quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Natália Correia - Ode à Paz

* Natália Correia


 Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
 Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
 Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
 Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
 Pela branda melodia do rumor dos regatos,
 Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
 Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
 Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
 Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
 Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
 Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
 Pelos aromas maduros de suaves outonos,
 Pela futura manhã dos grandes transparentes,
 Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
 Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
 Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
 Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
 Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
 Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
 Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
 Abre as portas da História,
 deixa passar a Vida!
Natália Correia
in “Inéditos (1985/1990)”

Manuel Loff - A Peste



OPINIÃO
A peste
Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais.

27 de Fevereiro de 2020, 5:59

Oran, Argélia francesa, anos 40. Foi onde Albert Camus situou a sua narrativa sobre os efeitos que uma epidemia tem no comportamento coletivo. [Agradeço à Maria Abreu Pinto aconselhar-me a novela.] No dia em que o número de vítimas mortais atingiu a trintena, as autoridades decidem “declarar o estado de peste” por tempo indeterminado e fechar a cidade: ninguém pode entrar, ninguém pode sair. “A partir desse momento”, conta o narrador, “pode-se dizer que a peste foi um problema de todos nós. Até então, apesar da surpresa e inquietação (...), cada um dos nossos concidadãos tinha mantido a sua atividade como podia. (...) Mas, uma vez fechadas as portas, todos nos apercebemos termos sido apanhados no mesmo saco”. “A primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio” — o dos que, antes do bloqueio da cidade, haviam podido sair, e o exílio interior de quem ficara, “reduzidos à nossa condição de prisioneiros, ao nosso passado, e se mesmo alguns de nós se sentissem tentados a viver no futuro, rapidamente desistiriam, tanto quanto lhes era possível, ao sentir as feridas que a imaginação inflige àqueles que nela confiam”.

Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais. “Os media há muito exploram [a nossa perceção das ameaças] para captar a nossa atenção. (...) Em âmbitos como a política ou a saúde, a desinformação é particularmente nefasta porque nos pode levar a tomar decisões contrárias aos nossos próprios interesses sem ter conciência disso”, como lembra Ferran Lalueza (Universidade Aberta da Catalunha, Público.es, 25.2.2020).

Tudo quanto sabemos do contágio do coronavírus (processos, rapidez, efeitos) já o sabíamos há muito do banal vírus da gripe; ambos têm um grau de letalidade semelhante, muito inferior ao de epidemias anteriores (gripe A, das aves) com cujo alarme já então injustificado parece que não aprendemos nada. Doença originada num Oriente recorrentemente visto como fonte de ameaça (a China-das-doenças, como o Islão-do-terrorismo), ela tem-nos contagiado a todos da mesma paranóia descrita pelos cronistas do século XIV, ou do XVI, ou de tantos momentos da história anterior aos sistemas públicos de saúde, cheias de uma crueldade que tende a propagar-se muito mais célere que a solidariedade humana. Depois de vermos as aterradoras medidas de contenção social que o governo chinês tomou em regiões inteiras, cidadãos ucranianos repatriados da China apedrejados em protesto contra o seu regresso, chineses maltratados em cidades italianas, sujeitas, por sua vez, mal os primeiros casos se detetaram, a esquemas (frequentemente improvisados pelas autoridades locais contra o parecer das autoridades sanitárias) de controlo policial dos acessos, supermercados esvaziados, cancelamento de manifestações (culturais, desportivas, políticas) e transportes, escolas e fronteiras fechadas — as da Rússia com a China, da Áustria com a Itália, dentro de horas provavelmente de todas dentro da UE... Ontem, a ponderada diretora-geral de Saúde, Graça Freitas, conseguiu ainda duvidar da utilidade de “medidas desta natureza [que] só devem ser tomadas se trouxerem benefício efetivo para a saúde pública” (Antena 1, 26.2.2020); ao primeiro viajante que se confirme ter trazido de fora a doença, pedirão a cabeça dela...

Até parece que acabámos de descobrir os vírus e as suas formas habituais de contágio! De que serve fechar fronteiras, exigir que se mostrem passaportes, encostar um termómetro a uma testa de um qualquer de nós assintomático? De alguma coisa serve. Serve para continuar a alimentar esta cultura do medo coletivo que tem alastrado desde o 11 de Setembro. O medo, sabemo-lo há muito, “é um indicador de poder (...) uma emoção essencial na arte de governar”. O que agora se faz é “tentar despolitizá-lo”, como se ele não fosse uma forma de “enquadramento que retira responsabilidades e que pode chegar a aniquilar”, cumprindo o velho “lema de todos os dirigentes na história do mundo: fazer temer, em vez de fazer crer — sem nunca fazer compreender” (P. Boucheron, C. Robin, R. Payre, L'exercice de la peur, 2015).

Não surpreende que estes sejam tempos de racismo e de neofascismo.

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O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Historiador

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Pablo Neruda - O Povo




* Pablo Neruda

O povo passeava as suas bandeiras rubras
e estive no meio deles, na pedra que tocavam,
na jornada fragorosa
e nas altas canções da luta.
Vi como iam de conquista em conquista.
Só a sua resistência era caminho
e, isolados, eram como estilhaços
duma estrela, sem boca nem brilho.
Juntos, na unidade feita silêncio,
eram o fogo, o canto indestrutível,
a lenta passagem do homem sobre a terra,
feito profundidades e batalhas.
Eram a dignidade que combatia
o que fora espezinhado, e despertava,
como um sistema, a ordem das vidas
que batiam à porta e se sentavam
com as suas bandeiras na sala central.

in “Canto Geral

http://voarforadaasa.blogspot.com/2020/02/o-povo-pablo-neruda.html

DOMINGO, por Manuel da Fonseca, dito por Mário Viegas

* Manuel da Fonseca


 Mário Viegas diz Manuel da Fonseca "Domingo" do disco "Pretextos para dizer" (1978)


Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.

Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando por que seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!...
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
- porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casa de penhores…

Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
- ao sol
como num ritual consagrado a um deus! –
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta:
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!

Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez chovia
até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
- rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
- Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
- …no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caía um fio para a água…
…um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…
…O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
comos e fosse uma festa?... –
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá par ao cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!...

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

sábado, 22 de fevereiro de 2020

10 crónicas de Vasco Pulido Valente no Observador


De Guterres a Pedrógão, de Cavaco a Marcelo. 10 crónicas de Vasco Pulido Valente no Observador
 Índice
  1. Táxis, Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out 2016)
  2. 24 de Dezembro, 2016
  3. Um destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan 2017)
  4. Mário Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan 2017)
  5. Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA (28 jan 2017)
  6. Nem às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
  7. Trumpolinices (14 maio 2017)
  8. Eles e Nós (21 maio 2017)
  9. O Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
  10. Luto nacional (25 jun 2017)

"As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal", escrevia o cronista em outubro de 2016, na primeira crónica que assinou para o Observador.
21 fev 2020, 17:34

Táxis, Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out 2016)
As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos fazia europeus. Não fez.
Segunda-feira
À cautela fiquei em casa. De qualquer maneira ficava, mas desta vez fiquei com convicção. Esta querela dos taxistas é um retrato da imbecilidade nacional. Primeiro, não há uma única espécie de taxistas, há três: os taxistas que trabalham por conta de outrem (desconfio que a maioria), os proprietários de um carro (e de um alvará) que são no fundo donos de um pequeno negócio de família (feito à custa de austeridade e poupança) e as empresas que têm dezenas (ou centenas) de táxis, que, naturalmente, se governam por outros interesses. A lei juntou as três espécies por uma questão de ignorância e de amadorismo. Vieram brincar aos governos, brincam aos governos. Resultado: arranjaram um sarilho sem uma saída digna.

Terça-feira
Agora que já acabou ou, pelo menos, se atenuou a campanha patriótica para a canonização de Guterres, talvez se possa olhar para ele com alguma tranquilidade e medida. Por acaso conheço a criatura. É um homem fraco, influenciável, indeciso e superficial. A crónica amnésia deste país fez desaparecer numa semana de glória o péssimo governo que ele dirigiu; um governo que estava sempre em crise porque o primeiro ministro avançava, recuava, não era capaz de resolver nada de uma vez para sempre e, como disse Medina Carreira, caía em terríveis transes de angústia quando tinha de dizer “não”. Esse é o Guterres de que me lembro e não me parece a encarnação de um grande diplomata. Quanto ao resto, o católico a roçar o beato, cheio de amor pelos pobrezinhos, também não me entusiasma: a ONU não precisa de uma nova versão de Sta. Teresa de Calcutá.

Quarta-feira
Consta por aí que o eng. Sócrates vai publicar outro livro. Por descargo de consciência li o primeiro. É um exercício escolar sem originalidade ou rigor, que, como lhe compete, exibe uma enorme incultura filosófica. Não valia a pena tornar a falar dele se Sócrates não aparecesse agora com uma nova prestação dos seus pensamentos, desta vez sobre o “carisma” (um assunto que tresanda a pretexto para o auto-elogio). Depois do que se disse sobre a autoria e as vendas da sua alegada tese, nenhum académico com vergonha se atreveria a lembrar a sua presença sobre a terra, sem o reconhecimento de uma universidade idónea. O problema de Sócrates é que está morto, intelectual e politicamente morto, e se recusa a reconhecer esse facto simples. A agitação em que anda chega a confranger. Sossegadinho na Covilhã ou no diabo ficava melhor.

Quinta-feira
O debate entre Trump e Clinton não passa de uma zaragata de bordel. A famosa civilização do Ocidente deu nisto.

Sexta-feira
Quando se puxa o cobertor para cima, ficam os pés de fora; quando se puxa o cobertor para baixo fica de fora a cabeça. Depois de se insultarem por causa deste interessante assunto, os senhores da economia recomendam muito sabiamente que se estique o cobertor. Mas, sobre a maneira de o esticar, não dizem mais que meia dúzia de lugares-comuns. As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. A choradeira e o ranger de dentes não levam a nada, nem os triunfos vicários com as façanhas de Ronaldo ou Guterres. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos fazia europeus. Não fez.

Sábado
Ando a ler uma “História do Cristianismo – Primeiro Milénio”, que tem 1 100 páginas e ajuda muito quando se tem de esperar. É um interesse antigo que os meus compatriotas não partilham. Verdade que Saldanha, o da estátua, conseguiu fazer o maior discurso do Parlamento português sobre o Concílio de Niceia, mas não era inteiramente bom da cabeça e era Presidente do Conselho e comandante-em-chefe do exército. Os católicos nunca se interessaram muito pela origem ou pela teologia da sua fé. Hoje nem sequer há uma boa tradução da Bíblia (tirando talvez a do Novo Testamento, directamente traduzida do grego por Frederico Lourenço, que saiu esta semana). O próprio Patriarca deu a entender a uma amiga minha que não estava muito satisfeito com esta situação. A Universidade Católica não se interessa e só se preocupa com as suas ninhadas de economistas, de gestores e daquelas criaturas que se auto-proclamam “cientistas” políticos. O que estará na cabeça do católico indígena, fora meia dúzia de orações e de rituais, e de uma vaga crença no Céu e no Inferno?


24 de Dezembro, 2016
Hoje o mundo mudou. A família alargada quase já não existe. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Era melhor antigamente? Não acho.
O Natal da classe média por volta de 1950
Os Correia Guedes
O meu avô Correia Guedes tinha sete filhos, 18 netos, um genro e seis noras. Na noite de 24 para 25 de Dezembro, a minha avó (já viúva) reunia esta gente toda em casa dela na Av. da Liberdade: uma casa enorme, onde não faltava espaço e a mesa de oito metros com tampo de mármore e pés dourados lembrava ainda melhores tempos. Mas valia a pena. Era aquela a ocasião de ver primos, tios, parentes, que nunca se viam, de saber da vida de cada um, de armar uma intriga ou outra e, principalmente, de sentir que fazíamos parte de uma grande família. A confusão era enorme, a comida e os vinhos não acabavam mais. Os doces, quase sempre trazidos por vagas relações de segundo ou terceiro grau, também não. Naquela família de “direita” ninguém ia à missa, nem se faziam discursos. Quanto muito, no fim de festa, o meu tio Manuel, em nome do patriarca ausente, subia para uma cadeira e bebia à saúde e prosperidade do rebanho. Não se davam presentes, talvez por causa do número de crianças (uma boa desculpa) ou mais provavelmente por causa das circunstâncias da família, que, fora quatro ou cinco privilegiados, não eram boas. A minha avó, que vivia como no fim do século XIX, com dama de companhia e três criadas, gastava com energia as sobras de uma herança longínqua e aos meus tios faltava o talento do pai para negócios. Apesar disso, do ar de palpável decadência e de uma certa melancolia, o Natal reconfortava as ruínas daquela família. Mal ou bem tinham conseguido sobreviver sem desastres de maior e até, de longe em longe, com um ocasional sucesso. Bem vestidos, bem comidos, com a descendência à volta, o Natal, para eles, era um afirmação.

Os Pulidos
O Natal dos Pulidos começava em Novembro com a compra de presentes: um trabalho difícil que exigia muita astúcia e diplomacia. Era preciso ir ao encontro do que as pessoas realmente queriam ou desejavam (o que exigia um ouvido alerta e muita dissimulada troca de informação). E era preciso “equilibrar” as coisas, ou seja, não dar a ninguém (tanto a adultos, como a crianças) presentes que revelassem uma preferência inoportuna ou fossem por si mesmos uma injustiça notória. Até ao último minuto a espionagem (o que é que A tem para B?) e os cálculos não paravam. Os Pulidos eram um clã, como não eram os Correia Guedes, com um patriarca vivo, o meu avô Francisco Pulido Valente, que – para tornar o quadro perfeito – fazia anos no dia 25 de Dezembro. A não ser pelas decorações, que evidentemente não incluíam um presépio, o Natal não se distinguia bem dessa data sagrada, numa família ateia e anticlerical.
Os festejos culminavam, de resto, num almoço em casa do meu avô, com uma certa solenidade. Toda a gente se vestia de cerimónia e toda a gente tinha um lugar à mesa. A conversa, como sempre sucedia nessa doce família, depressa degenerava em discussão, com cada um a querer mostrar inteligência e saber ao patriarca, que intervinha pouco e gozava o espectáculo com orgulho. As senhoras de maneira geral não abriam o bico, porque o meu avô não deixara ainda o século XIX. Aos genros, sendo médicos, era permitida uma ou outra palavra. Ao meu pai, engenheiro químico, ninguém concedia qualquer espécie de autoridade.
Depois do almoço e do champagne, o meu avô passava para a sala para receber as saudações de fora: antigos “discípulos”, como se dizia na época, vinham cumprimentar o “Mestre”; amigos famosos prestar a sua indispensável homenagem; e alguns revolucionários do “5 de Outubro” lamentar com o velho camarada a ditadura de Salazar. Às sete da tarde, acabava a função.
O Natal da classe média em 2016
Hoje o mundo mudou. A família alargada quase já não existe. Ninguém se atreve a ter sete ou oito filhos. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Felizmente para elas, as criadas desapareceram. Era melhor antigamente? Não acho.

Um destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan 2017)
Marcelo não é um produto político, é um produto da RTP e da TVI. Entra dia a dia pela nossa casa adentro, sempre com a mesma fita e futilidade. Um destes dias, o homem acaba a falar sozinho.
Sempre gostava de saber quanto pagaram as Câmaras deste abençoado país, que se queixa como de costume de não ter dinheiro, pelos denominados “festejos natalícios”: iluminações, fogo de artifício, festivais, concertos, marchas, policiamento (porque certos prazeres não vão sem policiamento) e outras folias. Na Madeira parece que só o fogo de artifício custou um milhão e oitocentos mil euros e custou de certeza muito mais por Portugal inteiro. As pessoas precisam de se divertir, claro. Mas não estava ainda estabelecido que o Estado devesse fornecer felicidade e entretenimento à cidadania. Agora, ninguém escapa a essa dolorosa obrigação. Por causa do turismo? As receitas não chegam para as despesas; e nada mais melancólico do que o espectáculo de 100 ou 200 mil indivíduos no Terreiro do Paço, que precisam de se juntar para se sentirem um pouco menos tristes. Se o Estado confiscasse às Câmaras o dinheiro que gastaram nestas futilidades, não faltariam maneiras de o usar inteligentemente. O ano acabou mal.
Quando o papel se tornou mais barato, por volta de 1860, apareceram por toda a parte milhares de jornais. Em Portugal também, e isso ao princípio foi um escândalo de grandes proporções. Em Lisboa e no Porto, havia dezenas. Mas cada distrito e quase cada concelho tinha um, ou por iniciativa local ou pago pelos partidos políticos. Pior ainda, para se atrair o público da pequena imprensa da província, os jornais de grande circulação passaram a contratar correspondentes nos mais remotos cantos do país. Milhares de pessoas enchiam diariamente toneladas de papel. De longe em longe, com boa prosa e notícias fiáveis; diariamente, com calúnias, impropérios e demagogia, em prosa de taberna. Como um todo, a imprensa era a versão primitiva de uma “rede social”. Ninguém se incomodava com isso, excepto os jornalistas que se davam excessiva importância. Num regime liberal (ou democrático), a necessidade de participar era geralmente reconhecida e até certo ponto respeitada. As “redes sociais” cobrem hoje muito mais gente. Ainda bem. O mal seria um público indiferente ou apático.
Marcelo não é um produto político, é um produto da RTP e da TVI, mas não percebeu ainda uma das regras básicas da sua verdadeira profissão ou confundiu o papel de Presidente da República com o seu antigo papel de entertainer. As pessoas gostavam das conversas com Judite de Sousa porque queriam passar um bom bocado a ouvir dizer mal dos senhores que nos pastoreiam e que todos nós detestamos do fundo do coração. O dispensador de “afecto” (seja lá o que isso for), com os seus beijinhos, as suas selfies, os seus beberetes, a sua falsa naturalidade e o seu falso sorriso, também diverte e também não explica. E pior do que isso faz com que Marcelo entre dia a dia pela nossa casa adentro, sempre com a mesma fita e futilidade. Esta over-exposure, que o mais mesquinho cómico tenta evitar para não perder a graça, não incomoda Marcelo. Para ele, quanto mais melhor. Não calcula quanto tempo vai a populaça achar graça ao espectáculo, nem mede a dificuldade de mudar de pele, quando tiver de dizer à populaça: “Hoje, minhas senhoras e meus senhores, não estou aqui como o Marcelo do Afecto, estou aqui como Presidente da República”. Ninguém acredita. Mas, fora isto, o quê? E é precisa uma solução porque a cidadania resolveu ignorar, e bem, o discurso de Ano Novo de Marcelo (?), do Presidente (?), de quem ao certo? Só 637.000 pessoas o ouviram, a mais baixa audiência de sempre, tirando as de Cavaco em 2013 e 2016, e longe das dele próprio na TVI (entre um milhão e meio e dois milhões). Um destes dias, o homem acaba a falar sozinho.
O título “Diário de Notícias” é um programa. Quando o jornal foi fundado queria dizer que só daria notícias e, principalmente, que seria apolítico, ou seja, que tencionava ignorar as lutas partidárias do tempo. Mas de facto o DN acabou por se tornar no órgão oficioso do governo e das dezenas que vieram depois, durante cem anos (excepto, que me lembre, com Mário Mesquita e, a seguir, com Mário Bettencourt Resendes). Não admira que esta admirável instituição tenha resolvido despedir o meu amigo Alberto Gonçalves. O objectivo dos patrões do DN é viver em boa harmonia com o governo, de maneira a conseguir um “jeitinho” ou outro, um favorzinho ou outro. Alberto Gonçalves, um homem de convicções e com pouca paciência para aturar idiotas, e com prosa sarcástica, penetrante e clara, estragava este suave entendimento. A nossa direita continua incuravelmente estúpida.

Mário Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan 2017)
No dia em que Mário Soares desembarcou em Lisboa, em Santa Apolónia, em Abril de 1974, não desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força sob a sua aparente fraqueza.
A carreira de Mário Soares não teve nada de particularmente notável até 1962. Como muito boa gente começou aos vinte anos pelo PC, atraído pela aventura (e os perigos dela), pelo radicalismo e pelo facto simples de não existir na oposição qualquer outra alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou no MUD e, a seguir, na candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. A “colaboração” com os comunistas, se assim se pode chamar, porque ele chegou a dirigente, não resistiu à ineficiência e à intolerância geral da seita. Em 1950, é expulso do “Partido” por “indisciplina” e “derrotismo”.
Isto, que lhe deu tempo para acabar de se formar em Histórico-Filosóficas e começar o curso de Direito, também o deixou isolado e sem destino político evidente. Fora a actividade platónica de um pequeno círculo de advogados da Baixa, não havia nesse tempo desértico nada a que ele pudesse aplicar a sua habilidade e energia política. De quando em quando, lá vinha um abaixo-assinado ou protesto de personalidades, que no fundo só serviam para actualizar os ficheiros da PIDE. A oposição foi um incómodo para a Ditadura, mas nunca foi uma verdadeira ameaça. Certamente sem grande esperança e por puro desemprego cívico, Soares funda em 1955, a Resistência Republicana com uma dezena de amigos, que não se distinguiu por coisa alguma na vida política portuguesa; e adere ao Directório Democrático Social de três figuras venerandas da democracia (António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes), que eram um símbolo mais do que uma força.
Entretanto o mundo mudava. Em 1958, aparece surpreendentemente a candidatura de Humberto Delgado (com o apoio de Soares), que revelou ao melancólico país da Ditadura a extensão e a fúria de uma boa parte da população. E, em 1962, a chamada “crise académica”, para grande estupefacção dos próceres do regime, veio provar que nem com os filhos da burguesia podiam contar. Infelizmente, as relações entre os dirigentes da “crise” e Mário Soares não foram boas. Primeiro, por culpa dos dirigentes da “crise”, que com uma ridícula arrogância desprezavam a “velha” oposição republicana (mas não o PC). Eles mobilizavam de um dia para o outro milhares de estudantes, tinham uma espécie de imprensa (em stencil), tinham instalações, tinham automóveis e tinham dinheiro. E o que tinham os democratas da Baixa, excepto 30 anos de mal empregada indignação e de conspirações falhadas? Mas, fora isso, que já não era pouco, o pessoal do movimento académico, quando não militava no Partido Comunista, exibia – por competição e para defesa própria – um radicalismo que Soares já várias vezes rejeitara. A geração de 1962 ficou por isso longe da social-democracia europeia e do futuro PS até muito depois do “25 de Abril”.
De qualquer maneira estas pequenas questões domésticas interessavam pouco perante a guerra de África, que em 1961 começou em Angola. Dos políticos portugueses com uma certa notoriedade só Soares percebeu que a Ditadura deixara de ser um pequeno problema de um país pequeno e sem influência para se tornar um problema internacional, em que tarde ou cedo as grandes potências se envolveriam. A oposição já não se fazia, ou devia fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na América e na Europa, principalmente na Europa. Em 1962, Soares transformou a Resistência Republicana em Resistência Republicana Socialista e, em 1964, criou na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, uma maneira hábil de se ir ligando aos grandes partidos europeus.
Estabelecer a credibilidade da oposição portuguesa num Ocidente anticomunista e desconfiado era uma extraordinária tarefa para um extraordinário homem. Sem a sobre-humana simpatia e a sobre-humana confiança de Mário Soares talvez fosse impossível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; e Salazar percebeu. O regime não se inquietava excessivamente com a agitação da Baixa ou com um ou outro protesto de estudantes, nem sequer com as raras greves que o PC ia promovendo. Mas Soares falando à solta na América, na Alemanha ou em Inglaterra, era um risco real, ainda por cima com uma guerra em curso e sendo ele advogado do general Humberto Delgado, que a PIDE matara. Salazar não hesitou em o desterrar para S. Tomé.
Quando ascendeu a Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, provavelmente para mostrar o seu duvidoso liberalismo, arranjou uma tranquibérnia jurídica para permitir que Soares voltasse a Portugal. Voltou e imediatamente concorreu à eleição para a Assembleia Nacional (como na altura se chamava o “parlamento”) com uma lista de gente socialista ou próxima do socialismo, rompendo com a tradição de “unidade” anti-salazarista sob a qual o Partido Comunista se disfarçava sempre. Mais do que isso. Marcelo prometera eleições “honestas” (que evidentemente o não seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal um grupo de inspectores da Internacional Socialista, que as declararam falsas. Dali em diante, a presença em Portugal do homem que o denunciara em público como mentiroso e que lhe retirara qualquer espécie de legitimidade era intolerável para Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu que ele ficasse num exílio forçado até 1974. Mas perdeu mais com esta manobra do que ganhou. Por uma vez relativamente livre, Soares tinha tempo e meios para expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 a Internacional Socialista admitiu como membro pleno; e para escrever um livro, o “Portugal Amordaçado”, publicado em francês. Mas nem nestes anos de solidão se aproximou dos novos “resistentes”, que haviam fugido à PIDE, à guerra e a Penamacor (uma unidade penal), e que em Paris se deixaram absorver pelo “renascimento marxista”, conduzido por um louco, Louis Althusser, que acabou por se proclamar um profeta e matar a mulher. De revista para revista, esta gente discutia com ódio teológico as miudezas da sua fé, enquanto Soares tratava do que era importante e consequente.
Por essa altura, já o império soviético se começava a desfazer. A Europa de Leste e a própria URSS estavam endividadas ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em particular, não queria pagar uma segunda Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crítica da política “revolucionária”. A Europa ocidental, pelo contrário, ainda não sentia a gravidade da sua decadência e abria a porta a um (ainda modesto) alargamento. Soares já se tornara parte dessa Europa. Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, Nenni, Mitterrand e a generalidade das grandes personagens que, tarde ou cedo, decidiriam do nosso destino.
Em 1973, fundara o PS na Alemanha, com dinheiro alemão e o patrocínio do SPD, e no dia em que desembarcou em Santa Apolónia não desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força sob a sua aparente fraqueza.

Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA (28 jan 2017)
Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda.
Tirando as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA (que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava. No I Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, com o encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber que nenhuma “negociação” era possível quando o exército se insurreccionara precisamente para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de outro qualquer aliado, o trabalho de estabelecer uma democracia contra a vontade do PC e do MFA.
O PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de Leste, que os russos não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar, só queria uma “democracia de tipo diferente”, um conceito muito falado na guerra civil de Espanha e agora tirado do ferro-velho da seita. Em que consistia essa antiga monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia em fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia – incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença de ir à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração central e local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria rapidamente à miséria e uma larga parte dos militares, duramente analfabetos, acharam que na sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer represália, excepto evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes resolvesse aplicar por desobediência ou “desvio” político. O problema do dr. Soares era instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA; e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos serviços.
Posto isto, o PS precisava também de reforçar a sua organização e de se estender a todo o país. Em 1974, o partido não ia além de algumas venerandas figuras da I República, de alguma Maçonaria e de cinco ou seis dúzias de drs., espalhados pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise académica rejeitou quase completamente o que lhe parecia ser um instrumento do “sub-imperialismo” alemão. Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e fundou o MES (uma sombra do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa inqualificável loucura, os mais sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos num hotel de Lisboa, sob a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). Escusado será dizer que não intervieram em nada de consequente.
Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os golpes — porque eram verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à revelia dos poderes nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na rua manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas) fechou o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa compreenderam de uma vez quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu grande problema: a eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa original dos militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do dia essa eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus camaradas do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do PREC (como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não deixaria a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC, insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em Abril de 1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à volta de 12 por cento no PC.
Mas nem perante esta arrasadora evidência a “festa” terminou. À boa maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e caricaturavam a Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos representantes do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal garantia a uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal nunca haveria uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos de indignidade a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do seu bolso os seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de aparecer limpinha ao dr. Mário Soares.
A atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições de 75. As manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem falava no parlamento ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as “classes trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das partes tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas do PC (e a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não passava de uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou, à sua maneira, o golpe de 25 de Novembro, que removeu de cena os partidários do PREC.
Infelizmente, o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os militares no centro do regime político. O Presidente da República (Eanes) comandava efectivamente o exército. O Conselho da Revolução, sem espécie de mandato, aprovava ou desaprovava a legislação da Assembleia, com o propósito de preservar intacta a sua preciosa “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra algumas facções internas no PS e mesmo no PSD, acabaram por meter os militares nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio de influência política.
Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém, decidiu organizar um novo partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares, entretanto eleito Presidente da República, não o deixou viver. À primeira oportunidade dissolveu a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma maioria a Cavaco. E, de facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo e ressentimento e sem poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.

Nem às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
Cavaco é um homem exemplar: bom filho, trabalhador, responsável, óptimo marido (em 50 anos de casado só não dormiu na mesma cama da mulher 1 por cento das noites, uma façanha pela qual a nação inteira o admira), perfeito pai, honesto, imparcial e dedicado. Não admira que os portugueses tenham feito dele ministro, primeiro-ministro e Presidente da República, embora seja um “intruso” na política, sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo, odeie o ruído à volta do seu nome e a curiosidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu com as posições a que foi elevado. Quando está em Lisboa, vive num apartamento modesto (suponho que alugado) e, no Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim poeticamente chamada em homenagem a uma espécie de poema que Vasco Graça Moura lhe fez, não sei com que intenções, e que também tem, benefício da arte, um painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de paz, Cavaco não odeia ninguém, excepto, claro, a gente que não o acha tão admirável como ele se acha, que lhe atrapalhou a vida, que não lhe obedeceu ou por puro desvario disse mal dele. Essa longa lista começa com Mário Soares (a grande força de “bloqueio”) que em Belém intrigava contra ele, que assistia sonolentamente às reuniões de quinta-feira e que no fundo (coisa que não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas Vítor Constâncio (governador do Banco de Portugal) vem a seguir com a maioria dos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um aldrabão, um ignorante e um obstinado, dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra tudo e contra todos. De qualquer maneira, e tirando estes parceiros da cena política, o inimigo principal de Cavaco eram os “media”, que merecem um parágrafo à parte.
Tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República, ele execrou visceralmente “os media”. A concepção de política que o guiava era uma concepção de director-geral: o chefe bem informado e ajudado por especialistas, despachava no seu gabinete, longe do ruído da rua, a bem “do superior interesse da nação”; o governo e o parlamento aprovavam e a populaça fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar gostava de fazer as coisas, com alguns ornamentos democráticos para disfarçar. Ora, os “media” criticavam, acusavam, distorciam. Um ou outro, como “O Independente”, até nem se coibiam de inventar notícias ou conspirações. Mais do que isso faziam dele uma figura do contínuo espectáculo da política indígena e ele não gosta de escândalos como o escândalo das “escutas”, que vários peritos dizem que ele próprio inventou. Fosse como fosse, apesar de alguns percalços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo, sem um acto decisivo que impedisse ou moderasse a crise em que o país caiu.
O que ele gostava naquele lugar do Estado era da proeminência que a situação lhe dava e da sensação de pertencer aos regentes do mundo. Com todo o cuidado apresenta no livro a prova fotográfica dos seus encontros com as celebridades que viu e ele julga que lhe dão lustre e por reflexo provam a sua importância pessoal: presidentes, primeiros-ministros, papas e similares. A vaidade paroquial do homem não tem medida; com os seus três papas, em particular, quase que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe custava eram as reuniões com Sócrates (118 contou ele com o zelo com que contava a sua assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro lugar, ele achava que Sócrates não passava de um mentiroso sempre pronto para o enganar. E, depois, Sócrates não percebia o que lhe diziam, se o que lhe diziam não concordava com os seus planos. Cavaco tomava notas numa estenografia secreta (que ele inventara na Faculdade) para se precaver de Sócrates e tentou até ao fim meter naquela cabeça irascível meia dúzia de noções elementares de economia e de finanças. Sem resultado.
A conclusão deste melodrama foi que os portugueses acabaram por sofrer uma crise, que o Presidente e o primeiro-ministro podiam adiar e com certeza atenuar. Cavaco previu o que ia acontecer desde pelo menos 2008. Mas não achou necessário prevenir os portugueses ou dissolver a Assembleia, porque a Constituição não lhe permitia interferir na política do governo. E, em matéria de lei, ele como qualquer director-geral era um devoto.
A comparação é fácil, mas ao ler estas 500 e tal páginas sem uma ideia, sem um pensamento sobre a situação e o futuro de Portugal, sem uma crítica ao sistema político, mas saturadas de uma satisfação incompreensível , não consegui esquecer Eça e os seus políticos: o conde de Abranhos, o conde de Gouvarinho, o genial Pacheco e o conselheiro Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. Só que esta banalidade tem a vantagem de ser verdadeira.

Trumpolinices (14 maio 2017)
O mundo está perigoso e cada vez mais complicado. No meu tempo, antes do feminismo, o grande segredo de Washington era o número de damas com quem Kennedy diariamente dormia e a partilha amigável de uma delas com o chefe da Mafia de Chicago, que segundo a imprensa bem-pensante lhe comprara uns milhares de votos no Illinois. Mas, no fundo, ninguém se preocupava muito com esta história que o público até achava divertida. Norman Mailer escreveu um romance em que a intriga assentava parcialmente nela e Coppola acabou por tornar a Mafia Italiana numa parte legítima do folclore americano. Anos depois, veio Nixon com o seu bando de ladrões, que assaltaram o escritório de um psiquiatra e a sede do Partido Democrático no complexo Watergate. Nixon, que indirectamente lhes dera ordens, mentiu com quantos dentes tinha na boca e foi corrido da Presidência por indecente e má figura e também foi arrumado depressa na prateleira das curiosidades: aquilo não passava de um caso insignificante e sórdido.
Agora com Trump a questão é, além de inquietante, claramente sinistra. O indivíduo é acusado de ligações à Máfia Russa, não à doméstica Máfia Italiana, porque a Máfia Russa domina o mercado imobiliário de Nova York em que ele fez fortuna; e, pior ainda, de conluio com Putin (um homem forte que ele admira) para perturbar, ou falsificar, a eleição presidencial. Anteontem Trump pôs na rua o director do FBI, James Comey, que estava a investigar o assunto. As explicações para este inesperado despedimento (mesmo para Comey, que soube dele pela televisão) não sossegaram nem o bom povo, nem o Senado, nem os jornalistas. Trump embrulhou-se desde o princípio e, no meio da confusão, deu uma entrevista em que declarou que Comey (a vítima da sua fúria) o ilibara três vezes de qualquer espécie de manigâncias com a Rússia. Isto cheirou mal a toda a gente e convenceu os gurus políticos (que na América são uma força) que Trump se metera de facto em combinações com Putin e tremia com a ideia de que elas fossem descobertas. Há quem fale num novo Watergate. Absurdamente, porque o Watergate era uma simples ladroeira, e as supostas actividades de Trump envolvem, ou podem envolver, a segurança do Estado americano e por consequência do mundo. Começou um caminho arriscado em que o zelo da televisão e da imprensa se junta ao de uma parte do Senado e da Câmara para destapar o que Trump pretende alegadamente esconder. A violência dos debates não promete nada de bom.

Eles e Nós (21 maio 2017)
Quando, no sábado passado, Salvador Sobral ganhou o Festival da Eurovisão, toda a gente começou a dizer que “nós tínhamos ganho”, que “nós éramos os melhores” e mesmo “os melhores dos melhores”. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro escaparam a esta absurda identificação. Pior ainda: indivíduos sem a mais leve autoridade na matéria não se coibiram de explicar publicamente a natureza e qualidades da música de Luísa Sobral que acharam “simples” (não é), “diferente” (de quê?) e com tanto “sentimento” que ia “directa ao coração” (um comentário idiota e nulo). Ora, como se sabe, “nós” como entidade colectiva não contribuímos coisíssima nenhuma para o sucesso de Salvador Sobral e da irmã, e nada nos permite usar esse sucesso como pretexto para uma nova sessão de gabarolice nacionalista, que só a consciência da nossa mediocridade e da nossa miséria justifica e provoca.
Os portugueses precisam de sinais de uma importância e de uma grandeza que a realidade lhes nega. E porque sofrem dia a dia com a realidade qualquer pequena distinção lhes serve para se evadirem dela: a selecção de futebol ganha o campeonato da Europa (nós somos formidáveis); Guterres, que falhou tristemente aqui, é eleito Secretário-Geral da ONU (nós somos superiores); Salvador e Luísa Sobral ficam em primeiro lugar no Festival da Canção (nós somos logicamente incomparáveis). Isto mata. Não quero dizer que não se deva retirar um certo orgulho e um certo consolo de proezas como a de Kiev. O que digo é que o patriotismo português não se manifesta senão por transferência para um ocasional herói ou grupo de heróis. Não se manifesta porque não pode pela satisfação com o sistema de justiça, ou com a estabilidade das finanças do Estado, ou com o crescimento da economia, ou com o exemplar ordenamento das cidades. Sem diminuir o mérito dos nossos heróis, que é deles e não nosso, era bom começar por pedir que nos déssemos a nós próprios o que nos falta e o que merecemos. A expressão “Portugal está na moda”, que o cavaquismo inventou, é um símbolo do nosso fracasso; a glória reflectida nunca ajudou ninguém.
Só sexta-feira à noite percebi o que se estava a passar. O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da República e a própria Assembleia enlouqueceram com Salvador Sobral. Não há a menor dúvida. E, para quem ainda duvide, basta ligar a televisão. Não me lembro de ver um espectáculo remotamente parecido (a Câmara dos Comuns, por exemplo, a aplaudir de pé Gardiner, Simon Rattle ou os Beatles). O populismo da classe dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção. Agora sabemos quem nos governa.

O Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
O terceiro atentado terrorista em Inglaterra desde Março produziu os lugares comuns do costume. A condenação dos jihadistas foi morna e estereotipada. Toda a oficialidade pediu mais medidas de segurança. O Ocidente inteiro chorou as vítimas. Mas como sempre ninguém tentou explicar politicamente o que sucedera. Porquê? Porque ninguém se atreve a revelar as verdadeiras causas desta violência contra sociedades à superfície pacíficas. As causas são claras. Em primeiro lugar, a América estabeleceu uma base na “terra santa” da Arábia e a seguir começou duas guerras em países muçulmanos: no Iraque e no Afeganistão. Esta criminosa estupidez está em grande parte na origem da violência que veio depois. Bush, Blair e os governos que na Europa lhes deram apoio militar e diplomático não conheciam nem se interessavam pelas condições no terreno ou pela natureza do seu inimigo, historicamente dividido em dois ramos inconciliáveis e em dezenas de seitas e organizações.
O islão é um mundo em crise, um mundo imerso numa guerra religiosa, que se confunde, como invariavelmente sucede, com a luta pela hegemonia de um bilião de muçulmanos. Qualquer intervenção de fora implica duas consequências. Por um lado, favorece uma facção ou facções dos beligerantes. Por outro, leva a América e as potências da Europa a conduzir elas mesmas uma guerra por interposta pessoa. A Síria é um bom exemplo. Não admira por isso que o ódio gerado no islão transborde para Nova York, Paris, Marselha, Manchester ou Londres, que os jihadistas compreensivelmente consideram parte do seu campo de acção.
A única maneira de acabar com ataques terroristas ao Ocidente seria que o Ocidente se retirasse por completo do islão, o que implicaria o fim da mais leve presença militar, económica ou política e mesmo de alianças formais com qualquer Estado muçulmano. Para nossa má sorte, os interesses que se opõem a uma medida tão drástica nunca o permitiram. Pelo contrário, basta olhar à volta para perceber até que ponto o dinheiro do islão ou, pelo menos, de uma fracção dele penetrou nas sociedades em que vivemos.
Para as nações da Europa que têm comunidades islâmicas, o problema é mais complicado. Os tempos do consumo e da boa cidadania passaram com a paragem ou quase paragem do crescimento, com o desemprego (principalmente dos jovens) e com a criação de guetos em bairros suburbanos ou simplesmente com a falta de habitação e o seu desmedido preço, como é o caso da Inglaterra. Perante a pobreza e a perspectiva de uma existência sem destino nada mais natural que, por mais assimilados que tencionassem ser, os muçulmanos ou os filhos de muçulmanos dirijam a sua raiva contra uma civilização que os seus preceitos religiosos radicalmente condenam – coisa que uma certa “tolerância” de Hampstead, de Saint Germain ou da Lapa, jamais percebeu. A maioria pacífica acabou por se tornar numa pequena minoria europeizada e próspera; o resto oscila.
Por essa razão, a análise académica do tipo e da metodologia dos atentados não ajuda muito. Por mais fina que seja a rede de segurança alguém escapará. O mal deve ser cortado pela raiz: retirar, nem que seja por fases, toda a interferência no islão (militar, económica e política); rejeitar o multiculturalismo tão querido à “inteligência” da esquerda; diminuir drasticamente a imigração; e por muito que doa à sra. Merkel, não aceitar nem mais um único refugiado.

Luto nacional (25 jun 2017)
…hopes expire of a low dishonest decade…
A primeira obrigação do Estado é garantir a segurança física dos cidadãos. Em Pedrógão Grande o Estado Português não a cumpriu e mostrou assim a sua fraqueza e a sua essencial ilegitimidade. Na sopa de aletria da meia dúzia de agências ou subagências governamentais que intervieram no caso, ninguém se entendia sobre nada. A que horas tinha começado o fogo e porque tinha começado? Porque não se tinha fechado a tempo a chamada “estrada da morte”? Porque não se tinham evacuado as pessoas que deviam ser evacuadas? Tinha caído um avião ali, a uns quilómetros, ou não tinha caído um avião? Existia um jornalista fantasma ou não existia? O que transpirava desta confusão eram informações contraditórias das várias autoridades envolvidas, todas visivelmente preocupadas em sacudir a água do capote para o parceiro do lado. A cena foi deprimente e aterradora. E no meio do caos, para o completar, desembarcaram o primeiro-ministro e o Presidente da República, com fatos de bombeiros, que não iam lá fazer coisa alguma de útil ou louvável, excepto evidentemente exibir a sua alma, exercício que ninguém lhes pedira ou agradecia.
Este espectáculo, pelo mortos e pelo sofrimento dos que não morreram, comoveu o país. Mas o mesmo país habitualmente assiste em paz de espírito às mais graves demonstrações da incompetência e degradação do Estado: investigações criminais que duram anos e anos (como a de Oliveira e Costa e, a seguir, a de Sócrates, a de Ricardo Salgado e as de várias dezenas de suspeitos menores); julgamentos sem fim; a maior dívida da história, que vai crescendo; políticas que se atenuam, interrompem ou simplesmente se metem na gaveta para não ofender parcelas ínfimas do eleitorado; actos egrégios de nepotismo e compadrio; a corrupção que se manifesta ou descobre em cada recanto da vida corrente e da vida pública nacional. O parlamento, depois de lamentar a infindável sequência de comissões de inquérito para prevenir incêndios, que não chegaram a parte alguma, nomeou outra comissão de inquérito; e as “personalidades” que roubaram milhões continuam a passear tranquilamente pelas ruas.
A grande pergunta é simples: porque havia de aparecer em Pedrógão Grande, por milagre flagrante do Altíssimo, um Estado previdente, eficaz e responsável? Não apareceu; e, como de costume, os mais fracos pagaram a conta. Seria bom que fizéssemos mais três dias de luto. Por nós.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

As 10 últimas crónicas de Vasco Pulido Valente no Público


CRÓNICA

Vasco Pulido Valente, o historiador, escritor, ensaísta e comentador político português morreu esta sexta-feira no hospital em Lisboa onde estava internado. O escritor morreu aos 78 anos.
21 de Fevereiro de 2020, 18:52

Diário 1
Gostava de ver a lista dos hóspedes portugueses que Isabel dos Santos recebeu no seu apartamento de Monte Carlo. Seria com certeza muito consolador. Claro que ela era o casamento perfeito: uma noiva rica sem país, um país velho sem dinheiro.

18 de Janeiro
A sra. Joacine Katar Moreira e o sr. Rui Tavares tiveram a oportunidade de discutir longamente as suas divergências e as suas concordâncias sobre a política de um partido inexistente chamado Livre. Claro que a discussão durou muito tempo mas talvez as duas personagens se consolem com a ideia de que, teoricamente, podiam ter levado uma eternidade. A origem e as condições em que foi criado não prometiam nada de bom para o Livre. De qualquer maneira, aquele pequeno bando de lumpen proletariat conseguiu fazer-se notado e (Deus sabe como) eleger a sra. Joacine. A estúpida classe média portuguesa acha graça a estas fitas e para não votar vulgarmente no PS vota no Livre. Tudo aquilo é um equívoco. O Livre não sabe o que é; e a média burguesia que vota nele também não. Não vale a pena comentar mais o caso.
Gostava de ver a lista dos hóspedes portugueses que Isabel dos Santos recebeu no seu apartamento de Monte Carlo. Seria com certeza muito consolador.
Claro que ela era o casamento perfeito: uma noiva rica sem país, um país velho sem dinheiro.
22 de Janeiro
Dizem agora muito mal de Isabel dos Santos, mas para mim ela é um génio: conseguiu entender-se no meio das baralhadas de dinheiro em que viveu toda a vida. O mal dela foi, como todos os parvenues, o de querer a respeitabilidade e a segurança. Investiu muito dinheiro nessa obra. Só não percebeu que a cada passo se tornava mais vulnerável e, portanto, mais fácil de apanhar.
Foi apanhada. Não lhe serviu de nada o apartamento em Monte Carlo, nem as colecções de arte, nem uma pose tardia de conspícua accionista do EuroBic e da Sonae. O centro da luta, como a origem da fortuna dela, sempre fora Luanda. Perdida em Luanda estava perdida em toda a parte.
23 de Janeiro

A judicialização da política americana é completa. Começou com Nixon, continuou com Clinton e agora chegou a Trump. A Câmara dos Representantes percebeu que pode derrubar um presidente quando ele não é a seu gosto. Claro que o presidente tem de dar uma ajudinha. Nixon deu uma grande ajuda com os seus grupos de assaltantes e de ladrões (ainda por cima incompetentes). Monica Lewinsky ia derrubando Clinton com a sua atenção à roupa que vestia para o encontrar. E agora Trump, com uns telefonemas indiscretos para a Ucrânia dos quais se tem tirado um espantoso partido. Não é que os presidentes americanos tenham tendência para degenerar; é que o sucesso das tentativas anteriores de impugnação entusiasma os senhores congressistas, mas, sobretudo, que os senhores congressistas têm um infalível aliado nos jornalistas da imprensa e da televisão. Não é por acaso que um dos convidados preferidos da CNN é o sr. Carl Bernstein, quando não é John Dean, o grande herói do Watergate por ter delatado o que se passava na Casa Branca.

Diário 2
As duas facções do PSD odeiam-se de morte e lutam até à morte. O trágico é que nenhuma delas tem razão. E que as duas são encarnadas por personagens particularmente desagradáveis e, pior do que isso, banais.
11 de Janeiro
Eleições no PSD: os votos legais virão de uma lista de 30 mil pessoas; e segundo a interpretação que Rio faz do militante bem-comportado. É triste ver ao que chegou um grande partido nacional, que outrora governou o país.
A veia autoritária e salazarista do dr. Cavaco matou a militância. Quando ele saiu, o PSD de Sá Carneiro já era um cadáver.
12 de Janeiro
Quando, no seu discurso, António Costa chegou ao delicado assunto dos rendimentos da classe média-alta, sentiu-se um arrepio de frio pela espinha da audiência. É muito bem feito. Andaram anos e anos a maçar o pessoal que queriam o dinheiro dos outros. Agora, nem o dos outros nem o deles. A promoção é livre, mesmo para lá do Presidente e dos juízes do Supremo. Vai ser um vê-se-te-avias.
Mas o Estado não tem dinheiro para essa tropa fandanga. De qualquer maneira, ninguém parece muito impressionado. Os portugueses só se impressionam com os factos consumados. Lá para Fevereiro, teremos greves do funcionalismo para uma vida. Não lhes servirá de nada, suponho eu.
13 de Janeiro
Marcelo disse em Moçambique que Portugal precisava de estar mais na moda do que está. Se ele insistir, não sei exactamente que espectáculos vai o Governo inventar para o satisfazer, mas parece que vamos ter uma nova época de louvaminhas ao antigo império colonial. Já estamos suficientemente longe de Salazar para nos podermos permitir estas brincadeiras. Vai haver exposições, colóquios, muitas viagens e muita “projecção nacional”. E o presidente Marcelo vai ter muito com que se entreter. É só isso que ele quer e esta é a única maneira como consegue pensar.
14 de Janeiro
As duas facções do PSD odeiam-se de morte e lutam até à morte. O trágico é que nenhuma delas tem razão. E que as duas são encarnadas por personagens particularmente desagradáveis e, pior do que isso, banais.
16 de Janeiro
Deus Nosso Senhor nos livre do partido Livre.
De resto, a situação é engraçada: a direcção política do partido não confia na deputada Joacine, a deputada Joacine não confia no partido. Só Rui Tavares podia ter inventado uma intriga destas.
17 de Janeiro
A quem possa interessar: a monarquia inglesa começou por ser uma acumulação de coroas que durante séculos incluía as coroas da Irlanda e da França, mas assentava na união da Inglaterra e da Escócia. Sendo esta a sua natureza, o rei não podia fazer senão casamentos dinásticos e obrigar a sua família a fazê-los também, nos pequenos reinos da Alemanha contemporânea ou na casa real da Dinamarca.
Quando o Reino Unido foi decretado as regras não mudaram: o Reino Unido precisava de um chefe de Estado e só podia ser um – o rei de Inglaterra.
E mais: o príncipe Harry é utilíssimo à propaganda da casa Windsor no Commonwealth. A rainha não faz favor nenhum em o deixar ir para o Canadá, ainda por cima com Meghan atrás.

Diário 3
Ficámos a saber que em boa doutrina democrática se pode encomendar a morte do inimigo. Basta ter um míssil ou dois.
4 de Janeiro
Encontrei-o, aos 20 anos, n’O Tempo e o Modo e nunca mais deixámos de nos ver. São cinquenta anos. Durante grande parte desse tempo ele foi meu advogado e tirou-me de vários sarilhos, com autoridade mas com brandura. Se sobrevivi até agora devo-lhe em grande parte. Morreu hoje à tarde, com 76 anos, o meu amigo Júlio Castro Caldas, e eu soube pela televisão, que se limitou a passar um anúncio breve.
Júlio Castro Caldas, 19 de Novembro de 1943 – 4 de Janeiro de 2020.
Ministro da Defesa
Bastonário da Ordem dos Advogados
Esta é uma sóbria e solene descrição de uma vida. Mas para o Júlio terá sido o menos importante. Vi-o há pouco tempo: estava com uma barriga esplendorosa pelo que foi geralmente criticado. Tínhamos razão.
5 de Janeiro
O espectáculo do Presidente de uma república liberal gabando-se de ter mandado matar um general inimigo a milhares de quilómetros de distância é um pouco inquietante. Há muito tempo que o assassinato deixou de ser um método político corrente. Talvez que o último verdadeiramente importante fosse o de Júlio César.
Mas aparentemente não chocou por aí além a sensibilidade da elite americana. As objecções que se levantaram a este inaudito crime de Trump foram de oportunidade e de carácter constitucional. Não me lembro – e estive três dias à frente da televisão – de ouvir ninguém manifestar qualquer espécie de repugnância pelo acto em si. Ficámos assim a saber que em boa doutrina democrática se pode encomendar a morte do inimigo. Basta ter um míssil ou dois.
7 de Janeiro
Foi no ano distante de 2003, no princípio da Primavera eu fui almoçar ao Gambrinus – o doutor Mário Soares estava lá e deu-me os parabéns pelo meu artigo do dia. Como “parabéns” vindos daquela fonte eram raros, eu perguntei porquê. Era, obviamente, pelo artigo sobre a invasão do Iraque que eu condenava de raiz com o máximo de brutalidade. A coisa funcionava tanto melhor quanto era muito pequena. Soares deu-me logo dois argumentos mais decisivos. Primeiro, que o Iraque iria ficar envolvido em todas as querelas no Médio Oriente. Segundo, que os americanos e Israel dali em diante também se iriam inevitavelmente envolver atrás do que sucedesse no Iraque durante um bom par de anos.
De facto, pode-se dizer que a invasão do Iraque foi o maior erro político do Ocidente desde a II Guerra Mundial. Ligou dezenas de países e, sobretudo, ligou a Europa a uma política que não era a dela e, ainda por cima, cujas justificações eram falsas: não havia armas de destruição maciça no Iraque, nem atómicas nem outras. E, na prática, Saddam vivia nos seus palácios sob protecção americana.
10 de Janeiro
O Orçamento foi hoje aprovado pelos votos a favor do PS e a abstenção do PEV, do PAN, do Livre, do PC, do Bloco e de três deputados do PSD Madeira. Mas, no meio do seu alívio, o governo devia pensar no efeito destas baixas combinações. Aceitar o regime de Centeno talvez não faça mal ao PS, mas pouco a pouco irá desacreditando o Bloco e o PC. Não se diz uma coisa e se vota outra impunemente. Mais tarde talvez sejam precisos o Bloco e o PC na sua integralidade e não teremos mais que dois grupos de mentirosos coxeando atrás de António Costa.

Diário 4
29 de Dezembro
As eleições para presidente do PSD provocaram algumas tentativas de análise entre os candidatos sobre o que era ou não era o partido. Todas erradas, porque por oposição ou imitação todas tomam por modelo o PSD de 1980 ou, pior ainda, a AD.
O PSD de 1980 tinha duas partes fundamentais. Uma delas vinha do marcelismo: os técnicos do planeamento e alguns intelectuais que a Igreja havia pacientemente educado. Isto deu ao partido os seus dirigentes e o seu chefe. Mas, no fundo, como dizia alegremente Carlos Macedo, o que fez a AD de 1980 foi a outra parte, o partido dos três Rs: a Reinstituição da PIDE, a Reconquista de Angola e a Ressurreição de Salazar. O povo português não estava muito entusiasmado com a revolução dos capitães. E o eleitorado que trouxe as vitórias de 1979 e de 1980 não se recomendava aos democratas. Mesmo dentro do partido havia uma campanha feroz contra o “adúltero” Sá Carneiro.
Agora, com a morte de Sá Carneiro, o bom tom obriga a esquecer estas origens. Escreve-se a história desse período como se não existisse Igreja Católica. Ora existia e tinha uma força a que nenhuma espécie de esquerda podia resistir. Assisti a muitas missas na primeira fila, sabendo o padre que eu era ateu, em que se tratava piedosamente de esclarecer os fiéis de que marxista equivalia a comunista. O slogan da campanha completava este cuidado com o caminho que seguiam os crentes: “partido socialista = partido marxista”.
Ainda hoje convinha comparar o mapa da prática activa do catolicismo com o mapa eleitoral do PSD. Seria talvez um bom método de evitar a torrente de asneiras que por aí se dizem.
31 de Dezembro
O Presidente da República foi no fim do ano à ilha do Corvo e aproveitou para discursar à pátria. E nesse discurso disse a António Costa que queria um executivo com estabilidade e, de preferência, orientado à esquerda. Tudo isto é muito compreensível.
Marcelo acabou o seu mandato com uma enorme popularidade que não se deve só aos beijinhos e às selfies. Deve-se principalmente ao sucesso do PS. O PS conseguiu fabricar a “geringonça”, isto é, uma maioria absoluta, fingindo que estava a recuperar da crise com uma política de esquerda. O espectro de Passos Coelho chegou para sustentar esta mentira durante quatro anos, o que evitou que o Presidente tivesse de intervir na vida política e, sobretudo, de coibir qualquer excesso da esquerda: o PS estava lá para isso e com a direita sabia ele como se arranjar. Pôde assim assistir tranquilamente em Belém à passagem do tempo e fazer o seu número cómico sem que ninguém lhe caísse em cima.
Mas hoje para manter esse suave arranjo precisa que o PS o ajude. Pior: precisa do concurso do Bloco de Esquerda. Só não percebeu que o PS nunca se aliará formalmente ao Bloco. António Costa tem de pensar na sua retaguarda e, como não há diferença entre Pedro Nuno Santos e Catarina Martins, ele tem de tomar cuidado com as misturas entre a esquerda do seu partido e a esquerda bloquista. Se ele não soubesse isto, Pedro Sánchez já lhe tinha explicado.

Diário 5
14 de Dezembro
Entro suspeitoso nesta terrível quadra do Natal. Dantes, o Natal era uma festa que se celebrava entre portas, com a família. Hoje, é um espectáculo. Iluminações em que as autarquias gastam o que têm e o que não têm, carrosséis, coretos, pavilhões e até pistas de gelo. Será isto o que nós esperávamos da democracia?
15 de Dezembro
Como falta o dinheiro, há sempre o mesmo problema: ou se aumenta o défice, ou se aumenta a carga fiscal. Não há saída. Por isso, os políticos acabam por nos parecer todos iguais. Porque eles próprios não têm escolha e a vida pública tende para a imobilidade e para a encenação. O PS está a governar Portugal da única maneira como Portugal pode ser governado. E só pode ser substituído por um partido que governe como ele.
No constitucionalismo monárquico os “rotativos” inspiravam um ódio universal; não pelo seu radicalismo, mas pela sua parecença. Desta vez, o “Bloco Central” não pegou, porque a elipse do PC produziu o “arco da governação”. Mas hoje, que o CDS morreu, e ninguém se apresenta para o ressuscitar, e que o PC reentrou firmemente nos costumes constitucionais, só nos esperam governos do PS e da sua franja ou governos do PSD e da sua franja. