domingo, 28 de fevereiro de 2016

Traduzindo Jabberwocky, de Lewis Carroll

26 de fevereiro de 2016 - 15h37 

A tradução de Jabberwocky*, de Lewis Carroll, foi uma aventura de interpretação meio surrealista e absolutamente pessoal de uma das obras primas do nonsense literário.

Por Flávio Aguiar**, no Blog da Boitempo


 Adaptação do poema Jabberwocky, de Lewis Carroll, feita pelo artista gráfico Eran Cantrell para a antologia Cânone Gráfico: clássicos da literatura universal em quadrinhos, da Boitempo

Divulgação / Boitempo

Adaptação do poema Jabberwocky, de Lewis Carroll, feita pelo artista gráfico Eran Cantrell para a antologia Cânone Gráfico: clássicos da literatura universal em quadrinhos, da BoitempoAdaptação do poema Jabberwocky, de Lewis Carroll, feita pelo artista gráfico Eran Cantrell para a antologia Cânone Gráfico: clássicos da literatura universal em quadrinhos, da Boitempo Lembrei-me de uma frase do professor canadense Northrop Frye, de quem tive a honra e o prazer de ser aluno, no Victoria College, em Toronto, nos anos 80 do século passado. Ele dizia que um professor atinge sua máxima potência quando pode realizar o que chamava de “improvisação erudita”, isto é, pode improvisar na sala de aula a partir, por exemplo, de uma pergunta que introduz um tema não previsto, com a mobilização de seus conhecimentos acumulados ao longo dos anos. Neste contexto improvisação não tem nada de negativo, pelo contrário: é como no jazz, toma-se um motivo e sai-se por pautas e acordes nunca dantes navegados. É claro que isto envolve conhecimento, estudo, análise e interpretação do original e seu contexto, de sua fortuna crítica, tudo feito com bastante cuidado e atenção. Mas depois é necessário entregar-se a um fluxo de consciência, talvez até junto de alguma semiconsciência, para captar e reconstruir aquela energia poética na própria língua do tradutor. Tem que haver uma combinação de cálculo e espontaneidade. O professor Frye também costumava dizer que os poetas maduros não criam poemas; são estes que, estando latentes na linguagem, encontram os seus poetas…

Dou como exemplo minha escolha para a tradução de “vorpal sword”: usei a palavra “espada” e rebatizei-a como “Tizonum”, que deve-se pronunciar “Tizonúm”. Fui buscar ajuda no vizinho – no caso, no espanhol – me valendo de uma variação para a espada chamada de “Tizona” que, com a “Colada” eram as armas preferidas de El Cid, o Campeador. Chamei a arma de Tizonum num lance de dicção, porque me pareceu que seu ritmo se aproximava do “vorpal sword” do original, com acento e ao mesmo tempo fechamento na última sílaba da expressão. A busca também me foi inspirada pela solução do desenhista, já que a espada que ele concebeu é algo parecida com a “Tizona” do Cid, com o formato de T invertido no punho. Isto ilustra que o tradutor, no caso, de uma versão em quadrinhos de um determinado poema, pode, sim, se inspirar nas soluções do desenhista.





Já a ideia de traduzir o monstro que dá título ao poema me veio de repente, “Jabberwocky” por “Dragodonte”, que mistura “dragão” com “pteranodonte”, por exemplo, ou algo assim. Mas a solução me pareceu pertinente, porque o pteranodonte era um pássaro, e na nossa imaginação dragões costumam ter asas, mesmo que pequenas.

Uma das interpretações do poema de Lewis Carroll afirma que ele é, entre outras coisas, uma paródia do poema épico Beowulf, cuja versão escrita que temos é em anglo-saxão arcaico e data do século 11, embora provavelmente ele tenha sido criado antes. Lewis (cujo nome original era Charles Lutwidge Dodgson) começou a escrevê-lo em 1855, quando tinha 23 anos, para publicação num jornalzinho de divertimento familiar. Carroll apresentou a sua primeira estrofe como “um poema (“stanza” no original) anglo-saxão. Tinha, portanto, um ar de brincadeira, paródia e divertimento. Dez anos mais tarde, já completo, ele foi incluído no Alice no país dos espelhos.

Para a minha tradução escolhi como primeiro foco manter este tom divertido entre o épico e o brejeiro, tentando preservar o ritmo e o jogo das rimas. Já em sua versão, que considero brilhante e inspiradora, Augusto de Campos dá a impressão de ter posto seu primeiro foco na erudição em torno das palavras, sobretudo, é claro, dos neologismos e do nonsense. São versões paralelas que na minha visão não entram em conflito, mas se complementam. Seguindo uma tradição musical, eu diria que, para mim, Augusto criou uma peça entre o Adagietto e o Andantino, enquanto eu criei algo entre o Andante e o Allegro Moderato… Numa outra visada (ou será risada, no sentido simpático?), o Augusto nacionalizou o poema de Carroll, com o seu “Jaguadarte”, enquanto eu, com o meu “Dragodonte”, joguei-o no meio do “Jurassic Park”… 

*A tradução de Flávio Aguiar integra a antologia Cânone Gráfico: clássicos da literatura universal em quadrinhos, que reúne adaptações gráficas de obras canônicas do século 19 

**Flávio Aguiar é pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros publicados, ganhou o prêmio Jabuti três vezes, sendo um deles com o romance Anita.

Fonte: Boitempo

http://www.vermelho.org.br/noticia/276824-11

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