Matai-vos Uns aos Outros
"Croniqueta de província", redigida em Paris, em 1958, a narrativa é protagonizada pelo agente da judiciária António Santiago, destacado para Vila Velha para averiguar a morte de um rico proprietário, Manuel dos Santos, que morrera envenenado depois de uma ceia com dez amigos. Colhendo estratégias narrativas firmadas pelo neorrealismo, e submetendo-as à estrutura do romance policial, a narrativa é construída através da alternância e oposição entre o discurso interior do agente, em itálico, e o discurso das diversas testemunhas. Além da paródia ao intertexto bíblico, visível desde o título e corroborada com múltiplas outras alusões que invertem o sentido da mensagem evangélica ("o assassino está no meio de nós"), o romance, que tem como pano de fundo um contexto da repressão policial sobre o povo de Vila Velha, formula uma crítica à desumanização capitalista: "Ele não sabia, nem os seus pares o sabem, que são condenados à espera da morte, cadáveres em cata de sepultura!... E são-no, na medida em que a grandeza deles é feita do empobrecimento de outrem... Mas eles não o sabem, ninguém o sabe... [...] De onde vêm? Para onde vão? Não sabem. Ninguém sabe. Vivem, sem curar desvendar o sentido dos seus atos. Nada!..."
- Como referenciar: in Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-02-06 13:36:58]. Disponível na Internet:
Terça-feira, 18 de Outubro de 2005
JORGE REIS (1926-2005)
Quase por acaso percebo que os fusíveis da vida deram mais
um estoiro e romperam-me uma companhia que nunca usufruí no vivo de presença
física. E no entanto, a sua voz e a sua pena marcam de forma impressiva a minha
formação como homem social.
Por um lado, um velho livro - que livro! – que descarnava
magistralmente as teias das cumplicidades sacanas dos “situacionistas bem
instalados” na modorra do sabor do poder eterno numa qualquer cidade de
província do Portugal assalazarado. A escrita era (e é) de primeira água
(leiam-no agora e digam se agora se escreve melhor), o título era um panfleto
(“Matai-vos uns aos outros”) e o livro, logo proibido e apreendido, era
comprado por baixo do balcão naqueles livreiros que se governavam à pala das
proibições da Censura.
Depois, ainda a televisão não irrompera ou ainda era coisa
de poucos e com os noticiários feitos propaganda do fascismo, era uso que a
fita de cinema fosse antecedida de desenhos animados e de uma coisa que nos
ligava às notícias do mundo, chamada “Actualidades Francesas”. A locução era
feita por uma voz em bom português mas com sotaque especial (explicíto mas
afrancesado) e uma ênfase de narração envolvente que pontualializava os altos
das notícias de uma mundivivência que nos parecia vir de muito longe do nosso
ruralismo pacóvio e presbítero. A voz era a do romancista de curta obra.
Fugido da PIDE em 1949, este ribatejano de muitas e duras
cepas, homem das grandes greves de 1944, ficou-se por França e marcou a nossa
diáspora que ali caiu fugida á fome ou à guerra colonial. Julgo que tão
agarrado ficou ao exílio, aos exilados e emigrantes, lá construindo família,
que nem o 25 de Abril lhe conseguiu impor regresso à sua lezíria ribatejana
onde lhe cresceram as raízes da razão, da luta e da sensibilidade.
Com atraso - ele morreu no passado 1 de Outubro - soube da
sua tão silenciosa e silenciada perda aqui. Onde também fiquei a saber que esse
homem que foi meu Mestre “à distância” se chamava Atilano Jorge dos Reis
Ambrósio. E onde leio essa singela e estética nota necrológica:
“Hélène, a sua esposa, Annie e Jean-Claude, os seus filhos,
Alexandra e Olivier, os seus netos, têm a profunda tristeza de anunciar a morte
de Jorge Reis, escritor, jornalista, cronista, Comendador da Ordem do Infante
D. Henrique, que faleceu em Paris, no dia 1 de Outubro de 2005. A cerimónia
fúnebre decorreu no Cemitério Père-Lachaise de Paris, no dia 8 de Outubro. Que
a memória de Jorge Reis continue presente no espírito dos que o conheceram.”
Se continua presente! O seu livro é de estimação perene. A
sua voz chegou-me outra vez, e do ouvido já não sai, como se fosse ele mesmo a
ler, no “Actualidades Francesas”, a notícia do seu último exílio sem regresso.
E eu a sentir-me sentado numa sala escura de cinema a ligar-me ao mundo, ouvindo-o,
antes que a película do filme esperado comece a rodar nos carretos da maquineta
que tem fama de fabricar ilusões.
Publicado por João Tunes às 15:30
http://agualisa6.blogs.sapo.pt/877247.html
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