa casa pequenina."
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Rui caminha pelo meio da rua vestido de preto, com os anéis de Tereza no dedo mindinho.
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S. Sebastião/Viriato/Andaluz
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Estamos na ponta final da Rua de S. Sebastião da Pedreira, quase à esquina da Rua do Viriato, onde fica o PÚBLICO, casa de Rui Cardoso Martins durante vários anos de grande jornalismo como repórter e cronista. E eis que sobe em sentido contrário um dos seus amigos de lá e até hoje, David Lopes Ramos. Mal nos vê, nem precisa de perguntar:
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- Já sei o que estão a fazer.
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Não só já leu o livro como até lá vem citado, a propósito desse petisco que é a vida.
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E sobre isso tem o narrador muito a dizer: "Qualquer pessoa encontra nos santos algo que lhe diga respeito: a vida é dura." Ou: "O mundo é um lugar perigoso e vai piorar." Ou: "Também apendi a ser mau. Aprende-se num instante." Ou: "É simples: uma pessoa fica má porque quer fazer mal a alguém." Diz o narrador, e repete o autor: "Ainda bem que não sou pessoa para interrogar os desígnios de Deus, ou começava a desanimar."
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Entretanto já está à vista aquele "viaduto aéreo onde o metro respira dois segundos de ar livre". Por cima é a Avenida Fontes Pereira de Melo.
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- O processo que tento usar é juntar passado e presente. Pensar é uma acção. Enquanto escrevo está a acontecer qualquer coisa. Numa cidade tão antiga, com tantas camadas, podíamos ter um GPS para ligar com as histórias dos romanos.
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Pois Lisboa, mal se escava um bocadinho, é isto: "Até soldados do tempo dos mouros, com cota de malha, eles encontraram ao instalarem as novas linhas da TV Cabo." E o livro, que escava todo o seu caminho, vai encontrando o passado: "Fenícios, cartagineses, romanos, muçulmanos, cristãos nas margens do Tejo olhavam o sol a tocar a fortificação da colina, todas as manhãs de todos os séculos"
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Histórias, claro, mas são as histórias que nos mantêm vivos.
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"Deixem Passar o Homem Invisível" é uma odisseia e é as mil-e-uma-noites. Debaixo da terra, António conta histórias a João e João conta histórias a António. À superfície, Serip conta histórias à arqueóloga Madalena, e a arqueóloga Madalena retribui. Vale tudo, o Popeye, a Heidi e o Marco, sifões, sanitas e autoclismos, "truccos" com alternadeiras que depois palmam tudo, tentativas de suicídio por atropelamento e suicídios involuntários com areia da praia, cegos aldrabões que nunca pagam billhete, 15 mil descendentes de rato num ano, e até camaleões daltónicos.
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As histórias são o triunfo da vida.
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Escreve o narrador: "O que os podia salvar, na hipótese fraca de isso acontecer, o que os podia guiar no espaço e no tempo, e dar-lhes forças enormes e incomparáveis com qualquer desafio recente que se lhes colocara, era a narrativa. Era falarem e contarem coisas um ao outro, e histórias e livros, tudo o que aparecesse nas suas cabeças."
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E prestes a entrar no pequeno túnel escuro sobre o qual passa o metro, é de algo semelhante que o autor fala:
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- Não existe a palavra da salvação, mas existem palavras salvadoras, aquelas que nos fazem aguentar. Só percebi isso no meio de uma tragédia pessoal, quando comecei a receber sms a dizer "Sei que as minhas palavras não têm importância..." Claro que têm importância. Se não fossem essas palavras, o que seria?
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Rua de S. Marta
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A partir do Largo do Andaluz é a Rua de S. Marta.
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- Aqui fiz uma medição das tampas de esgoto. Estão de 100 em 100 metros, mais ou menos.
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Um carrito branco pisa uma delas, como se fosse a ilustração sonora, tlonc. Rui espreita por uma sarjeta. Vê-se a água escura reflectindo um pedaço trémulo de céu, beatas e restos a boiar.
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- O Serip grita, mas isto não tem passagem possível. Este pequeno laguinho é o sifão, para evitar cheiros e que a porcaria suba. O sifão é que destruiu a vida daqueles exploradores de esgotos que apanhavam moedas.
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E a caminho do céu, marquises de vidros opacos, fachadas com o sujo a escorrer, da última chuva.
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Há uma teoria sobre terramotos segundo a qual vamos levar com um de 250 em 250 anos. Rui pensou nisso.
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- Pensei: vão acontecer desgraças que nunca mais acabam. Os prémios de seguros aumentaram por causa desse ciclo.
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O "graffito" na esquina diz: "Vende-se ranço fresco e heroína."
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- Nunca tinha reparado nisto. A realidade está sempre a conspirar.
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É uma frase de Alexandre Melo, vem no livro.
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No passeio da esquerda alguém deixou um par de sapatos pretos bicudos, de atacadores. Podiam ser os sapatos do mágico Serip.
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- E o mágico, existe?
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- Partilhei casa com ele quando vim estudar para Lisboa.
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Mas não vamos por aí, porque as personagens nunca são só aquele ou aquela.
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- Juntei umas reais com outras que elaborei, criei algumas que não existiam.
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Foi não a uma mas a várias assembleias de cegos, onde o voto secreto, claro, é de braço no ar.
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E a propósito, se dois não-cegos vão pelo meio da rua a contornar os obstáculos, como nós, imaginem os cegos. Rui agarra na placa "Excepto cargas e descargas" espetada no passeio, mesmo à altura de fazer um lanho na cabeça.
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Logo à beira, o Manjar do Herculano oferece um "Menu Económico" manuscrito numa toalha de papel colada à montra. E a esquadra da polícia em frente.
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- Também quis mostrar a trapalhada do país quando se instala o caos, quem é que manda, a intervenção dos jornalistas.
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Lá estão, cheios de pica, atrás da catástrofe, enquanto os cidadãos-jornalistas enchem as televisões com fotografias de telemóvel. "Eram de fraca qualidade mas tinham a característica, muito apreciada, do homem no centro do perigo."
