terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

António Nobre - Memória

* António Nobre

À minha mãe
Ao meu pai

Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois voltou;
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:
Tempos depois, por uma certa lua nova,
Nasci eu… O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse: _«Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já…» _ e ainda não voltou!
António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, o cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever…
Lede-o e vereis surgir do poente havidas mágoas,
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas,
E sobe aos alcantis para o tornar a ver!
Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes,
Em terras de Borba, com torres e pontes.
Português antigo, do tempo da guerra,
Levou-o o destino pra longe da terra.
Passaram os anos, a Borba voltou,
Que linda menina que, um dia, encontrou!
Que linhas fidalgas e que olhos castanhos,
E, um dia, na Igreja correram os banhos,
Mais tarde, debaixo de um signo mofino,
Pela lua-nova, nasceu um menino.
Ó mães dos Poetas! Sorrindo em seu quarto,
Que são virgens antes e depois do parto!
Num berço de prata, dormia deitado,
Três moiras vieram dizer-lhe o seu fado
(E abria o menino seus olhos tão doces):
«Serás um Príncipe! Mas antes… não fosses!»
Sucede, no entanto, que o Outono veio
E, um dia, ela resolve ir dar um passeio.
Calçou as sandálias, tocou-se de flores,
Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores:
«Vou ali adiante, à Cova, em berlinda,
António, e já volto…» e não voltou ainda!
Vai o Esposo, vendo que ela não voltava,
Vai lá ter com ela, por lá se quedava.
Ó homem egrégio! De estirpe divina,
De alma de bronze e coração de menina!
Em vão corri mundos, não vos encontrei
Por vales que fora, por eles voltei.
E assim se criou um anjo, o Diabo, o lua:
Ai corre o seu fado! A culpa não é sua!
Sempre é agradável ter um filho Virgílio,
Ouvi estes carmes que eu compus no exílio,
Ouvi-os vós todos, meus bons Portugueses!
Pelo cair das folhas, o melhor dos meses,
Mas, tende cautela, não vos faça mal…
Que é o livro mais triste que há em Portugal!

NOBRE, António; Só; Alfragide; Leya; 1.ª edição BIS; 2009; p. 9


http://repositorio.uma.pt/bitstream/10400.13/610/1/MestradoLilianaMartins.pdf

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