De Guterres a Pedrógão, de Cavaco a Marcelo. 10 crónicas
de Vasco Pulido Valente no Observador
Índice
- Táxis,
Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out 2016)
- 24 de
Dezembro, 2016
- Um
destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan 2017)
- Mário
Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan 2017)
- Uma
democracia contra a vontade do PC e do MFA (28 jan 2017)
- Nem
às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
- Trumpolinices
(14 maio 2017)
- Eles
e Nós (21 maio 2017)
- O
Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
- Luto
nacional (25 jun 2017)
"As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à
vista a pobreza e a fragilidade de Portugal", escrevia o cronista em
outubro de 2016, na primeira crónica que assinou para o Observador.
21 fev 2020, 17:34
Táxis, Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out
2016)
As discussões sobre o
Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal.
Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos fazia
europeus. Não fez.
Segunda-feira
À cautela fiquei em casa. De qualquer maneira ficava, mas desta vez fiquei com
convicção. Esta querela dos taxistas é um retrato da imbecilidade nacional.
Primeiro, não há uma única espécie de taxistas, há três: os taxistas que
trabalham por conta de outrem (desconfio que a maioria), os proprietários de um
carro (e de um alvará) que são no fundo donos de um pequeno negócio de família
(feito à custa de austeridade e poupança) e as empresas que têm dezenas (ou
centenas) de táxis, que, naturalmente, se governam por outros interesses. A lei
juntou as três espécies por uma questão de ignorância e de amadorismo. Vieram
brincar aos governos, brincam aos governos. Resultado: arranjaram um sarilho
sem uma saída digna.
Terça-feira
Agora que já acabou ou, pelo menos, se atenuou a campanha patriótica para a
canonização de Guterres, talvez se possa olhar para ele com alguma
tranquilidade e medida. Por acaso conheço a criatura. É um homem fraco,
influenciável, indeciso e superficial. A crónica amnésia deste país fez
desaparecer numa semana de glória o péssimo governo que ele dirigiu; um governo
que estava sempre em crise porque o primeiro ministro avançava, recuava, não
era capaz de resolver nada de uma vez para sempre e, como disse Medina
Carreira, caía em terríveis transes de angústia quando tinha de dizer “não”.
Esse é o Guterres de que me lembro e não me parece a encarnação de um grande
diplomata. Quanto ao resto, o católico a roçar o beato, cheio de amor pelos
pobrezinhos, também não me entusiasma: a ONU não precisa de uma nova versão de
Sta. Teresa de Calcutá.
Quarta-feira
Consta por aí que o eng. Sócrates vai publicar outro livro. Por descargo de
consciência li o primeiro. É um exercício escolar sem originalidade ou rigor,
que, como lhe compete, exibe uma enorme incultura filosófica. Não valia a pena
tornar a falar dele se Sócrates não aparecesse agora com uma nova prestação dos
seus pensamentos, desta vez sobre o “carisma” (um assunto que tresanda a
pretexto para o auto-elogio). Depois do que se disse sobre a autoria e as
vendas da sua alegada tese, nenhum académico com vergonha se atreveria a
lembrar a sua presença sobre a terra, sem o reconhecimento de uma universidade
idónea. O problema de Sócrates é que está morto, intelectual e politicamente
morto, e se recusa a reconhecer esse facto simples. A agitação em que anda
chega a confranger. Sossegadinho na Covilhã ou no diabo ficava melhor.
Quinta-feira
O debate entre Trump e Clinton não passa de uma zaragata de bordel. A famosa
civilização do Ocidente deu nisto.
Sexta-feira
Quando se puxa o cobertor para cima, ficam os pés de fora; quando se puxa o
cobertor para baixo fica de fora a cabeça. Depois de se insultarem por causa
deste interessante assunto, os senhores da economia recomendam muito sabiamente
que se estique o cobertor. Mas, sobre a maneira de o esticar, não dizem mais
que meia dúzia de lugares-comuns. As discussões sobre o Orçamento de 2017
deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. A choradeira e o ranger
de dentes não levam a nada, nem os triunfos vicários com as façanhas de Ronaldo
ou Guterres. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos
fazia europeus. Não fez.
Sábado
Ando a ler uma “História do Cristianismo – Primeiro Milénio”, que tem 1 100
páginas e ajuda muito quando se tem de esperar. É um interesse antigo que os
meus compatriotas não partilham. Verdade que Saldanha, o da estátua, conseguiu
fazer o maior discurso do Parlamento português sobre o Concílio de Niceia, mas
não era inteiramente bom da cabeça e era Presidente do Conselho e
comandante-em-chefe do exército. Os católicos nunca se interessaram muito pela
origem ou pela teologia da sua fé. Hoje nem sequer há uma boa tradução da
Bíblia (tirando talvez a do Novo Testamento, directamente traduzida do grego
por Frederico Lourenço, que saiu esta semana). O próprio Patriarca deu a
entender a uma amiga minha que não estava muito satisfeito com esta situação. A
Universidade Católica não se interessa e só se preocupa com as suas ninhadas de
economistas, de gestores e daquelas criaturas que se auto-proclamam “cientistas”
políticos. O que estará na cabeça do católico indígena, fora meia dúzia de
orações e de rituais, e de uma vaga crença no Céu e no Inferno?