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Não saímos lá muito bem disto.
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- São os jornalistas da televisão, sempre obrigados a estar em constante "stress", e a repetir, a repetir. Lembras-te de Entre-os-Rios? A perguntarem dez vezes aos comandante dos bombeiros se havia novidades.
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Do lado esquerdo aparece agora a Universidade Autónoma de Lisboa, que foi o Palácio dos Conde Redondo.
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- Tem duas cisternas que tinham ligação directa ao Aqueduto das Águas Livres. Era aquela terrível diferença social entre quem tinha água limpa e quem não tinha.
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A cisterna grande está no pátio de entrada. A pequena está no pátio das traseiras, agora rodeada de uns edifícios tenebrosos e ninguém à vista.
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- Achas que eles se salvam? - pergunta de repente o autor às voltas no pátio, a pensar em António e João, os seus heróis.
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- Para que é que havia de lá estar a última frase se não se salvassem?
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- Essa frase caiu-me na Igreja dos Mártires, ao Chiado, dois meses antes de acabar o livro.
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Caiu-me assim como está.
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Mas não pensem que a vamos dizer aqui.
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Rua de S. José
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A rua muda de santo, Santa Marta para S. José, mas continuamos sempre a eito, agora a falar de "Lillias Fraser", o romance de Hélia Correia em que uma menina atravessa o Terramoto, e isto a propósito dos ratos. Há um momento debaixo da terra em que Rui põe António a morder um rato.
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- Imaginei uma cena em que os ratos se juntam mas medem mal o inimigo e a última coisa de que estão à espera é de serem mordidos. Ah, e ele tem a sorte de morder o chefe.
Um "graffito" com Zeca Afonso. Manequins de plástico cor-de-galão com camisetas dos anos 70.
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- Parece tudo feito de "terylene".
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A seguir a Florista de Santa Marta.
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- Aqui comprei uma rosa para levar à Tereza naquele dia.
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Há prédios entaipados como se fosse para sempre, com varandins nobres de pedra.
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- Antes que me esqueça, quero falar do poder curativo da caminhada, que o Chatwin usa muito, e o Herzog também, e é o que as pessoas fazem quando vão a Fátima. É muito difícil estar quieto quando se está à espera de saber o resultado de algo que está na mão dos médicos. Ao menos podemos andar.
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Um autocolante numa porta: "Tem problemas com baratas?" Ah, a vida na cidade.
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Além dos livros, o que Rui faz no dia-a-dia é escrever as sátiras do Contra-Informação ("humor não é aligeirar, é aprofundar", diz o livro). Também já escreveu dois filmes e talvez não fique por aqui. Trabalha em casa e gosta.
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- Mas um dia penso ir viver para a Serra de S. Mamede.
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Onde os pais têm casa e terra.
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Livros da Primeira Classe e dançarinas de loiça na montra dos antiquários de S. José. Pequeno desvio à esquerda para ir espreitar, na Rua da Fé, o lugar das assembleias de cegos. Passamos o casarão onde nasceu "o glorioso artista Rafael Bordalo Pinheiro" e duas portas adiante está a Casa da Comarca de Arganil, agremiação regionalista. É aqui mesmo. Mas batemos, batemos e ninguém.
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- Gosto muito de Lisboa, sabes - revela, voltando a descer à Rua de S. José. - Tive um período complicado de adaptação. Perder seis vezes a carteira num mês. Entrar num autocarro e as pessoas não se cumprimentarem.. Mas com os anos aprendi a gostar. Gosto da luz, do cheiro, da comida, destas tascas, peixe fresco em qualquer sítio.
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- Um alentejano a dizer que se come bem em Lisboa?
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- Quer dizer, no Alentejo come-se melhor.
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Rua das Portas de Santo Antão
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Palácio e jardins dos CTT e entramos na Rua das Portas de Santo Antão. Solar dos Presuntos à esquerda, junto ao Elevador do Lavra.
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- Quando foi o lançamento do António Lobo Antunes, fui eu e o Gonçalo M. Tavares apresentar. Depois viemos aqui jantar e levei um baile dos dois. Eh pá, leram tanto. Iam passando de país em país.
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À direita, em cotovelo (lá estão os azulejos de Leonel Moura), o Pátio do Tronco, onde Camões esteve preso.
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- Outra coisa que percebi com este livro é que há palavras que só entendemos quando as atravessamos por dentro. E poemas: "Alma minha gentil, que te partiste / tão cedo desta vida, descontente / repousa lá no céu eternamente / e viva eu cá na terra sempre triste."
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Ainda está pesado o céu. Rui olha os telhados do pátio:
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- Há uma coisa que tens de escrever. É que a vida triunfa.
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Dá voltas, à procura de quem lhe diga onde era mesmo a prisão. Ao fundo aparece um homem.
- Penso que eles estavam aqui - O homem abarca o pátio com os braços.
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Eles, os condenados. Estariam amarrados ao tal tronco? Faz lembrar os suplícios do livro, como o daquela santa que foi pendurada pelos cabelos.
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- É a história do cristianismo - resume o autor. - Cada um a tentar encontrar o suplício mais horrível, como se isso desse alguma vantagem.
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Voltamos à rua. Do Politeama sai a voz da Piaf: "Balayés les amours / Et tous leurs trémolos / Balayés pour toujours / Je repars à zéro"
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- Ali ao pé do Gambrinus já cabe um homem de pé - No boqueirão, quer dizer.
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E a Piaf, seguindo-nos até ao Gambrinus: "Non! Rien de rien / Non! Je ne regrette rien / Ni le bien, qu'on m'a fait / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"
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Falamos de percebes, ou perceves. Também estão no livro. Isso e caracóis.
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- Só não gosto de kiwi - diz Rui.
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Cá estamos. E vamos entrar, porque foi o senhor Brito do balcão do Gambrinus que viu o tamanho do boqueirão aqui em frente durante umas obras e contou a Rui. Além disso, quem já comeu um preguinho do Gambrinus também entrava.
