segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Pode-se julgar um livro pela capa

Ípsilon


Pode-se julgar um livro pela capa

15.12.2010 - Gonçalo Mira


Há quem aposte na excelência dos materiais e há quem não se possa dar a essa luxo. Há quem trabalhe com prata da casa e quem encomende capas a especialistas. Eis alguns daqueles que contribuem para que um olhar pelos expositores de uma livraria possa ser uma experiência
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Vivemos tempos estranhos. Em tudo e no mundo dos livros também. Se por um lado o panorama é composto por grandes grupos editoriais, financeiramente poderosos, que englobam várias editoras (para não falar em livrarias, distribuidoras), por outro lado, quase todos os meses nasce uma nova editora. E enquanto se vai discutindo e-books, leitores de e-books e morte do livro impresso, as livrarias vão sendo inundadas por novos títulos. Consequentemente, o espaço e o tempo de exposição na livraria acaba por se ressentir. Os grandes grupos podem usar técnicas de marketing mais agressivas, mas o que podem fazer os independentes? Além do critério da escolha dos títulos a publicar, a outra resposta óbvia é apostar na imagem.
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Talvez seja cedo demais para falar, mas parece que atravessamos uma pequena revolução no design de livros em Portugal. Há quem aposte na excelência dos materiais e há quem não se possa dar a essa luxo. Há quem trabalhe com prata da casa e quem encomende capas a especialistas. O Ípsilon foi falar com alguns daqueles que contribuem para que um olhar pelos expositores de uma livraria possa ser uma experiência.
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1. Coerência despreocupada
A Livros de Areia nasceu em 2005, pela mão de Pedro Marques e João Seixas, em Viana do Castelo. A quantidade de títulos publicados desde então é inversamente proporcional à qualidade dos mesmos. Poucos mas bons. Com parcos recursos, sem possibilidade de fazer os livros como gostariam, fazem-nos como podem. E não o fazem mal. Pedro Marques, que é também editor, faz as capas. Com formação em História da Arte, considera-se um autodidacta nesse ofício. Se às vezes a palavra é olhada com estigma, para Pedro isso não é grave, porque está "em muito boa companhia. Um dos meus designers favoritos é Quentin Fiore, autodidacta, que trabalhou com o Marshall McLuhan em todos os livrinhos dele."
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O trabalho é sempre feito a posteriori. Com o texto já em mãos, pensa a capa e executa-a. Tudo feito livro a livro, sem pensar num design de colecção. "Não posso ter um design seriado se tenho apenas dois livros por ano.
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Corro o risco de as pessoas se esquecerem e essa arma perde-se."
No entanto, há uma imagem reconhecível nos Livros de Areia. Isto acontece por todas as capas obedecerem apenas ao gosto pessoal de Pedro Marques. De influência surrealista e expressionista, como uma das suas referências principais, Roman Cieslewicz, o processo é o de recorrer a bancos de imagens, juntar peças como num puzzle, mas também distorcê-las, de tal forma que o resultado seja reconhecível apenas enquanto capa da Livros da Areia. "A ideia é servir o melhor possível o título e o autor. Mas se de facto há pessoas que acham que há uma imagem da editora, tanto melhor."
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Os autores não se queixam, pelo contrário. Um caso curioso é o de Lázaro Covadlo, escritor argentino, que quis utilizar no seu país natal a capa feita por Pedro Marques para o livro "Criaturas da Noite".
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Adepto do paperback, do livro portátil que se leva em viagem, que não pesa, Pedro lamenta ainda assim não ter possibilidade de dar um melhor acabamento a alguns dos livros. "Se tivesse hipótese, teria feito o livro 'Da Treta' com uma capa dura com sobrecapa, com uma fitinha, ou seja, um livro à antiga." E não tem pejo em admitir um pecado mortal, quando lembra a qualidade das edições da Tinta-da-China: "Tenho muita inveja daquelas edições, gostava muito de fazer livros assim, mas não posso."
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Gosta, mas admite: "Essa não é a minha preocupação. A minha preocupação é fazer livros baratos, com o acabamento mais básico, colados, nem sequer têm cadernos." Assim descritos, imagina-se algo muito pior do que é. Porque com materiais baratos também se produzem coisas boas. E a Livros de Areia não é o único exemplo.
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O trabalho de Pedro Marques não se esgota na edição e no design. Embora a uma escala que se pode dizer amadora (o que não significa falta de qualidade), é também alguém que pensa e que luta por que se pense o design de livros. Tenta fazê-lo no seu blogue (pedromarquesdg.wordpress.com) e nos artigos que vai publicando na Bang!, na Os Meus Livros e na Alice (clubalice.com). Não lhe interessam só os designers mas também os editores responsáveis por revoluções no design editorial, como os franceses Jean-Jacques Pauvert, Maurice Girodias e Eric Losfeld.