24 de Dezembro, 2016
Hoje o mundo mudou. A
família alargada quase já não existe. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço
não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Era melhor antigamente? Não
acho.
O Natal da classe média por volta de 1950
Os Correia Guedes
O meu avô Correia Guedes tinha sete filhos, 18 netos, um genro e seis noras. Na
noite de 24 para 25 de Dezembro, a minha avó (já viúva) reunia esta gente toda
em casa dela na Av. da Liberdade: uma casa enorme, onde não faltava espaço e a
mesa de oito metros com tampo de mármore e pés dourados lembrava ainda melhores
tempos. Mas valia a pena. Era aquela a ocasião de ver primos, tios, parentes,
que nunca se viam, de saber da vida de cada um, de armar uma intriga ou outra
e, principalmente, de sentir que fazíamos parte de uma grande família. A
confusão era enorme, a comida e os vinhos não acabavam mais. Os doces, quase
sempre trazidos por vagas relações de segundo ou terceiro grau, também não.
Naquela família de “direita” ninguém ia à missa, nem se faziam discursos.
Quanto muito, no fim de festa, o meu tio Manuel, em nome do patriarca ausente,
subia para uma cadeira e bebia à saúde e prosperidade do rebanho. Não se davam
presentes, talvez por causa do número de crianças (uma boa desculpa) ou mais
provavelmente por causa das circunstâncias da família, que, fora quatro ou
cinco privilegiados, não eram boas. A minha avó, que vivia como no fim do
século XIX, com dama de companhia e três criadas, gastava com energia as sobras
de uma herança longínqua e aos meus tios faltava o talento do pai para
negócios. Apesar disso, do ar de palpável decadência e de uma certa melancolia,
o Natal reconfortava as ruínas daquela família. Mal ou bem tinham conseguido
sobreviver sem desastres de maior e até, de longe em longe, com um ocasional
sucesso. Bem vestidos, bem comidos, com a descendência à volta, o Natal, para
eles, era um afirmação.
Os Pulidos
O Natal dos Pulidos começava em Novembro com a compra de
presentes: um trabalho difícil que exigia muita astúcia e diplomacia. Era
preciso ir ao encontro do que as pessoas realmente queriam ou desejavam (o que
exigia um ouvido alerta e muita dissimulada troca de informação). E era preciso
“equilibrar” as coisas, ou seja, não dar a ninguém (tanto a adultos, como a
crianças) presentes que revelassem uma preferência inoportuna ou fossem por si
mesmos uma injustiça notória. Até ao último minuto a espionagem (o que é que A
tem para B?) e os cálculos não paravam. Os Pulidos eram um clã, como não eram
os Correia Guedes, com um patriarca vivo, o meu avô Francisco Pulido Valente,
que – para tornar o quadro perfeito – fazia anos no dia 25 de Dezembro. A não
ser pelas decorações, que evidentemente não incluíam um presépio, o Natal não
se distinguia bem dessa data sagrada, numa família ateia e anticlerical.
Os festejos culminavam, de resto, num almoço em casa do meu
avô, com uma certa solenidade. Toda a gente se vestia de cerimónia e toda a
gente tinha um lugar à mesa. A conversa, como sempre sucedia nessa doce
família, depressa degenerava em discussão, com cada um a querer mostrar
inteligência e saber ao patriarca, que intervinha pouco e gozava o espectáculo
com orgulho. As senhoras de maneira geral não abriam o bico, porque o meu avô
não deixara ainda o século XIX. Aos genros, sendo médicos, era permitida uma ou
outra palavra. Ao meu pai, engenheiro químico, ninguém concedia qualquer
espécie de autoridade.
Depois do almoço e do champagne, o meu avô passava para a
sala para receber as saudações de fora: antigos “discípulos”, como se dizia na
época, vinham cumprimentar o “Mestre”; amigos famosos prestar a sua
indispensável homenagem; e alguns revolucionários do “5 de Outubro” lamentar
com o velho camarada a ditadura de Salazar. Às sete da tarde, acabava a função.
O Natal da classe média em 2016
Hoje o mundo mudou. A família alargada quase já não existe.
Ninguém se atreve a ter sete ou oito filhos. Num T2, num T3 ou até num T4, o
espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Felizmente para elas,
as criadas desapareceram. Era melhor antigamente? Não acho.
Um destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan
2017)
Marcelo não é um
produto político, é um produto da RTP e da TVI. Entra dia a dia pela nossa casa
adentro, sempre com a mesma fita e futilidade. Um destes dias, o homem acaba a
falar sozinho.