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- Eu venho aqui às vezes comemorar as vitórias do Benfica. Às vezes... Poucas vezes.
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Rossio/Rua do Ouro/Cais das Colunas
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Desde S. Sebastião já vamos em vários quilómetros de santos. Lombo tenro sempre recompõe, acompanhado da sua imperial, mas não olhem agora, que à saída do Gambrinus há uma lagosta ainda viva fora de água.
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Onde é que íamos?
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- Estás a ver, o boqueirão passa por baixo do teatro - alerta Rui, apontado as traseiras do D. Maria.
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Sempre na peugada do boqueirão, ou seja de António e João, cruzamos o Rossio em diagonal até à Rua do Ouro. Se agora olharmos para a esquerda já vemos o castelo, com aquelas ameias de brincar do Estado Novo.
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- Tem para lá uns canhões que roubaram de Marvão - diz Rui, e olhem que ele é da zona.
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Rua do Ouro. Discoteca Amália do lado esquerdo.
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- Isto tem umas caves muito húmidas, já começa a apanhar a zona das estacas, embora a maré não suba até aqui.
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O autor sabe porque foi lá. Tanto trabalho de casa.
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- Aqui, o boqueirão já tem 2.70 por 2.20.
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E na mesma onda da Piaf, não é que a Amália canta: "Amor que o vento / Como um lamento / Levou consigo / Mas que ainda agora / E a toda a hora / Trago comigo / Ai Mouraria..." Lá está a realidade.
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- Algumas partes do livro foram escritas em macas de Santa Maria. Usava aqueles caderninhos...
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Abre a mochila e tira dois cadernos Flecha, da Papelaria Fernandes, capa dura.
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- Já não existem, os Moleskines mataram tudo - diz o autor, a olhar o meu Moleskine.
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Fez quatro cadernos para o primeiro romance e quatro para este. Notas, bocados de diálogos, desenhos. Abre um ao acaso e mostra.
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E além dos livros sobre o metro e o Terramoto, que leu mais?
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- O "Coração" [Edmundo de Amicis, está no livro]. "O Soldadinho de Chumbo" [Andersen, está no livro]. "Ardiente Oscuridad", peça de um espanhol que tem várias peças sobre cegos, Antonio Buero Vallejo.
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Estamos na esquina da Rua da Conceição. Rui vai mostrar o sítio onde às vezes se pode descer às termas romanas e retoma as leituras.
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- Li um romance do Hervé Guibert, "Aveugle". Estudos sobre o papel social do cego. Um cego aprende a ser cego para responder aos padrões.
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E desembocamos no Terreiro do Paço, entaipado, esburacado por várias brocas.
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Quando contornamos os tapumes, o vento sopra tão forte que passamos a gritar, com as roupas enfunadas como velas. Julho, que diabo, e o rio em vagas altas, "escuro como a pele dum rato".
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Rui Cardoso Martins tem mão para imagens, para diálogos, e para fazer do texto em geral uma experiência física: "... a atmosfera desembrulhava-se como um plástico barulhento, de bombom..." Ou: "... um gelo inundou[lhe] a espinha e a testa, na confluência superior do nariz, o sítio onde dói nas imperiais bem tiradas..." Ou ainda: "Chupou os dedos e souberam-lhe a sangue fresco, isto é a aço."
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Faz às frases o mesmo que faz entre a gente quando teme ser excessivo. Torce o rabo ao "grand final", dá-lhe uma volta de parafuso, sempre grande e nunca grandiloquente.
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Não é exactamente modéstia, é não saber ser mau, apesar de saber como isso é fácil.
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Espreitamos os buracos onde os operários estão a trabalhar.
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- Cinco metros? - calcula Rui. E o operário acena que sim.
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Há gente para saber de tudo, e o que corre nas entranhas é todo um mundo.
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- O dr. Raul disse-me que queria conhecer a Madalena.
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Mas a Madalena só existe no livro.
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- Ela tem os mesmos interesses dele, sanitas, lavatórios. Tem que haver alguém que goste desse assunto. Se não, como é que evitamos que os dejectos humanos vão parar ao Tejo?
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Atravessamos a passadeira para chegar ao Cais das Colunas. As ondas estalam nos degraus.
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- Sabes que o Tejo faz mesmo um vale de cento e tal metros?
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Se a água recuasse toda para trás como em 1755 íamos ver, mas é melhor não.
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- Mas dá tempo de fugir, entre 30 minutos a uma hora.
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Enric Vives-Rubio está à espera nos degraus, para fazer as fotografias. Rui posa com as ondas aos pés. O vento chia nas gruas.
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- Ali estão as taínhas a apanhar a porcaria - aponta o autor. - Elas gostam.
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Não se vê, porque a maré está cheia, mas a porcaria vem do esgoto. Quer dizer, este é o fim do caminho.
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Epílogo com Camões
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Voltamos ao Pátio do Tronco para fotografar. Rui fica de pé no túnel, debaixo da cabeça de Camões.
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- Saímos à rua, podemos morrer de um dia para o outro, perdemos pessoas de quem gostamos, temos de encontrar um caminho de sobrevivência no meio da incompetência, dos maus serviços do Estado, e no entanto a vida triunfa.
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Estão a ver porque é que não há outro título para esta conversa?
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- A Tereza tinha uma frase extraordinária. Diz-se que quando Deus fecha uma porta abre uma janela. E ela dizia: "Pois, no 8º andar." Acredito na coragem física e na coragem moral. E contra a conspiração da realidade e o perigo do mundo é possível fazer alguma coisa, nem que seja contar uma história.
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Não é a fé das igrejas.
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- A fé é legítima, genuína, em muitos casos, e até saudável. Mas na minha opinião parte dos princípios errados. Se Deus me coloca perante a hipótese de um milagre e mo retira, então é má pessoa. A resposta mais simples é Deus não existir.
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A dedicatória é para a Tereza. E para Henrique e Sara. "Não sabias que as crianças podiam ser estas criaturas maravilhosas, não sabias mesmo", pensa António, na escuridão do esgoto, ao ouvir João. "Pensamos que elas são uma coisa, mas são outra, muito mais forte e atenta e inteligente.... e forte, já disse."
