sexta-feira, 18 de setembro de 2015

oscar wilde e o aniversário da princesa

* Victor Nogueira


Os contos de Oscar Wilde são duma aparente leveza,  escritos com humor polvilhado dum realismo fantástico. Mas para lá disto, encontramos também a acutilância desmistificadora duma certa "realidade" que pouco ou nada se compadece com a "fantasia" que está para além das aparências, num constante jogo de espelhos umas  vezes baços, outras cristalinos.

Dentre os contos de Wilde escolho este excerto, d'O Aniversário da Princesa, no qual esta era seguida pelas outras crianças,  "observando rigorosamente as precedências: à frente iam as que usavam maior quantidade de apelidos"


oscar wilde e o aniversário da princesa




Era o dia do aniversário da infanta: completava doze anos, e o sol brilhava magnífico nos jardins do palácio.  

(...) 

O tio e o inquisidor-mor eram muito mais sensatos: haviam saído para o terraço e dirigiam-lhe amáveis parabéns. A infanta sacudiu a cabeça e, tomando D. Pedro pela mão, desceu devagar os degraus que conduziam a uma comprida tenda de seda cor de púrpura, adrede erecta ao fundo do jardim. As outras crianças seguiram-na, observando rigorosamente as precedências: à frente iam as que usavam maior quantidade de apelidos.

(...)

O anãozinho, porém, pouco se importava com estes esplendores. Não teria dado a sua rosa por todas as pérolas do dossel, nem uma das pétalas pelo próprio trono. O que queria era ver a princesa antes que ela descesse à tenda e pedir-lhe que viesse com ele quando a dança terminasse. Ali, no palácio, o ar era denso e pesado, mas na floresta o vento soprava livremente e os raios solares, com mãos de oiro trémulas, afastavam as folhas para os lados. Lá, havia flores, talvez não tão imponentes como as dos jardins do Paço, porém mais docemente perfumadas: jacintos, na Primavera, que inundavam de púrpura os frescos vales e as colinas verdejantes, prímulas amarelas que se aninhavam em grupos junto às raízes ásperas dos carvalhos; celidónias brancas, campainhas azuis e íris dou-radas e de tons de lilás. Havia flores alvadias nas aveleiras, as digitais dobravam ao peso dos seus alvéolos frequentados pelas abelhas.

(...)

Era esta, de todas as salas, a mais bela e a mais resplandecente. As paredes estavam cobertas de damasco cor-de-rosa, historiado de pássaros e melindrosas flores de prata. De prata maciça era a mobília, com festões, grinaldas, Cupidos esvoaçantes. Em frente das vastas lareiras, dois guarda-fogos bordados com papagaios e pavões; e o chão, de ónix verde-mar, dir-se-ia perder-se na distância. Contudo, ele não estava sozinho. De pé, enquadrado numa porta do extremo da sala, viu uma figura pequenina que o observava. Tremeu-lhe o coração, dos lábios soltou-se-lhe um grito de alegria, e ei-lo a caminhar para lá. Conforme avançava, viu a figurinha vir também ao seu encontro.

A infanta? Não, era um monstro, o mais grotesco de todos os monstros. Em vez de talhada como as outras pessoas, esta apresentava-se corcunda, de pernas tortas, com uma cabeça enorme e pendente e uma densa crina sombria. O anãozinho carregou o cenho, e o monstro também. Riu, e o outro riu com ele, e afastou as mãos para o lado, exactamente como ele fazia. Baixou a cabeça numa vénia trocista, e viu retribuído o cumprimento. Adiantou-se e o imitador veio ao seu encontro, arremedando-lhe cada passo e parando quando o anão parava. Este gritou, divertido, correu para a frente, estendeu a mão, e a mão do monstro tocou a sua, fria como gelo. Teve medo, afastou os dedos, e os outros dedos afastaram-se. Tentou depois agarrá-los, mas impedia-o qualquer coisa ao mesmo tempo macia e dura. A face do monstro estava agora muito perto da sua e parecia também aterrorizada. Sacudiu o cabelo, que lhe caía nos olhos, e o outro fez o mesmo. Bateu-lhe, e ele respondeu, pancada por pancada. Bocejou, e viu a carantonha abrir a boca. Recuou, e o monstro recuou também.

Que seria aquilo? Pensou um instante e olhou derredor para o resto da sala. Era esquisito, mas a verdade é que cada objecto se lhe afigurou ter o seu duplo nessa parede invisível, duma limpidez de água. Qualquer quadro mostrava além o seu igual, qualquer sofá se repetia exactamente lá defronte. O Fauno adormecido, que jazia no vão da parede, junto à porta, era irmão gémeo de outro que dormia também, e a Vénus argêntea, banhada agora pela luz do Sol, estendia os braços a uma Vénus tão encantadora como ela.

Seria o eco? Falara alto, certa vez no vale, e o eco repetira-lhe a fala, palavra por palavra. Poderia troçar dos olhos, como troçava da voz? Saberia fa¬zer um mundo de imitação, em tudo semelhante ao verdadeiro? Teriam as sombras das coisas vida, cor e movimento? Admitir-se-ia que...?

Estremeceu, e, tirando do peito a linda rosa branca, voltou-se e beijou-a. O monstro possuía também a sua rosa, igual em todas as pétalas; beijou-a com beijos iguais e apertou-a ao coração em gestos horripilantes.

Quando nele a verdade alvoreceu, soltou o anão um grito de desespero, selvático, e tombou por terra, a soluçar. Era ele, pois, o contrafeito, o corcunda, o grotesco, o risível! Era o próprio monstro, de quem riam todas as crianças, e até a princesinha; ela, que o anão julgou que o amava, apenas escarnecera da sua fealdade, dos seus membros disformes. Por que o não haviam deixado na flores ta, onde não existiam espelhos que lhe dissessem quanto era hediondo? Por que não o matara o pai, em vez de o vender e o expor à humilhação? Pelas faces desciam-lhe lágrimas escaldantes. Desfez em pedaços a rosa branca, e o monstro do espelho procedeu do mesmo modo, atirando ao ar as pétalas delicadas. Rojou-se no chão, e, quando olhou para o seu duplo, este observava-o com uma expressão dolorosa. Afastou-se, com medo de o ver, e tapou os olhos com as mãos; rastejou, como um animal ferido, para o escuro, e ali ficou a gemer.

(...)

TEXTO COMPLETO EM  Contos de Aula




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