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"Um dos grandes paradoxos da imprensa cultural, no que diz respeito ao livro em Portugal, é que há uma invasão das capas nos jornais e nas revistas que é inversa à reflexão sobre elas." É isto que quer combater com o seu blogue e com o espaço que lhe vão dando nas revistas.
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2. Do livro ao objecto
Quando pensamos em bons exemplos de design de livros em Portugal é inevitável que o primeiro nome que nos vem à cabeça não seja o da Tinta-da-China. O mérito é todo deles e de Vera Tavares, responsável pelo logotipo e pelas capas da editora, desde o primeiro livro.
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Também na Tinta-da-China a linha gráfica não surgiu premeditadamente. "As coisas foram-se definindo," diz-nos Vera. Teve sempre liberdade artística e beneficiou de uma forte compatibilidade de gostos com a editora Bárbara Bulhosa. O facto de haver pessoas que identificam uma coerência gráfica virá, uma vez mais, do facto de ser a mesma pessoa a fazer as capas. Porém, para Vera é mais fácil ver essa coerência nas colecções do que no catálogo geral.
Mas se a Tinta-da-China causou tanto impacto, isso não se deve apenas às capas. Tendo a possibilidade de investir nos acabamentos, não hesitou em dar aos livros dignidade especial. No catálogo encontram-se muitos livros de capa dura, com bons acabamentos, bom papel, uma embalagem luxuosa para um conteúdo que costuma corresponder em qualidade.
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"Havia uma vontade de não fazer igual ao que se fazia," admite Vera, mas o objectivo é o mais básico: que o livro "esteja nas livrarias, que as pessoas o vejam e comprem, porque a capa é bonita e o conteúdo é interessante."
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Nesta busca pela capa perfeita, considera fundamental a escolha do tipo de letra. É importante que a fonte tipográfica se adeque ao conteúdo e quando a busca não traz resultados satisfatórios, é a própria Vera que desenha as letras. Por vezes volta a utilizá-las, até porque já tem "uma pasta com uma grande colecção de letras, que não chegam a ser fontes, porque não as sei transformar em fonte. São só letras desenhadas."
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Embora recuse a ideia de que há livros que, de tão bem trabalhados, se tornam objectos, acaba por concordar, reticente, quando se fala na colecção de humor dirigida por Ricardo Araújo Pereira. Os livros desta colecção acabam por ser objectos estranhos nas nossas livrarias, porque não têm lombada. As capas e os cadernos estão cozidos, com o "esqueleto" à mostra. A ideia foi da editora, Bárbara Bulhosa, que viu algo semelhante num catálogo de uma feira literária. Fez finca-pé para que a ideia se concretizasse, porque é complicada de executar. Garante Vera: os livros são resistentes. "Foram feitos monos, que testámos e atirámos ao chão. É tão resistente como um livro de capa dura normal." E têm a vantagem de, por não terem lombada, se conseguirem abrir totalmente e manterem-se abertos em cima de uma mesa.
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Objectos ou não, os livros da Tinta-da-China saltam à vista. Mesmo quando os autores fazem exigências, Vera consegue executá-las ao seu gosto e terminar com um produto que tem a sua marca. A marca da Tinta-da-China.
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Vinda do mundo da publicidade, Vera Tavares tem formação em História. Como leitora e compradora, irrita-se quando um livro tem uma capa má. Mesmo assim, considera que em Portugal há cada vez mais bons exemplos no design de livros.
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3. Os profissionais
A par das editoras em que o trabalho de design é feito dentro de portas, há outras que recorrem a ateliers profissionais. São casos disso as editoras do grupo Almedina, com grafismo a cargo da Ferrand, Bicker & Associados (FBA), ou a editora independente, sediada no Porto, Ahab, com design do Studio Andrew Howard.
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Estes designers trabalham por encomenda, mas a responsabilidade para com o produto final é a mesma. João Bicker, da FBA, explica-nos: "Trabalhamos sobre as ideias expressas por outros e procuramos interpretá-las visualmente. O essencial é a procura do entendimento do texto, da maneira que melhor o dá a ler. A escolha da tipografia adequada, da forma do livro e da página, o processo de colocar as palavras e as imagens na forma que melhor as sirva."
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Andrew Howard, inglês que trabalha em Portugal desde 1993, vê o processo de design como "a combinação entre o conceptual e o material para criar um objecto que tem de satisfazer as nossas sensibilidades intelectuais e tácteis." E é isso que torna o design de livros, para Andrew, um dos mais completos trabalhos de design gráfico.
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O processo começa sempre pela leitura da obra. E no caso das capas para a Ahab, livros de ficção, "o conteúdo não pode ser resumido num simples momento gráfico."
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Por isso a leitura é fundamental, para perceber não só a história, mas o seu universo e estilo.
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Para João Bicker "não há nada mais importante do que a escolha da tipografia, das letras que darão a ler o texto. Cada tipo de letra carrega no seu desenho características formais e históricas que influenciam a leitura porque influenciam a forma do texto." É importante ter em conta que a FBA, ao trabalhar com o grupo Almedina, tem em mãos muitos livros de ensaio, que pedem uma abordagem diferente da ficção.
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Nos livros de ficção da Ahab, Andrew Howard quis fugir ao facilitismo da tipografia sobre imagem e enveredar antes pelo caminho da união. "O texto torna-se imagem, em vez de ser um elemento separado," diz. Ou seja, Andrew Howard e João Bicker têm abordagens distintas, mas ambos consideram crucial dar importância às letras.
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A Ahab, com um ainda curto período de existência, já ganhou a atenção da crítica e dos leitores que, além da inquestionável qualidade literária de autores que Portugal desconhecia, elogiam também o sólido projecto gráfico do Studio Andrew Howard. E a colecção Minotauro, das Edições 70, desenhada por João Bicker e Ana Boavida, recebeu prémios internacionais de design.
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Se estes dois ateliers estão a produzir boa parte do melhor design de livros que se faz em Portugal, como olham para o trabalho dos outros? Andrew Howard acha que a percentagem de trabalhos bem feitos em Portugal não andará longe do que acontece pela Europa. Já João Bicker é mais crítico. Se é essencial fazer livros que se destaquem nas livrarias, acha que essa tarefa está facilitada "na medida em que o mercado português se caracteriza por uma uniformização de soluções que tudo mistura e tudo confunde."
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4. Geometria não alinhada
"Isto é uma editora pobre e funcionamos sempre com recursos muito parcos." Foi assim que começou a conversa com Vítor Silva Tavares, editor da &etc, uma editora que existe há quase 38 anos, que sempre se manteve à margem, de costas voltadas para o mercado. Há quase 38 anos que faz livros com o mesmo formato, com os materiais mais baratos, e que ainda assim não podem ser ignorados, pelo projecto único que representam.
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Tudo começou no quadrado. Um dia, depois de abandonar o "Diário de Lisboa" para se lançar a uma aventura poética, criar a revista &etc, Vítor Silva Tavares pôs-se a pensar no formato que a revista ia ter. O quadrado já lhe andava na cabeça.
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Pegou num papel e num lápis e desenhou-o. "Um quadrado imperfeito, claro, feito à mão. E a seguir inscrevi-o dentro de um rectângulo, porque se era uma revista, tinha de ser rectangular."
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As medidas foram aperfeiçoadas e aquilo parecia harmonioso aos olhos do seu criador. Fazendo curta a longa história, o formato foi definido para a revista e depois foi feito numa escala menor para os livros da &etc. Assim nasceu este formato único, de personalidade vincada.
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"O quadrado é quase mítico", diz-nos Vítor Silva Tavares. Por isso é que é dentro do quadrado que os artistas desenvolvem o desenho das capas da editora. E aquilo que podia ser uma limitação aos artistas, acaba por ser "um desafio à inventividade e à criatividade." O que explica, na opinião do editor, a felicidade de algumas das capas da &etc.
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A utilização dos materiais mais baratos é motivada não só pelos parcos recursos, mas também pelo "gosto por esses materiais pobres, que ainda têm personalidade, que não são plastificados, industriais, e que pretendo recuperar dando-lhes uma nobreza."
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Depois, a ideia era "dar tanta ênfase à ilustração, à pintura, como à mensagem literária. De forma a constituir um todo e, se possível, fazer do livrinho um objecto onde as artes plásticas e o conteúdo fizessem uma unidade." Dentro daquele quadrado que se insere nas capas da &etc passaram muitos artistas. Ilustradores, pintores e também designers. Só que designers é uma palavra que não se usa naquela cave da Rua da Emenda. Os designers colaboraram enquanto "desenhadores, ou pintores, ou ilustradores. As nossas capas não são capas de design."
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A &etc funciona num universo à parte e orgulha-se disso. Será assim até ao fim. Não podemos falar aqui em design da editora, mas podemos elogiar o projecto gráfico e artístico, que assim Vítor Silva Tavares não se zangará.
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