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Igreja de S. Sebastião da Pedreira (sem o autor)
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Julho e, olá, que é isto? De repente o céu desce, Lisboa muda de cara, uma chuva fina como picos de água com gás, e flores de buganvília a rodopiarem na sarjeta, sopradas pelo vento. Pelo menos desde 1755 sabemos que todo o mal pode acontecer, e quando faz sol não se acredita. Até parece que temos os pés no chão. Mas o chão é só uma tampa entre nós e o fundo. E no fundo, basalto, vermes, ratos. Pedacinhos de ossos, diria Camilo Pessanha, se não fossem mesmo esqueletos inteiros.
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Por exemplo, aqui, em S. Sebastião da Pedreira, o Marquês de Pombal "mandou abrir uma sepultura para milhares de corpos", lembra Rui Cardoso Martins em "Deixem Passar o Homem Invisível", o seu segundo romance. "A zona que vai desde o Parque, ali acima, até debaixo dos armazéns espanhóis e provavelmente parte desta encosta, serviu de vala comum no Terramoto de 1755."
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Não se pode andar em Lisboa da mesma forma depois de ler este livro e o largo de S. Sebastião é só o princípio - da viagem entre a vida e a morte que é o livro, e da conversa peripatética que o Ípsilon propôs ao autor.
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O encontro ficou marcado para as 11h30 e agora são 11h15, o autor ainda não chegou. Dá para entrar na igreja e procurar aquele anjo azul com uns olhos raspados amarelo-gema, dois sóis no lugar dos olhos. Está na capa do livro.
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A igreja tem uma escada de cada lado e ao cimo uma varanda. Há um som de broca no ar, as cáries de Lisboa sempre em reparação. Mas quando se empurra a porta de vidro, a temperatura cai e a cidade desaparece. Fica aquele silêncio das igrejas que cheira a pedra fria e a lamparina.
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António, o cego do livro, também faz isto. Entra com a sua mulher na igreja para ver as cenas em azulejo. "Ver não é um verbo proibido entre os cegos, pelo contrário", aprendeu o autor.
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Fachada e escadarias enganam. A igreja de S. Sebastião é inesperadamente pequena. Altar em talha dourada, paredes cobertas com a vida do santo, três nucas de mulheres e uma nuca de homem entre os bancos corridos.
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Mas há outro homem de pé, agarrado às grades da capela baptismal, como faria um prisioneiro.
Quando ele sai é possível espreitar a imagem por cima da pia, presumivelmente João Baptista a baptizar um Jesus de mãos cruzadas sobre o seio, e Deus sobre ambos, sentado numa nuvem.
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Do céu à caixinha de "esmolas pelas almas do Purgatório", trata-se sempre e sem dúvida de fé. Mas ter fé é diferente de acreditar, aprendeu o autor à sua custa.
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Uma "piedosa matrona que extrae as setas ao mártir S. Sebastião" aparece na capela seguinte, e este S. Sebastião dá ares de Johnny Depp com sobrancelhas depiladas, cabelo em cachos, bíceps de Neptuno. Mirem-se no exemplo, já lá estava tudo.
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Várias figuras de azulejo têm os olhos raspados mas nenhuma se parece com o anjo da capa.
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De volta à varanda, ainda sopra aquela espécie de chuva. Passa um avião quase a aterrar no meio das casas. Mais um medo que Lisboa tem, e logo esquece.
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Uma camioneta de móveis do Redondo descarrega do outro lado da rua. A esquina dos "armazéns espanhóis" anuncia descontos de 70 por cento. O pátio ao lado da igreja tem três velhos bancos de madeira atados com cordas. Certamente já aqui se sentou alguém que acredite em milagres.
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Igreja de S. Sebastião da Pedreira (com o autor)
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Antes das 9h, o autor estava a deixar os filhos, Henrique e Sara, a seguir foi fazer exercício e portanto chega cheio de fome. Enquanto come uma sandes mista na esplanada mais próxima da igreja, passa um cavalheiro rechonchudo, que pára de repente, todo ele entusiasmo.
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- Bom dia! Tenho aqui umas colónias muito boas, quer ver?
Rui Cardoso Martins quase se engasga.
- Umas quê?
- Umas colónias!
- ...
- Perfumes!
Com a sua gentileza habitual, o autor declina, e acaba a sandes a matutar, enquanto o vendedor se afasta.
- Só me acontecem coisas malucas. Umas colónias! Daqui a pouco era o Mapa Cor-de-Rosa.
- Andei na igreja à procura do anjo da capa, mas não o encontrei.
- Esse não está lá. Está no Museu do Azulejo. Um amigo meu fotografou-o.
Aquilo dos olhos raspados foi uma epidemia vândala. Os azulejos começaram a aparecer por aí assim.
Subimos à igreja e Rui espreita o pátio com os velhos bancos.
- Os escuteiros são aqui.
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Isto é relevante para o livro, porque o companheiro de viagem do cego António é um escuteiro de oito anos chamado João. Agarram-se um ao outro durante uma enxurrada monumental em Lisboa que os apanha em frente a esta igreja. Até que o chão cede.
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"Deixem Passar o Homem Invisível" é, então, a odisseia de António e João por um antigo esgoto que desce pelas entranhas de Lisboa, de S. Sebastião ao Tejo. As autoridades salvadoras vão descrendo que eles possam estar vivos, mas há quem continue a acreditar, como o mágico Serip (Pires ao contrário), que vai gritando em italo-português pelas grades das sarjetas, enquanto faz o percurso à superfície.
Fora gritar, é isso que vamos fazer esta manhã.
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- Eu tinha a ideia de que seria possível atravessar Lisboa por baixo, a descida ao Rio dos Infernos - diz Rui na varanda da igreja, a olhar para o chão onde no livro se abre o buraco.
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Nada que a realidade não tenha inventado. Aconteceu por exemplo a um autocarro de Lisboa.
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- Andei em investigações no Museu da Água, onde falei com o dr. Raul.