Sempre gostava de saber quanto pagaram as Câmaras deste
abençoado país, que se queixa como de costume de não ter dinheiro, pelos
denominados “festejos natalícios”: iluminações, fogo de artifício, festivais,
concertos, marchas, policiamento (porque certos prazeres não vão sem
policiamento) e outras folias. Na Madeira parece que só o fogo de artifício
custou um milhão e oitocentos mil euros e custou de certeza muito mais por
Portugal inteiro. As pessoas precisam de se divertir, claro. Mas não estava
ainda estabelecido que o Estado devesse fornecer felicidade e entretenimento à
cidadania. Agora, ninguém escapa a essa dolorosa obrigação. Por causa do
turismo? As receitas não chegam para as despesas; e nada mais melancólico do
que o espectáculo de 100 ou 200 mil indivíduos no Terreiro do Paço, que
precisam de se juntar para se sentirem um pouco menos tristes. Se o Estado
confiscasse às Câmaras o dinheiro que gastaram nestas futilidades, não
faltariam maneiras de o usar inteligentemente. O ano acabou mal.
Quando o papel se tornou mais barato, por volta de 1860,
apareceram por toda a parte milhares de jornais. Em Portugal também, e
isso ao princípio foi um escândalo de grandes proporções. Em Lisboa e no Porto,
havia dezenas. Mas cada distrito e quase cada concelho tinha um, ou por
iniciativa local ou pago pelos partidos políticos. Pior ainda, para se atrair o
público da pequena imprensa da província, os jornais de grande circulação
passaram a contratar correspondentes nos mais remotos cantos do país. Milhares
de pessoas enchiam diariamente toneladas de papel. De longe em longe, com boa
prosa e notícias fiáveis; diariamente, com calúnias, impropérios e demagogia,
em prosa de taberna. Como um todo, a imprensa era a versão primitiva de uma
“rede social”. Ninguém se incomodava com isso, excepto os jornalistas que se
davam excessiva importância. Num regime liberal (ou democrático), a necessidade
de participar era geralmente reconhecida e até certo ponto respeitada. As
“redes sociais” cobrem hoje muito mais gente. Ainda bem. O mal seria um público
indiferente ou apático.
Marcelo não é um produto político, é um produto da RTP e da
TVI, mas não percebeu ainda uma das regras básicas da sua verdadeira
profissão ou confundiu o papel de Presidente da República com o seu antigo
papel de entertainer. As pessoas gostavam das conversas com Judite de
Sousa porque queriam passar um bom bocado a ouvir dizer mal dos senhores que
nos pastoreiam e que todos nós detestamos do fundo do coração. O dispensador de
“afecto” (seja lá o que isso for), com os seus beijinhos, as suas selfies,
os seus beberetes, a sua falsa naturalidade e o seu falso sorriso, também
diverte e também não explica. E pior do que isso faz com que Marcelo entre dia
a dia pela nossa casa adentro, sempre com a mesma fita e futilidade.
Esta over-exposure, que o mais mesquinho cómico tenta evitar para não
perder a graça, não incomoda Marcelo. Para ele, quanto mais melhor. Não calcula
quanto tempo vai a populaça achar graça ao espectáculo, nem mede a dificuldade
de mudar de pele, quando tiver de dizer à populaça: “Hoje, minhas senhoras e
meus senhores, não estou aqui como o Marcelo do Afecto, estou aqui como
Presidente da República”. Ninguém acredita. Mas, fora isto, o quê? E é precisa
uma solução porque a cidadania resolveu ignorar, e bem, o discurso de Ano Novo
de Marcelo (?), do Presidente (?), de quem ao certo? Só 637.000 pessoas o
ouviram, a mais baixa audiência de sempre, tirando as de Cavaco em 2013 e 2016,
e longe das dele próprio na TVI (entre um milhão e meio e dois milhões). Um
destes dias, o homem acaba a falar sozinho.
O título “Diário de Notícias” é um programa. Quando o
jornal foi fundado queria dizer que só daria notícias e, principalmente, que
seria apolítico, ou seja, que tencionava ignorar as lutas partidárias do tempo.
Mas de facto o DN acabou por se tornar no órgão oficioso do governo e das
dezenas que vieram depois, durante cem anos (excepto, que me lembre, com Mário
Mesquita e, a seguir, com Mário Bettencourt Resendes). Não admira que esta
admirável instituição tenha resolvido despedir o meu amigo Alberto Gonçalves. O
objectivo dos patrões do DN é viver em boa harmonia com o governo, de maneira a
conseguir um “jeitinho” ou outro, um favorzinho ou outro. Alberto Gonçalves, um
homem de convicções e com pouca paciência para aturar idiotas, e com prosa
sarcástica, penetrante e clara, estragava este suave entendimento. A nossa
direita continua incuravelmente estúpida.
Mário Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan
2017)
No dia em que Mário
Soares desembarcou em Lisboa, em Santa Apolónia, em Abril de 1974, não
desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força
sob a sua aparente fraqueza.
A carreira de Mário Soares não teve nada de particularmente
notável até 1962. Como muito boa gente começou aos vinte anos pelo PC, atraído
pela aventura (e os perigos dela), pelo radicalismo e pelo facto simples de não
existir na oposição qualquer outra alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou no
MUD e, a seguir, na candidatura de Norton de Matos à Presidência da República.
A “colaboração” com os comunistas, se assim se pode chamar, porque ele chegou a
dirigente, não resistiu à ineficiência e à intolerância geral da seita. Em
1950, é expulso do “Partido” por “indisciplina” e “derrotismo”.
