Literatura Fantástica
O Evangelho Segundo Marcos
Mostramos a seguir um conto de Jorge Luis Borges, um dos maiores
escritores argentinos, que morreu em 1986. A história, como o leitor
poderá confirmar, tem um final surpreendente
escritores argentinos, que morreu em 1986. A história, como o leitor
poderá confirmar, tem um final surpreendente
Por Jorge Luis Borges - Ilustrações Christiane S. Messias
O texto aqui apresentado é um capítulo do livro O Informe de Brodie, de Jorge Luis Borges, publicado pela Editora Globo. Tradução: Hermilo Borba Filho.
O texto aqui apresentado é um capítulo do livro O Informe de Brodie, de Jorge Luis Borges, publicado pela Editora Globo. Tradução: Hermilo Borba Filho.
O fato aconteceu na estância Los Álamos, no município de Jenín, para os lados do sul, nos últimos dias do mês de março de 1928. Seu protagonista foi um estudante de medicina, Baltasar Espinosa. Podemos defini-lo por enquanto como um dos muitos rapazes portenhos, sem outros traços dignos de nota que essa faculdade oratória que o fizera merecer mais de um prêmio no colégio inglês de Ramos Mejía, além de uma quase ilimitada bondade. Não gostava de discutir; preferia que o interlocutor tivesse razão e não ele. Ainda que os azares do jogo lhe interessassem, era mau jogador, porque lhe desagradava ganhar. Sua franca inteligência era preguiçosa; aos 33 anos precisava concluir uma matéria para graduar-se, justamente a que mais o atraía. Seu pai, que era livre-pensador, como todos os senhores de sua época, o instruíra na doutrina de Herbert Spencer, mas sua mãe, antes de uma viagem a Montevidéu, pediu-lhe que rezasse o Pai-Nosso todas as noites e fizesse o sinal-da-cruz. No decorrer dos anos jamais quebrou essa promessa. Não lhe faltava coragem; certa manhã trocara, com mais indiferença que raiva, dois ou três socos com um grupo de companheiros que queria forçá-lo a participar de uma greve universitária. Era pródigo, por espírito de aquiescência, em opiniões ou hábitos discutíveis: o país lhe importava menos que o risco de que em outros lugares acreditassem que usamos penas; venerava a França, mas menosprezava os franceses; detestava os americanos, mas aprovava o fato de que houvesse arranha-céus em Buenos Aires; acreditava que gaúchos da planície são melhores cavaleiros que os das coxilhas ou das colinas. Quando Daniel, seu primo, propôs-lhe veranear em Los Álamos, disse imediatamente que sim, não porque gostasse do campo mas por natural complacência e porque não procurou razões válidas para dizer não.
A sede da estância era grande e um pouco abandonada; as dependências do capataz, que se chamava Gutre, estavam muito perto. Os Gutre eram três: o pai, o filho – singularmente tosco – e uma moça de paternidade incerta. Eram altos, fortes, ossudos, com cabelo tendendo para o avermelhado e com feições de índio. Quase não falavam. A mulher do capataz morrera havia anos.
Espinosa, no campo, foi aprendendo coisas que não sabia e das quais suspeitava. Por exemplo, que não se deve galopar quando se está aproximando das casas e que ninguém sai a cavalo a não ser para cumprir uma tarefa. Com o tempo, chegaria a distinguir os pássaros pelo canto.
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O Evangelho Segundo Marcos - continuação
Poucos dias depois, Daniel teve de ir à capital para fechar uma operação com animais. No máximo, o negócio lhe tomaria uma semana. Espinosa, que já estava um pouco farto das bonnes de seu primo e de seu infatigável interesse pelas variações da moeda, preferiu ficar na estância com seus livros escolares. O calor aumentava e nem mesmo a noite trazia alívio. Na aurora, os trovões despertaram-no. O vento sacudia as casuarinas. Espinosa ouviu as primeiras gotas e deu graças a Deus. O ar frio veio de repente. Nessa tarde, o Salado transbordou.