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Este dr. Raul também se chama dr. Raul no livro, tal como as investigações do livro, em busca dos mapas de velhos boqueirões, são as que o autor fez.
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- Eu queria partir de S. Sebastião por ser uma vala comum do Terramoto. Ali está a cidade nova, os armazéns espanhóis, aqui uma igreja muito bonita. Escavar o basalto para o metro nesta zona foi terrível, teve de ser com uma broca.
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Rui Cardoso Martins viu fotografias e leu os livros da construção do metro, um dos três subterrâneos de Lisboa (os outros são esgotos e águas limpas). E apesar da falta de mapas, porque muitos arderam nos vários incêndios da câmara, confirmou a existência de um boqueirão entre S. Sebastião e o rio, primeiro tão apertado que obriga a andar de gatas, e depois com mais de dois metros.
Perguntou ao dr. Raul:
- É possível entrar aqui e sair no Tejo?
O perito não viu razão para que não fosse.
- A partir daí podia começar a aventura.
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Debaixo do chão ser cego não é desvantagem, porque não se vê nada de qualquer forma, e a única coisa em que os cegos são diferentes das outras pessoas é nisso. "Cegos são pessoas que não vêem, na minha opinião", diz a epígrafe do livro. Ou seja, não são atrasados nem surdos.
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- Tive um amigo cego no liceu, lá em Portalegre, um tipo bestial. Sempre pensei fazer um livro que colocasse os cegos na sua dimensão humana. É o contrário de os transformar em metáfora e alegoria, ou do ensino do papel social de ceguinho, que tem de ser modesto, que não pode dizer que gosta de mulheres.
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António não é modesto e o que mais quer ver são mulheres bonitas.
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Mas a Rui Cardoso Martins também interessava a ideia do milagre, até que ponto se acredita, e fez uma viagem a Fátima de propósito.
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- Quando um cego cega, vai passando de milagre falhado em milagre falhado.
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Essas são as viagens em que "é preciso comer alguma coisa ou o Apocalipse cai-nos na fraqueza".
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Rua de S. Sebastião
Damos as costas à igreja, descendo a rua pelo meio da rua, uma sina lisboeta. Passeios curtos, persianas encardidas, molas sem roupa, A Lealdade Penhores, Lda.
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Tudo isto é a capital de que Rui aprendeu a gostar. Nascido em Portalegre em 1967, vive em Lisboa desde a universidade (Comunicação Social na Nova, fomos colegas de turma, já esclareci isto uma vez). De resto, talvez apenas um alentejano possa escrever que "o pão nunca se deita fora, só em último caso, bolor negro ou rato", e outras frases deste romance.
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A sua estreia tão forte, "E Se Eu Gostasse Muito de Morrer", teve mais de uma edição em Portugal, tradução em Espanha e vai sair agora na Hungria. Quem o tenha lido deixou Rui Cardoso Martins naquele sem-tempo da infância alentejana, e vai reencontrá-lo agora em Lisboa no tempo dos GPS.
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- Ainda o primeiro livro não tinha saído e eu já estava a pensar neste. Até fui ver "A Última Ceia". Eu preciso de ver.
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"A Última Ceia" está em Milão, e isso também está no livro, em "flashback". António, o cego, e Serip, o mágico, fazem um "trucco" para contornar as filas de espera e ver a obra-prima de Leonardo.
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E agora atenção, do lado direito da rua:
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- Sushi alentejano! - O autor aproxima-se do menu na porta, que diz "Eddy's Kitchen ®". - Marca registada! Gosto muito quando dois mundos colidem.
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De certa forma, é o que vai acontecer também um bocadinho mais à frente, no antigo bebedor de cavalos, agora abrigo de homens. Sacos de plástico, garrafas de água vazias, um carrinho de bebé podre, o cimo de uma cabeça a mexer-se do lado de lá do muro.
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- Está ali um sem-abrigo.
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A cabeça mostra a cara. É uma mulher de boné. Começa a grasnar como um corvo.
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Rui sabe de uma indignação monárquica, aqui. Quando um homem não levantou bem a bandeira à sua passagem, o rei D. Carlos exclamou: "Seu alarve!"
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- E a freguesia ficou a chamar-se dos Alarves.
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Uns metros mais e passamos por baixo da Rua Filipe Folque. As escadas que vêm de cima têm um "graffito" com cara de boneco japonês e asas de anjo.
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- Um dia vim fazer este caminho como estamos a fazer agora. Era um dia em que tinha de matar o tempo, o dia em que a Tereza fez a operação de quase nove horas, em Santa Maria.
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A Tereza é a mulher com quem Rui começou a namorar há 14 anos e casou há 10, mãe do Henrique e da Sara, jornalista, crítica de livros, editora, biógrafa, argumentista - Tereza Coelho. Quem leu jornais e livros em Portugal desde os anos 80, leu-a de certeza, e não se esquece. Escrevia sem esforço e fulminante, via-se logo que era dela, e escreveu muito, mas como se não tivesse importância, porque o que ela queria mesmo era ler. Não há muitos escritores assim.
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Foi a equipa do Santa Maria que pôs Rui a andar, no dia da operação. Acharam que ia dar em maluco se ficasse ali.
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- Fiz este caminho, voltei lá ao fim da tarde e tinha corrido muito bem.
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Um tumor fora da cabeça.
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Depois Rui começou a escrever "Deixem Passar o Homem Invisível" no Natal de 2007.
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- E entreguei-o à Tereza um ano depois. Já estava lá a frase final.
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Leiam para crer. É o livro de um amor como no poema de Quevedo, "hão-de ser pó, mas pó enamorado", alguém duvida? No dia a seguir a Rui lhe entregar o livro, Tereza foi outra vez hospitalizada e morreu semanas depois, de uma septicémia.
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"Minha Olívia Palito, onde estás tu, querida, para te salvar?", pergunta António, dentro do esgoto quando pensa na mulher. "Queria dar-te mais um beijo, abraçar-te na nossa casa pequenina."
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Rui caminha pelo meio da rua vestido de preto, com os anéis de Tereza no dedo mindinho.