Isto, que lhe deu tempo para acabar de se formar em
Histórico-Filosóficas e começar o curso de Direito, também o deixou isolado e
sem destino político evidente. Fora a actividade platónica de um pequeno
círculo de advogados da Baixa, não havia nesse tempo desértico nada a que ele
pudesse aplicar a sua habilidade e energia política. De quando em quando, lá
vinha um abaixo-assinado ou protesto de personalidades, que no fundo só serviam
para actualizar os ficheiros da PIDE. A oposição foi um incómodo para a
Ditadura, mas nunca foi uma verdadeira ameaça. Certamente sem grande esperança
e por puro desemprego cívico, Soares funda em 1955, a Resistência Republicana
com uma dezena de amigos, que não se distinguiu por coisa alguma na vida
política portuguesa; e adere ao Directório Democrático Social de três figuras
venerandas da democracia (António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes), que
eram um símbolo mais do que uma força.
Entretanto o mundo mudava. Em 1958, aparece
surpreendentemente a candidatura de Humberto Delgado (com o apoio de Soares),
que revelou ao melancólico país da Ditadura a extensão e a fúria de uma boa
parte da população. E, em 1962, a chamada “crise académica”, para grande
estupefacção dos próceres do regime, veio provar que nem com os filhos da
burguesia podiam contar. Infelizmente, as relações entre os dirigentes da
“crise” e Mário Soares não foram boas. Primeiro, por culpa dos dirigentes da
“crise”, que com uma ridícula arrogância desprezavam a “velha” oposição
republicana (mas não o PC). Eles mobilizavam de um dia para o outro milhares de
estudantes, tinham uma espécie de imprensa (em stencil), tinham instalações,
tinham automóveis e tinham dinheiro. E o que tinham os democratas da Baixa,
excepto 30 anos de mal empregada indignação e de conspirações falhadas? Mas,
fora isso, que já não era pouco, o pessoal do movimento académico, quando não
militava no Partido Comunista, exibia – por competição e para defesa própria –
um radicalismo que Soares já várias vezes rejeitara. A geração de 1962 ficou
por isso longe da social-democracia europeia e do futuro PS até muito depois do
“25 de Abril”.
De qualquer maneira estas pequenas questões domésticas
interessavam pouco perante a guerra de África, que em 1961 começou em Angola.
Dos políticos portugueses com uma certa notoriedade só Soares percebeu que a
Ditadura deixara de ser um pequeno problema de um país pequeno e sem influência
para se tornar um problema internacional, em que tarde ou cedo as grandes
potências se envolveriam. A oposição já não se fazia, ou devia fazer, em Lisboa
ou no Alentejo, mas na América e na Europa, principalmente na Europa. Em 1962,
Soares transformou a Resistência Republicana em Resistência Republicana
Socialista e, em 1964, criou na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, uma
maneira hábil de se ir ligando aos grandes partidos europeus.
Estabelecer a credibilidade da oposição portuguesa num
Ocidente anticomunista e desconfiado era uma extraordinária tarefa para um
extraordinário homem. Sem a sobre-humana simpatia e a sobre-humana confiança de
Mário Soares talvez fosse impossível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; e
Salazar percebeu. O regime não se inquietava excessivamente com a agitação da
Baixa ou com um ou outro protesto de estudantes, nem sequer com as raras greves
que o PC ia promovendo. Mas Soares falando à solta na América, na Alemanha ou
em Inglaterra, era um risco real, ainda por cima com uma guerra em curso e
sendo ele advogado do general Humberto Delgado, que a PIDE matara. Salazar não
hesitou em o desterrar para S. Tomé.
Quando ascendeu a Presidente do Conselho, Marcelo Caetano,
provavelmente para mostrar o seu duvidoso liberalismo, arranjou uma
tranquibérnia jurídica para permitir que Soares voltasse a Portugal. Voltou e
imediatamente concorreu à eleição para a Assembleia Nacional (como na altura se
chamava o “parlamento”) com uma lista de gente socialista ou próxima do
socialismo, rompendo com a tradição de “unidade” anti-salazarista sob a qual o
Partido Comunista se disfarçava sempre. Mais do que isso. Marcelo prometera
eleições “honestas” (que evidentemente o não seriam) e Mário Soares trouxe a
Portugal um grupo de inspectores da Internacional Socialista, que as declararam
falsas. Dali em diante, a presença em Portugal do homem que o denunciara em
público como mentiroso e que lhe retirara qualquer espécie de legitimidade era
intolerável para Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com a prisão e o desterro,
Marcelo conseguiu que ele ficasse num exílio forçado até 1974. Mas perdeu mais
com esta manobra do que ganhou. Por uma vez relativamente livre, Soares tinha
tempo e meios para expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 a Internacional
Socialista admitiu como membro pleno; e para escrever um livro, o “Portugal
Amordaçado”, publicado em francês. Mas nem nestes anos de solidão se aproximou
dos novos “resistentes”, que haviam fugido à PIDE, à guerra e a Penamacor (uma
unidade penal), e que em Paris se deixaram absorver pelo “renascimento marxista”,
conduzido por um louco, Louis Althusser, que acabou por se proclamar um profeta
e matar a mulher. De revista para revista, esta gente discutia com ódio
teológico as miudezas da sua fé, enquanto Soares tratava do que era importante
e consequente.
Por essa altura, já o império soviético se começava a
desfazer. A Europa de Leste e a própria URSS estavam endividadas ao Ocidente
até ao pescoço e a URSS, em particular, não queria pagar uma segunda Cuba ao
dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crítica
da política “revolucionária”. A Europa ocidental, pelo contrário, ainda não
sentia a gravidade da sua decadência e abria a porta a um (ainda modesto)
alargamento. Soares já se tornara parte dessa Europa. Conheceu Brandt, Schmidt,
Callaghan, Nenni, Mitterrand e a generalidade das grandes personagens que,
tarde ou cedo, decidiriam do nosso destino.
Em 1973, fundara o PS na Alemanha, com dinheiro alemão e o
patrocínio do SPD, e no dia em que desembarcou em Santa Apolónia não
desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força
sob a sua aparente fraqueza.
Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA (28
jan 2017)
Não podia haver uma
guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram
de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à
Alameda.
Tirando as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de
1974 três forças políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA
(que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava. No I
Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, com o
encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a trapalhada
era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber que nenhuma
“negociação” era possível quando o exército se insurreccionara precisamente
para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de outro qualquer aliado, o
trabalho de estabelecer uma democracia contra a vontade do PC e do MFA.
O PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de
Leste, que os russos não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar,
só queria uma “democracia de tipo diferente”, um conceito muito falado na
guerra civil de Espanha e agora tirado do ferro-velho da seita. Em que
consistia essa antiga monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia
em fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia –
incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes
propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença de ir
à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração central e
local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria
rapidamente à miséria e uma larga parte dos militares, duramente analfabetos,
acharam que na sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer
represália, excepto evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes
resolvesse aplicar por desobediência ou “desvio” político. O problema do dr.
Soares era instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA;
e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma
benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos
serviços.
Posto isto, o PS precisava também de reforçar a sua
organização e de se estender a todo o país. Em 1974, o partido não ia além de
algumas venerandas figuras da I República, de alguma Maçonaria e de cinco ou
seis dúzias de drs., espalhados pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise
académica rejeitou quase completamente o que lhe parecia ser um instrumento do
“sub-imperialismo” alemão. Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e
fundou o MES (uma sombra do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa
inqualificável loucura, os mais sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar
juntos num hotel de Lisboa, sob a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção
Socialista). Escusado será dizer que não intervieram em nada de consequente.
Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os
golpes — porque eram verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à
revelia dos poderes nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na
rua manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se
começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas) fechou
o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa compreenderam de uma vez
quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu
grande problema: a eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa
original dos militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do
dia essa eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se
por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus
camaradas do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do
PREC (como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não
deixaria a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se
recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC,
insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em Abril de
1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à volta de 12
por cento no PC.
Mas nem perante esta arrasadora evidência a “festa”
terminou. À boa maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e
caricaturavam a Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos
representantes do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal
garantia a uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal
nunca haveria uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos
de indignidade a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do
seu bolso os seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de
aparecer limpinha ao dr. Mário Soares.
A atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições
de 75. As manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e
nas rádios. José Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem
falava no parlamento ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as
“classes trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os
rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das partes
tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas do PC (e
a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não passava de
uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma guerra civil, mas podia
haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou
de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir
ajudou, à sua maneira, o golpe de 25 de Novembro, que removeu de cena os
partidários do PREC.
Infelizmente, o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os
militares no centro do regime político. O Presidente da República (Eanes)
comandava efectivamente o exército. O Conselho da Revolução, sem espécie de
mandato, aprovava ou desaprovava a legislação da Assembleia, com o propósito de
preservar intacta a sua preciosa “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do
Amaral e Mota Pinto, entre si e contra algumas facções internas no PS e mesmo
no PSD, acabaram por meter os militares nos quartéis, sem lhes deixar um
vestígio de influência política.
Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém,
decidiu organizar um novo partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares,
entretanto eleito Presidente da República, não o deixou viver. À primeira
oportunidade dissolveu a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma
maioria a Cavaco. E, de facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo
e ressentimento e sem poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus
inimigos íntimos pela televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.
Nem às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
Cavaco é um homem exemplar: bom filho, trabalhador,
responsável, óptimo marido (em 50 anos de casado só não dormiu na mesma cama da
mulher 1 por cento das noites, uma façanha pela qual a nação inteira o admira),
perfeito pai, honesto, imparcial e dedicado. Não admira que os portugueses
tenham feito dele ministro, primeiro-ministro e Presidente da República, embora
seja um “intruso” na política, sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo, odeie
o ruído à volta do seu nome e a curiosidade à volta da sua pessoa. Não
enriqueceu com as posições a que foi elevado. Quando está em Lisboa, vive num
apartamento modesto (suponho que alugado) e, no Algarve, na “Casa da Gaivota
Azul”, assim poeticamente chamada em homenagem a uma espécie de poema que Vasco
Graça Moura lhe fez, não sei com que intenções, e que também tem, benefício da
arte, um painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de paz, Cavaco não odeia
ninguém, excepto, claro, a gente que não o acha tão admirável como ele se acha,
que lhe atrapalhou a vida, que não lhe obedeceu ou por puro desvario disse mal
dele. Essa longa lista começa com Mário Soares (a grande força de “bloqueio”)
que em Belém intrigava contra ele, que assistia sonolentamente às reuniões de
quinta-feira e que no fundo (coisa que não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas
Vítor Constâncio (governador do Banco de Portugal) vem a seguir com a maioria
dos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um aldrabão, um ignorante e um
obstinado, dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra tudo e contra todos. De
qualquer maneira, e tirando estes parceiros da cena política, o inimigo
principal de Cavaco eram os “media”, que merecem um parágrafo à parte.
Tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República,
ele execrou visceralmente “os media”. A concepção de política que o guiava era
uma concepção de director-geral: o chefe bem informado e ajudado por
especialistas, despachava no seu gabinete, longe do ruído da rua, a bem “do
superior interesse da nação”; o governo e o parlamento aprovavam e a populaça
fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar gostava de fazer as
coisas, com alguns ornamentos democráticos para disfarçar. Ora, os “media”
criticavam, acusavam, distorciam. Um ou outro, como “O Independente”, até nem
se coibiam de inventar notícias ou conspirações. Mais do que isso faziam dele
uma figura do contínuo espectáculo da política indígena e ele não gosta de
escândalos como o escândalo das “escutas”, que vários peritos dizem que ele
próprio inventou. Fosse como fosse, apesar de alguns percalços, Cavaco
conseguiu ficar no seu casulo, sem um acto decisivo que impedisse ou moderasse
a crise em que o país caiu.
O que ele gostava naquele lugar do Estado era da
proeminência que a situação lhe dava e da sensação de pertencer aos regentes do
mundo. Com todo o cuidado apresenta no livro a prova fotográfica dos seus
encontros com as celebridades que viu e ele julga que lhe dão lustre e por
reflexo provam a sua importância pessoal: presidentes, primeiros-ministros,
papas e similares. A vaidade paroquial do homem não tem medida; com os seus três
papas, em particular, quase que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe
custava eram as reuniões com Sócrates (118 contou ele com o zelo com que
contava a sua assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro lugar, ele achava que
Sócrates não passava de um mentiroso sempre pronto para o enganar. E, depois,
Sócrates não percebia o que lhe diziam, se o que lhe diziam não concordava com
os seus planos. Cavaco tomava notas numa estenografia secreta (que ele
inventara na Faculdade) para se precaver de Sócrates e tentou até ao fim meter
naquela cabeça irascível meia dúzia de noções elementares de economia e de
finanças. Sem resultado.
A conclusão deste melodrama foi que os portugueses acabaram
por sofrer uma crise, que o Presidente e o primeiro-ministro podiam adiar e com
certeza atenuar. Cavaco previu o que ia acontecer desde pelo menos 2008. Mas
não achou necessário prevenir os portugueses ou dissolver a Assembleia, porque
a Constituição não lhe permitia interferir na política do governo. E, em
matéria de lei, ele como qualquer director-geral era um devoto.
A comparação é fácil, mas ao ler estas 500 e tal páginas sem
uma ideia, sem um pensamento sobre a situação e o futuro de Portugal, sem uma
crítica ao sistema político, mas saturadas de uma satisfação incompreensível ,
não consegui esquecer Eça e os seus políticos: o conde de Abranhos, o conde de
Gouvarinho, o genial Pacheco e o conselheiro Acácio. Reconheço, repito, a
banalidade. Só que esta banalidade tem a vantagem de ser verdadeira.
Trumpolinices (14 maio 2017)
O mundo está perigoso e cada vez mais complicado. No meu
tempo, antes do feminismo, o grande segredo de Washington era o número de damas
com quem Kennedy diariamente dormia e a partilha amigável de uma delas com o
chefe da Mafia de Chicago, que segundo a imprensa bem-pensante lhe comprara uns
milhares de votos no Illinois. Mas, no fundo, ninguém se preocupava muito com
esta história que o público até achava divertida. Norman Mailer escreveu um
romance em que a intriga assentava parcialmente nela e Coppola acabou por
tornar a Mafia Italiana numa parte legítima do folclore americano. Anos depois,
veio Nixon com o seu bando de ladrões, que assaltaram o escritório de um
psiquiatra e a sede do Partido Democrático no complexo Watergate. Nixon, que
indirectamente lhes dera ordens, mentiu com quantos dentes tinha na boca e foi
corrido da Presidência por indecente e má figura e também foi arrumado depressa
na prateleira das curiosidades: aquilo não passava de um caso insignificante e
sórdido.
Agora com Trump a questão é, além de inquietante, claramente
sinistra. O indivíduo é acusado de ligações à Máfia Russa, não à doméstica
Máfia Italiana, porque a Máfia Russa domina o mercado imobiliário de Nova York
em que ele fez fortuna; e, pior ainda, de conluio com Putin (um homem forte que
ele admira) para perturbar, ou falsificar, a eleição presidencial. Anteontem
Trump pôs na rua o director do FBI, James Comey, que estava a investigar o
assunto. As explicações para este inesperado despedimento (mesmo para Comey,
que soube dele pela televisão) não sossegaram nem o bom povo, nem o Senado, nem
os jornalistas. Trump embrulhou-se desde o princípio e, no meio da confusão,
deu uma entrevista em que declarou que Comey (a vítima da sua fúria) o ilibara
três vezes de qualquer espécie de manigâncias com a Rússia. Isto cheirou mal a
toda a gente e convenceu os gurus políticos (que na América são uma força) que
Trump se metera de facto em combinações com Putin e tremia com a ideia de que
elas fossem descobertas. Há quem fale num novo Watergate. Absurdamente, porque
o Watergate era uma simples ladroeira, e as supostas actividades de Trump
envolvem, ou podem envolver, a segurança do Estado americano e por consequência
do mundo. Começou um caminho arriscado em que o zelo da televisão e da imprensa
se junta ao de uma parte do Senado e da Câmara para destapar o que Trump
pretende alegadamente esconder. A violência dos debates não promete nada de
bom.
Eles e Nós (21 maio 2017)
Quando, no sábado passado, Salvador Sobral ganhou o Festival
da Eurovisão, toda a gente começou a dizer que “nós tínhamos ganho”, que “nós
éramos os melhores” e mesmo “os melhores dos melhores”. Nem o Presidente da
República, nem o primeiro-ministro escaparam a esta absurda identificação. Pior
ainda: indivíduos sem a mais leve autoridade na matéria não se coibiram de
explicar publicamente a natureza e qualidades da música de Luísa Sobral que
acharam “simples” (não é), “diferente” (de quê?) e com tanto “sentimento” que
ia “directa ao coração” (um comentário idiota e nulo). Ora, como se sabe, “nós”
como entidade colectiva não contribuímos coisíssima nenhuma para o sucesso de
Salvador Sobral e da irmã, e nada nos permite usar esse sucesso como pretexto
para uma nova sessão de gabarolice nacionalista, que só a consciência da nossa
mediocridade e da nossa miséria justifica e provoca.
Os portugueses precisam de sinais de uma importância e de
uma grandeza que a realidade lhes nega. E porque sofrem dia a dia com a
realidade qualquer pequena distinção lhes serve para se evadirem dela: a
selecção de futebol ganha o campeonato da Europa (nós somos formidáveis);
Guterres, que falhou tristemente aqui, é eleito Secretário-Geral da ONU (nós
somos superiores); Salvador e Luísa Sobral ficam em primeiro lugar no Festival
da Canção (nós somos logicamente incomparáveis). Isto mata. Não quero dizer que
não se deva retirar um certo orgulho e um certo consolo de proezas como a de
Kiev. O que digo é que o patriotismo português não se manifesta senão por
transferência para um ocasional herói ou grupo de heróis. Não se manifesta
porque não pode pela satisfação com o sistema de justiça, ou com a estabilidade
das finanças do Estado, ou com o crescimento da economia, ou com o exemplar
ordenamento das cidades. Sem diminuir o mérito dos nossos heróis, que é deles e
não nosso, era bom começar por pedir que nos déssemos a nós próprios o que nos
falta e o que merecemos. A expressão “Portugal está na moda”, que o cavaquismo
inventou, é um símbolo do nosso fracasso; a glória reflectida nunca ajudou
ninguém.
Só sexta-feira à noite percebi o que se estava a passar. O
Presidente Marcelo, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da
República e a própria Assembleia enlouqueceram com Salvador Sobral. Não há a
menor dúvida. E, para quem ainda duvide, basta ligar a televisão. Não me lembro
de ver um espectáculo remotamente parecido (a Câmara dos Comuns, por exemplo, a
aplaudir de pé Gardiner, Simon Rattle ou os Beatles). O populismo da classe
dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se
pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta
gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de
presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a
dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção.
Agora sabemos quem nos governa.
O Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
O terceiro atentado terrorista em Inglaterra desde Março
produziu os lugares comuns do costume. A condenação dos jihadistas foi morna e
estereotipada. Toda a oficialidade pediu mais medidas de segurança. O Ocidente
inteiro chorou as vítimas. Mas como sempre ninguém tentou explicar
politicamente o que sucedera. Porquê? Porque ninguém se atreve a revelar as
verdadeiras causas desta violência contra sociedades à superfície pacíficas. As
causas são claras. Em primeiro lugar, a América estabeleceu uma base na “terra
santa” da Arábia e a seguir começou duas guerras em países muçulmanos: no
Iraque e no Afeganistão. Esta criminosa estupidez está em grande parte na
origem da violência que veio depois. Bush, Blair e os governos que na Europa
lhes deram apoio militar e diplomático não conheciam nem se interessavam pelas
condições no terreno ou pela natureza do seu inimigo, historicamente dividido
em dois ramos inconciliáveis e em dezenas de seitas e organizações.
O islão é um mundo em crise, um mundo imerso numa guerra
religiosa, que se confunde, como invariavelmente sucede, com a luta pela
hegemonia de um bilião de muçulmanos. Qualquer intervenção de fora implica duas
consequências. Por um lado, favorece uma facção ou facções dos beligerantes.
Por outro, leva a América e as potências da Europa a conduzir elas mesmas uma
guerra por interposta pessoa. A Síria é um bom exemplo. Não admira por isso que
o ódio gerado no islão transborde para Nova York, Paris, Marselha, Manchester
ou Londres, que os jihadistas compreensivelmente consideram parte do seu campo
de acção.
A única maneira de acabar com ataques terroristas ao
Ocidente seria que o Ocidente se retirasse por completo do islão, o que
implicaria o fim da mais leve presença militar, económica ou política e mesmo
de alianças formais com qualquer Estado muçulmano. Para nossa má sorte, os
interesses que se opõem a uma medida tão drástica nunca o permitiram. Pelo
contrário, basta olhar à volta para perceber até que ponto o dinheiro do islão
ou, pelo menos, de uma fracção dele penetrou nas sociedades em que vivemos.
Para as nações da Europa que têm comunidades islâmicas, o
problema é mais complicado. Os tempos do consumo e da boa cidadania passaram
com a paragem ou quase paragem do crescimento, com o desemprego (principalmente
dos jovens) e com a criação de guetos em bairros suburbanos ou simplesmente com
a falta de habitação e o seu desmedido preço, como é o caso da Inglaterra.
Perante a pobreza e a perspectiva de uma existência sem destino nada mais
natural que, por mais assimilados que tencionassem ser, os muçulmanos ou os
filhos de muçulmanos dirijam a sua raiva contra uma civilização que os seus
preceitos religiosos radicalmente condenam – coisa que uma certa “tolerância”
de Hampstead, de Saint Germain ou da Lapa, jamais percebeu. A maioria pacífica
acabou por se tornar numa pequena minoria europeizada e próspera; o resto
oscila.
Por essa razão, a análise académica do tipo e da metodologia
dos atentados não ajuda muito. Por mais fina que seja a rede de segurança
alguém escapará. O mal deve ser cortado pela raiz: retirar, nem que seja por
fases, toda a interferência no islão (militar, económica e política); rejeitar
o multiculturalismo tão querido à “inteligência” da esquerda; diminuir
drasticamente a imigração; e por muito que doa à sra. Merkel, não aceitar nem
mais um único refugiado.
Luto nacional (25 jun 2017)
…hopes expire of a low
dishonest decade…
A primeira obrigação do Estado é garantir a segurança física
dos cidadãos. Em Pedrógão Grande o Estado Português não a cumpriu e mostrou
assim a sua fraqueza e a sua essencial ilegitimidade. Na sopa de aletria da
meia dúzia de agências ou subagências governamentais que intervieram no caso,
ninguém se entendia sobre nada. A que horas tinha começado o fogo e porque
tinha começado? Porque não se tinha fechado a tempo a chamada “estrada da
morte”? Porque não se tinham evacuado as pessoas que deviam ser evacuadas?
Tinha caído um avião ali, a uns quilómetros, ou não tinha caído um avião?
Existia um jornalista fantasma ou não existia? O que transpirava desta confusão
eram informações contraditórias das várias autoridades envolvidas, todas
visivelmente preocupadas em sacudir a água do capote para o parceiro do lado. A
cena foi deprimente e aterradora. E no meio do caos, para o completar,
desembarcaram o primeiro-ministro e o Presidente da República, com fatos de
bombeiros, que não iam lá fazer coisa alguma de útil ou louvável, excepto
evidentemente exibir a sua alma, exercício que ninguém lhes pedira ou
agradecia.
Este espectáculo, pelo mortos e pelo sofrimento dos que não
morreram, comoveu o país. Mas o mesmo país habitualmente assiste em paz de
espírito às mais graves demonstrações da incompetência e degradação do Estado:
investigações criminais que duram anos e anos (como a de Oliveira e Costa e, a
seguir, a de Sócrates, a de Ricardo Salgado e as de várias dezenas de suspeitos
menores); julgamentos sem fim; a maior dívida da história, que vai crescendo;
políticas que se atenuam, interrompem ou simplesmente se metem na gaveta para
não ofender parcelas ínfimas do eleitorado; actos egrégios de nepotismo e
compadrio; a corrupção que se manifesta ou descobre em cada recanto da vida
corrente e da vida pública nacional. O parlamento, depois de lamentar a
infindável sequência de comissões de inquérito para prevenir incêndios, que não
chegaram a parte alguma, nomeou outra comissão de inquérito; e as
“personalidades” que roubaram milhões continuam a passear tranquilamente pelas
ruas.
A grande pergunta é simples: porque havia de aparecer em
Pedrógão Grande, por milagre flagrante do Altíssimo, um Estado previdente,
eficaz e responsável? Não apareceu; e, como de costume, os mais fracos pagaram
a conta. Seria bom que fizéssemos mais três dias de luto. Por nós.