CRÓNICA
O relógio da
Festa
Ao jantar, ainda antes de o relógio ser
guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ajudar a
construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!.
9 de
Setembro de 2018, 12:43
Com dez anos, naquele mês de Setembro, pensei que toda a população do mundo
estava junto ao rio Tejo, em Lisboa. Nunca tinha visto e sentido tanta gente.
Por vezes não se conseguia andar. Olhava para cima, na tentativa de alertar os
adultos par o facto de estar ali. Sentia-me apertado. Quase esmagado. Aquela
massa compacta de gente estava feliz. Invadiam todos os lugares da antiga FIL.
Eram milhões de conversas, milhares de sorrisos, infinitos abraços. E no
domingo à tarde o comício teve de vir para a rua. A grande nave era pequena de
mais.
Era a primeira edição da Festa do Avante!. Estávamos em
1976. Nunca se tinha visto nada igual. Foi a primeira vez que vi um palco
gigante. Que vi músicos a sério. Sentia-me bem. A palavra que mais se ouvia era
“camarada”. A segunda, “liberdade”. Tudo era novidade. Corredores de política.
Corredores de comida. Corredores de música. Corredores de arte. Mas o espaço
que ficou gravado na minha memória, porque passei lá imenso tempo, era o Espaço
Internacional. Milhares de pessoas queriam ver o pavilhão da União Soviética,
da RDA ou da Checoslováquia. Ali estavam os países socialistas e os partidos
irmãos. Ali estava o imaginário.
Os países socialistas ofereciam livros, cartazes, harmónicas, chapéus,
palas para o sol, emblemas, balões, bandeiras e até relógios de bolso made
inDDR. Algumas coisas consegui no meio de tantos braços esticados. Não me
lembro o quê. Excepto o famoso relógio de bolso. Uma proeza. Uma prova de que a
persistência dá frutos. Durante anos, o relógio de horas certas embelezou a
minha mesa-de-cabeceira. Todos os dias lhe dava corda num ritual quase
mecânico. Tinha orgulho naquele pequeno relógio de algibeira conseguido a
pulso. Com o tempo o relógio perdeu importância. Parou um dia nas seis e seis.
Foi depositado numa gaveta.
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Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu
pai e à minha mãe que queria ir trabalhar. Não sei que idade tinha. Ficaram
espantados. Tinha idade ainda para estudar. Era novo, muito novo. Disse-lhes
que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!.
De mochila às costas, apanhei o comboio e fui. Amigos iam para as vindimas ou
para a paragem da Celulose. Ganhavam dinheiro. Eu optei por ir para a Festa.
Voluntário. Gastar dinheiro aos meus pais. Foi um mês alucinante. Conheci tanta
gente. Fiz tanta coisa. E depois naquele fim de tarde da sexta-feira mágica, os
portões abriram-se e a maré humana invadiu tudo o que tínhamos construído.
Ficou a sensação do dever cumprido. A sensação de que a persistência dá frutos.
Antes de sair de casa, pedi ao meu pai para todos os dias dar corda ao relógio!
Foram anos seguidos a cumprir o meu voluntariado. A Festa ficou-me no
sangue. Cresci a ver a Festa crescer. Preguei milhares de pregos. Coloquei
tubos. Pintei murais. Reguei a relva. Recolhi o lixo. Desenhei letras. Serrei
madeira. Dancei. Abracei. Beijei. Ali, naqueles metros quadrados a perder de
vista, sentíamo-nos bem. Sentíamos paz. Dávamos sentido à vida. Éramos
solidários. Éramos amigos. Ali, era outro mundo. Um mundo sonhado e desejado.
Um mundo difícil de conseguir. Um mundo possível. Humanista. Era o
electricista, o canalizador, o arquitecto, a costureira, o cozinheiro, o
pintor, o artista, o técnico de som, o jardineiro, o médico, a enfermeira, o
bombeiro, o reformado, o estudante... eram tantos e sempre tão poucos. Era tão
gigante aquela tarefa colectiva. Ambiciosa. Construir uma cidade em três meses
para durar três dias. A Festa começava com um esqueleto de tubos ao alto. Ia
sendo construída, levantada do chão. Gostava de adivinhar as formas. Crescia
todos os dias. E depois das paredes ao alto, artistas plásticos davam vida ao
contraplacado castanho-claro. A Festa ganhava cor e mensagem. E quando as
centenas de mastros se engalanavam com bandeiras de várias cores, a sexta-feira
mágica aproximava-se. Eram três dias de sã loucura. Uma maravilha.
Deixei de ajudar a construir a Festa no ano em que coloquei o relógio na
gaveta. O rumo da vida assim o quis. Continuo a admirar o empenho e a dedicação
que homens e mulheres entregam naquela quinta ajoelhada perante o Tejo. Lugar
de liberdade. Lugar de cultura e saber. Lugar fraterno. O mundo necessita de
muitos lugares assim. Nunca faltei à chamada. Nunca faltei a uma Festa. São já
42 edições. Existem amigos que só se abraçam uma vez no ano. É na Festa. Outros
já partiram e ficaram no coração. A Festa do Avante! é um
caldo de emoções. Ao fim do dia, a brisa combate o calor. Gosto de me sentar na
relva e olhar para aquela cidade que cada vez está maior. Penso como é
possível. De onde continua a vir tanta força para planear, organizar e dar vida
a um dos maiores acontecimentos políticos da Europa. Não encontro uma resposta
mas muitas respostas.
A propósito desta crónica tirei o relógio da gaveta. Continuava nas seis
horas e seis minutos. Dei corda e os ponteiros começaram no seu ritual como se
o tempo não tivesse andado. Talvez o relógio made in DDR ainda
não saiba que o Muro de Berlim caiu. Que perdeu a nacionalidade. Que agora é
alemão unificado. Mas os ponteiros teimam em trabalhar. Numa luta por um tempo
novo. O velho relógio alemão ainda não morreu.
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