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S. Sebastião/Viriato/Andaluz
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Estamos na ponta final da Rua de S. Sebastião da Pedreira, quase à esquina da Rua do Viriato, onde fica o PÚBLICO, casa de Rui Cardoso Martins durante vários anos de grande jornalismo como repórter e cronista. E eis que sobe em sentido contrário um dos seus amigos de lá e até hoje, David Lopes Ramos. Mal nos vê, nem precisa de perguntar:
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- Já sei o que estão a fazer.
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Não só já leu o livro como até lá vem citado, a propósito desse petisco que é a vida.
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E sobre isso tem o narrador muito a dizer: "Qualquer pessoa encontra nos santos algo que lhe diga respeito: a vida é dura." Ou: "O mundo é um lugar perigoso e vai piorar." Ou: "Também apendi a ser mau. Aprende-se num instante." Ou: "É simples: uma pessoa fica má porque quer fazer mal a alguém." Diz o narrador, e repete o autor: "Ainda bem que não sou pessoa para interrogar os desígnios de Deus, ou começava a desanimar."
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Entretanto já está à vista aquele "viaduto aéreo onde o metro respira dois segundos de ar livre". Por cima é a Avenida Fontes Pereira de Melo.
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- O processo que tento usar é juntar passado e presente. Pensar é uma acção. Enquanto escrevo está a acontecer qualquer coisa. Numa cidade tão antiga, com tantas camadas, podíamos ter um GPS para ligar com as histórias dos romanos.
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Pois Lisboa, mal se escava um bocadinho, é isto: "Até soldados do tempo dos mouros, com cota de malha, eles encontraram ao instalarem as novas linhas da TV Cabo." E o livro, que escava todo o seu caminho, vai encontrando o passado: "Fenícios, cartagineses, romanos, muçulmanos, cristãos nas margens do Tejo olhavam o sol a tocar a fortificação da colina, todas as manhãs de todos os séculos"
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Histórias, claro, mas são as histórias que nos mantêm vivos.
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"Deixem Passar o Homem Invisível" é uma odisseia e é as mil-e-uma-noites. Debaixo da terra, António conta histórias a João e João conta histórias a António. À superfície, Serip conta histórias à arqueóloga Madalena, e a arqueóloga Madalena retribui. Vale tudo, o Popeye, a Heidi e o Marco, sifões, sanitas e autoclismos, "truccos" com alternadeiras que depois palmam tudo, tentativas de suicídio por atropelamento e suicídios involuntários com areia da praia, cegos aldrabões que nunca pagam billhete, 15 mil descendentes de rato num ano, e até camaleões daltónicos.
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As histórias são o triunfo da vida.
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Escreve o narrador: "O que os podia salvar, na hipótese fraca de isso acontecer, o que os podia guiar no espaço e no tempo, e dar-lhes forças enormes e incomparáveis com qualquer desafio recente que se lhes colocara, era a narrativa. Era falarem e contarem coisas um ao outro, e histórias e livros, tudo o que aparecesse nas suas cabeças."
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E prestes a entrar no pequeno túnel escuro sobre o qual passa o metro, é de algo semelhante que o autor fala:
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- Não existe a palavra da salvação, mas existem palavras salvadoras, aquelas que nos fazem aguentar. Só percebi isso no meio de uma tragédia pessoal, quando comecei a receber sms a dizer "Sei que as minhas palavras não têm importância..." Claro que têm importância. Se não fossem essas palavras, o que seria?
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Rua de S. Marta
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A partir do Largo do Andaluz é a Rua de S. Marta.
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- Aqui fiz uma medição das tampas de esgoto. Estão de 100 em 100 metros, mais ou menos.
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Um carrito branco pisa uma delas, como se fosse a ilustração sonora, tlonc. Rui espreita por uma sarjeta. Vê-se a água escura reflectindo um pedaço trémulo de céu, beatas e restos a boiar.
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- O Serip grita, mas isto não tem passagem possível. Este pequeno laguinho é o sifão, para evitar cheiros e que a porcaria suba. O sifão é que destruiu a vida daqueles exploradores de esgotos que apanhavam moedas.
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E a caminho do céu, marquises de vidros opacos, fachadas com o sujo a escorrer, da última chuva.
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Há uma teoria sobre terramotos segundo a qual vamos levar com um de 250 em 250 anos. Rui pensou nisso.
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- Pensei: vão acontecer desgraças que nunca mais acabam. Os prémios de seguros aumentaram por causa desse ciclo.
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O "graffito" na esquina diz: "Vende-se ranço fresco e heroína."
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- Nunca tinha reparado nisto. A realidade está sempre a conspirar.
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É uma frase de Alexandre Melo, vem no livro.
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No passeio da esquerda alguém deixou um par de sapatos pretos bicudos, de atacadores. Podiam ser os sapatos do mágico Serip.
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- E o mágico, existe?
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- Partilhei casa com ele quando vim estudar para Lisboa.
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Mas não vamos por aí, porque as personagens nunca são só aquele ou aquela.
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- Juntei umas reais com outras que elaborei, criei algumas que não existiam.
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Foi não a uma mas a várias assembleias de cegos, onde o voto secreto, claro, é de braço no ar.
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E a propósito, se dois não-cegos vão pelo meio da rua a contornar os obstáculos, como nós, imaginem os cegos. Rui agarra na placa "Excepto cargas e descargas" espetada no passeio, mesmo à altura de fazer um lanho na cabeça.
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Logo à beira, o Manjar do Herculano oferece um "Menu Económico" manuscrito numa toalha de papel colada à montra. E a esquadra da polícia em frente.
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- Também quis mostrar a trapalhada do país quando se instala o caos, quem é que manda, a intervenção dos jornalistas.
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Lá estão, cheios de pica, atrás da catástrofe, enquanto os cidadãos-jornalistas enchem as televisões com fotografias de telemóvel. "Eram de fraca qualidade mas tinham a característica, muito apreciada, do homem no centro do perigo."
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Não saímos lá muito bem disto.
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- São os jornalistas da televisão, sempre obrigados a estar em constante "stress", e a repetir, a repetir. Lembras-te de Entre-os-Rios? A perguntarem dez vezes aos comandante dos bombeiros se havia novidades.
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Do lado esquerdo aparece agora a Universidade Autónoma de Lisboa, que foi o Palácio dos Conde Redondo.
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- Tem duas cisternas que tinham ligação directa ao Aqueduto das Águas Livres. Era aquela terrível diferença social entre quem tinha água limpa e quem não tinha.
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A cisterna grande está no pátio de entrada. A pequena está no pátio das traseiras, agora rodeada de uns edifícios tenebrosos e ninguém à vista.
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- Achas que eles se salvam? - pergunta de repente o autor às voltas no pátio, a pensar em António e João, os seus heróis.
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- Para que é que havia de lá estar a última frase se não se salvassem?
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- Essa frase caiu-me na Igreja dos Mártires, ao Chiado, dois meses antes de acabar o livro.
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Caiu-me assim como está.
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Mas não pensem que a vamos dizer aqui.
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Rua de S. José
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A rua muda de santo, Santa Marta para S. José, mas continuamos sempre a eito, agora a falar de "Lillias Fraser", o romance de Hélia Correia em que uma menina atravessa o Terramoto, e isto a propósito dos ratos. Há um momento debaixo da terra em que Rui põe António a morder um rato.
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- Imaginei uma cena em que os ratos se juntam mas medem mal o inimigo e a última coisa de que estão à espera é de serem mordidos. Ah, e ele tem a sorte de morder o chefe.
Um "graffito" com Zeca Afonso. Manequins de plástico cor-de-galão com camisetas dos anos 70.
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- Parece tudo feito de "terylene".
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A seguir a Florista de Santa Marta.
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- Aqui comprei uma rosa para levar à Tereza naquele dia.
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Há prédios entaipados como se fosse para sempre, com varandins nobres de pedra.
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- Antes que me esqueça, quero falar do poder curativo da caminhada, que o Chatwin usa muito, e o Herzog também, e é o que as pessoas fazem quando vão a Fátima. É muito difícil estar quieto quando se está à espera de saber o resultado de algo que está na mão dos médicos. Ao menos podemos andar.
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Um autocolante numa porta: "Tem problemas com baratas?" Ah, a vida na cidade.
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Além dos livros, o que Rui faz no dia-a-dia é escrever as sátiras do Contra-Informação ("humor não é aligeirar, é aprofundar", diz o livro). Também já escreveu dois filmes e talvez não fique por aqui. Trabalha em casa e gosta.
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- Mas um dia penso ir viver para a Serra de S. Mamede.
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Onde os pais têm casa e terra.
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Livros da Primeira Classe e dançarinas de loiça na montra dos antiquários de S. José. Pequeno desvio à esquerda para ir espreitar, na Rua da Fé, o lugar das assembleias de cegos. Passamos o casarão onde nasceu "o glorioso artista Rafael Bordalo Pinheiro" e duas portas adiante está a Casa da Comarca de Arganil, agremiação regionalista. É aqui mesmo. Mas batemos, batemos e ninguém.
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- Gosto muito de Lisboa, sabes - revela, voltando a descer à Rua de S. José. - Tive um período complicado de adaptação. Perder seis vezes a carteira num mês. Entrar num autocarro e as pessoas não se cumprimentarem.. Mas com os anos aprendi a gostar. Gosto da luz, do cheiro, da comida, destas tascas, peixe fresco em qualquer sítio.
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- Um alentejano a dizer que se come bem em Lisboa?
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- Quer dizer, no Alentejo come-se melhor.
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Rua das Portas de Santo Antão
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Palácio e jardins dos CTT e entramos na Rua das Portas de Santo Antão. Solar dos Presuntos à esquerda, junto ao Elevador do Lavra.
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- Quando foi o lançamento do António Lobo Antunes, fui eu e o Gonçalo M. Tavares apresentar. Depois viemos aqui jantar e levei um baile dos dois. Eh pá, leram tanto. Iam passando de país em país.
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À direita, em cotovelo (lá estão os azulejos de Leonel Moura), o Pátio do Tronco, onde Camões esteve preso.
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- Outra coisa que percebi com este livro é que há palavras que só entendemos quando as atravessamos por dentro. E poemas: "Alma minha gentil, que te partiste / tão cedo desta vida, descontente / repousa lá no céu eternamente / e viva eu cá na terra sempre triste."
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Ainda está pesado o céu. Rui olha os telhados do pátio:
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- Há uma coisa que tens de escrever. É que a vida triunfa.
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Dá voltas, à procura de quem lhe diga onde era mesmo a prisão. Ao fundo aparece um homem.
- Penso que eles estavam aqui - O homem abarca o pátio com os braços.
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Eles, os condenados. Estariam amarrados ao tal tronco? Faz lembrar os suplícios do livro, como o daquela santa que foi pendurada pelos cabelos.
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- É a história do cristianismo - resume o autor. - Cada um a tentar encontrar o suplício mais horrível, como se isso desse alguma vantagem.
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Voltamos à rua. Do Politeama sai a voz da Piaf: "Balayés les amours / Et tous leurs trémolos / Balayés pour toujours / Je repars à zéro"
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- Ali ao pé do Gambrinus já cabe um homem de pé - No boqueirão, quer dizer.
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E a Piaf, seguindo-nos até ao Gambrinus: "Non! Rien de rien / Non! Je ne regrette rien / Ni le bien, qu'on m'a fait / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"
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Falamos de percebes, ou perceves. Também estão no livro. Isso e caracóis.
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- Só não gosto de kiwi - diz Rui.
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Cá estamos. E vamos entrar, porque foi o senhor Brito do balcão do Gambrinus que viu o tamanho do boqueirão aqui em frente durante umas obras e contou a Rui. Além disso, quem já comeu um preguinho do Gambrinus também entrava.
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- Eu venho aqui às vezes comemorar as vitórias do Benfica. Às vezes... Poucas vezes.
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Rossio/Rua do Ouro/Cais das Colunas
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Desde S. Sebastião já vamos em vários quilómetros de santos. Lombo tenro sempre recompõe, acompanhado da sua imperial, mas não olhem agora, que à saída do Gambrinus há uma lagosta ainda viva fora de água.
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Onde é que íamos?
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- Estás a ver, o boqueirão passa por baixo do teatro - alerta Rui, apontado as traseiras do D. Maria.
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Sempre na peugada do boqueirão, ou seja de António e João, cruzamos o Rossio em diagonal até à Rua do Ouro. Se agora olharmos para a esquerda já vemos o castelo, com aquelas ameias de brincar do Estado Novo.
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- Tem para lá uns canhões que roubaram de Marvão - diz Rui, e olhem que ele é da zona.
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Rua do Ouro. Discoteca Amália do lado esquerdo.
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- Isto tem umas caves muito húmidas, já começa a apanhar a zona das estacas, embora a maré não suba até aqui.
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O autor sabe porque foi lá. Tanto trabalho de casa.
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- Aqui, o boqueirão já tem 2.70 por 2.20.
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E na mesma onda da Piaf, não é que a Amália canta: "Amor que o vento / Como um lamento / Levou consigo / Mas que ainda agora / E a toda a hora / Trago comigo / Ai Mouraria..." Lá está a realidade.
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- Algumas partes do livro foram escritas em macas de Santa Maria. Usava aqueles caderninhos...
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Abre a mochila e tira dois cadernos Flecha, da Papelaria Fernandes, capa dura.
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- Já não existem, os Moleskines mataram tudo - diz o autor, a olhar o meu Moleskine.
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Fez quatro cadernos para o primeiro romance e quatro para este. Notas, bocados de diálogos, desenhos. Abre um ao acaso e mostra.
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E além dos livros sobre o metro e o Terramoto, que leu mais?
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- O "Coração" [Edmundo de Amicis, está no livro]. "O Soldadinho de Chumbo" [Andersen, está no livro]. "Ardiente Oscuridad", peça de um espanhol que tem várias peças sobre cegos, Antonio Buero Vallejo.
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Estamos na esquina da Rua da Conceição. Rui vai mostrar o sítio onde às vezes se pode descer às termas romanas e retoma as leituras.
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- Li um romance do Hervé Guibert, "Aveugle". Estudos sobre o papel social do cego. Um cego aprende a ser cego para responder aos padrões.
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E desembocamos no Terreiro do Paço, entaipado, esburacado por várias brocas.
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Quando contornamos os tapumes, o vento sopra tão forte que passamos a gritar, com as roupas enfunadas como velas. Julho, que diabo, e o rio em vagas altas, "escuro como a pele dum rato".
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Rui Cardoso Martins tem mão para imagens, para diálogos, e para fazer do texto em geral uma experiência física: "... a atmosfera desembrulhava-se como um plástico barulhento, de bombom..." Ou: "... um gelo inundou[lhe] a espinha e a testa, na confluência superior do nariz, o sítio onde dói nas imperiais bem tiradas..." Ou ainda: "Chupou os dedos e souberam-lhe a sangue fresco, isto é a aço."
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Faz às frases o mesmo que faz entre a gente quando teme ser excessivo. Torce o rabo ao "grand final", dá-lhe uma volta de parafuso, sempre grande e nunca grandiloquente.
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Não é exactamente modéstia, é não saber ser mau, apesar de saber como isso é fácil.
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Espreitamos os buracos onde os operários estão a trabalhar.
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- Cinco metros? - calcula Rui. E o operário acena que sim.
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Há gente para saber de tudo, e o que corre nas entranhas é todo um mundo.
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- O dr. Raul disse-me que queria conhecer a Madalena.
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Mas a Madalena só existe no livro.
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- Ela tem os mesmos interesses dele, sanitas, lavatórios. Tem que haver alguém que goste desse assunto. Se não, como é que evitamos que os dejectos humanos vão parar ao Tejo?
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Atravessamos a passadeira para chegar ao Cais das Colunas. As ondas estalam nos degraus.
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- Sabes que o Tejo faz mesmo um vale de cento e tal metros?
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Se a água recuasse toda para trás como em 1755 íamos ver, mas é melhor não.
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- Mas dá tempo de fugir, entre 30 minutos a uma hora.
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Enric Vives-Rubio está à espera nos degraus, para fazer as fotografias. Rui posa com as ondas aos pés. O vento chia nas gruas.
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- Ali estão as taínhas a apanhar a porcaria - aponta o autor. - Elas gostam.
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Não se vê, porque a maré está cheia, mas a porcaria vem do esgoto. Quer dizer, este é o fim do caminho.
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Epílogo com Camões
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Voltamos ao Pátio do Tronco para fotografar. Rui fica de pé no túnel, debaixo da cabeça de Camões.
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- Saímos à rua, podemos morrer de um dia para o outro, perdemos pessoas de quem gostamos, temos de encontrar um caminho de sobrevivência no meio da incompetência, dos maus serviços do Estado, e no entanto a vida triunfa.
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Estão a ver porque é que não há outro título para esta conversa?
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- A Tereza tinha uma frase extraordinária. Diz-se que quando Deus fecha uma porta abre uma janela. E ela dizia: "Pois, no 8º andar." Acredito na coragem física e na coragem moral. E contra a conspiração da realidade e o perigo do mundo é possível fazer alguma coisa, nem que seja contar uma história.
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Não é a fé das igrejas.
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- A fé é legítima, genuína, em muitos casos, e até saudável. Mas na minha opinião parte dos princípios errados. Se Deus me coloca perante a hipótese de um milagre e mo retira, então é má pessoa. A resposta mais simples é Deus não existir.
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A dedicatória é para a Tereza. E para Henrique e Sara. "Não sabias que as crianças podiam ser estas criaturas maravilhosas, não sabias mesmo", pensa António, na escuridão do esgoto, ao ouvir João. "Pensamos que elas são uma coisa, mas são outra, muito mais forte e atenta e inteligente.... e forte, já disse."
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