No dia seguinte, Baltasar Espinosa, olhando da varanda os campos alagados, pensou que a metáfora que equipara os pampas ao mar não era, pelo menos nessa manhã, totalmente falsa, embora Hudson tenha escrito que o mar nos parece maior porque o vemos da coberta do barco e não do cavalo ou de nossa altura. A chuva não amainava. Os Gutre, ajudados ou incomodados pelo visitante da cidade, salvaram boa parte do rebanho, embora muitos animais tenham se afogado. Os caminhos para chegar à estância eram quatro: todos foram cobertos pelas águas. No terceiro dia, uma goteira ameaçou a casa do capataz; Espinosa cedeu-lhes um quarto que ficava no fundo, ao lado do galpão das ferramentas. A mudança os foi aproximando; comiam juntos na grande sala de jantar. O diálogo era difícil; os Gutre, que sabiam tantas coisas em assuntos do campo, não sabiam explicá-las. Uma noite, Espinosa perguntou-lhes se as pessoas guardavam alguma lembrança dos ataques dos índios, quando o comando estava em Junín. Disseram-lhe que sim, mas a mesma coisa teriam respondido a uma pergunta sobre a execução de Carlos I. Espinosa lembrou-se de que seu pai costumava dizer que quase todos os casos de longevidade no campo são casos de pouca memória ou de um conceito vago das datas. Os gaúchos costumam ignorar igualmente o ano em que nasceram e o nome de quem os gerou.
Em toda a casa não havia outros livros que uma coleção da revista La Chacra, um manual de veterinária, um exemplar de luxo do Tabaré, uma Historia del Shorthorn en la Argentina, algumas narrativas eróticas ou policiais e um romance recente: Don Segundo Sombra. Espinosa, para distrair de algum modo a inevitável conversa após o jantar, leu um par de capítulos para os Gutre, que eram analfabetos. Infelizmente, o capataz fora tropeiro e não lhe podiam interessar as andanças de outro. Disse que esse trabalho era leve, que levavam sempre um cargueiro com tudo o que se precisava e que, se não tivesse sido tropeiro, jamais teria chegado até a Laguna de Gómez, até o Bragado e até os campos dos Núñez, em Chacabuco. Na cozinha havia uma guitarra; os peões, antes dos fatos que conto, sentavam-se em roda; alguém a afinava e jamais chegava a tocar. Isto se chamava uma guitarrada.
Espinosa, que deixara crescer a barba, costumava demorar-se diante do espelho olhando seu rosto mudado e sorria ao pensar que em Buenos Aires entediaria os rapazes com a narrativa da inundação do Salado. Curiosamente, sentia saudades de lugares aos quais nunca fora e jamais iria: uma esquina da rua Cabrera onde há uma caixa de correio, uns leões de alvenaria em um portão da rua Jujuy, a algumas quadras do Once, um armazém com piso de lajotas que não sabia muito bem onde ficava. Quanto a seus irmãos e a seu pai, já saberiam por Daniel que ele estava ilhado – a palavra, etimologicamente, era exata – pela enchente.
Explorando a casa, sempre cercada pelas águas, deu com uma Bíblia em inglês. Nas páginas finais os Guthrie – era este seu nome verdadeiro – haviam escrito sua história. Eram oriundos de Inverness, chegaram a este continente, sem dúvida como peões, em princípios do século 19 e tinham acasalado com índios. A crônica cessava em mil oitocentos e setenta e tantos; já não sabiam escrever. Depois de umas poucas gerações, haviam esquecido o inglês; o castelhano, quando Espinosa os conheceu, dava-lhes trabalho. Careciam de fé, mas em seu sangue perduravam, como rastos obscuros, o duro fanatismo do calvinista e as superstições dos pampas. Espinosa falou-lhes de sua descoberta e eles quase não o escutaram.
Folheou o volume e seus dedos o abriram no começo do Evangelho segundo Marcos. Para exercitar-se na tradução e talvez para ver se entendiam alguma coisa, decidiu ler para eles esse texto depois da refeição. Surpreendeu-se de que escutassem com atenção e depois com silencioso interesse. Talvez a presença das letras de ouro da capa lhe desse mais autoridade. Trazem isso no sangue, pensou. Também lhe ocorreu que os homens, ao longo do tempo, têm repetido sempre duas histórias: a de um barco perdido que procura pelos mares mediterrâneos uma ilha amada e a de um deus que se faz crucificar no Gólgota. Lembrou-se das aulas de oratória em Ramos Mejía e ficava de pé para pregar as parábolas.
Os Gutre davam conta rapidamente da carne assada e das sardinhas para não atrasar o Evangelho.
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O Evangelho Segundo Marcos - continuação
O Evangelho Segundo Marcos - continuação
Uma ovelhinha que a moça mimava e adornava com uma fitinha azul-celeste machucou-se em uma cerca de arame farpado. Para estancar o sangue, queriam colocar-lhe uma teia de aranha; Espinosa curou-a com algumas pastilhas. A gratidão que essa cura despertou não deixou de assombrá-lo. A princípio, desconfiara dos Gutre e escondera em um de seus livros os 240 pesos que levava consigo; agora, ausente o patrão, ele tomara seu lugar e dava ordens tímidas, que eram imediatamente acatadas. Os Gutre o seguiam pelos aposentos e pelo corredor, como se andassem perdidos. Enquanto lia, notou que retiravam as migalhas que ele deixara sobre a mesa. Uma tarde surpreendeu-os falando dele com respeito e poucas palavras. Terminado o Evangelho segundo Marcos, quis ler outro dos três que faltavam; o pai pediu-lhe que repetisse o que já havia lido, para entendê-lo bem. Espinosa sentiu que eram como crianças, para quem a repetição agrada mais que a variação ou a novidade. Uma noite sonhou com o Dilúvio, o que não é de estranhar; as marteladas da construção da arca despertaram-no e pensou que talvez fossem trovões. De fato, a chuva, que havia amainado, voltava a recrudescer. O frio era intenso. Disseram-lhe que o temporal quebrara o telhado do galpão das ferramentas e que o mostrariam logo que as vigas estivessem consertadas. Já não era um forasteiro e todos o tratavam com atenção e quase o mimavam. Nenhum deles gostava de café, mas sempre havia para ele uma xícara, que enchiam de açúcar.
O temporal ocorreu em uma terça-feira. Na quinta à noite, acordou-o uma pancadinha suave na porta, que, por via das dúvidas, sempre fechava à chave. Levantou-se e abriu: era a moça. Na escuridão não a viu, mas pelos passos notou que estava descalça e depois, na cama, que já viera nua. Não o abraçou, não disse uma única palavra; deitou-se junto dele e estava tremendo. Era a primeira vez que conhecia um homem. Quando foi embora, não lhe deu um beijo; Espinosa pensou que nem ao menos sabia como se chamava. Premido por uma íntima razão que não tentou verificar, jurou que em Buenos Aires não contaria essa história a ninguém.
O dia seguinte começou como os anteriores, a não ser que o pai falou com Espinosa e perguntou-lhe se Cristo se deixara matar para salvar todos os homens. Espinosa, que era livre-pensador, mas que se viu obrigado a justificar o que lera para eles, respondeu-lhe:
– Sim. Para salvar todos do inferno.
Gutre disse-lhe então:
– O que é o inferno?
– Um lugar embaixo da terra onde as almas arderão para sempre.
– E também se salvaram os que lhe cravaram os cravos?
– Sim – replicou Espinosa, cuja teologia era incerta.
Gutre disse-lhe então:
– O que é o inferno?
– Um lugar embaixo da terra onde as almas arderão para sempre.
– E também se salvaram os que lhe cravaram os cravos?
– Sim – replicou Espinosa, cuja teologia era incerta.
Receara que o capataz lhe exigisse explicações do que acontecera na noite anterior com a filha. Depois do almoço, pediram-lhe que relesse os últimos capítulos.
Espinosa dormiu uma longa sesta, um leve sono interrompido por persistentes martelos e vagas premonições. Por volta do entardecer, levantou-se e saiu para o corredor. Disse como se pensasse em voz alta:
– As águas estão baixas. Já falta pouco.
– Já falta pouco – repetiu Gutre, como um eco.
– Já falta pouco – repetiu Gutre, como um eco.
Os três o haviam seguido. Ajoelhados no piso de pedra, pediram-lhe a bênção. Depois o amaldiçoaram, cuspiram nele e o empurraram até o fundo. A moça chorava. Espinosa entendeu o que o esperava do outro lado da porta. Quando a abriram, ele viu o firmamento. Um pássaro piou; pensou: “É um pintassilgo.” O galpão estava sem teto; haviam arrancado as vigas para construir a cruz.
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http://www.terra.com.br/planetanaweb/353/materias/353_evangelho_segundo_marcos_03.htm
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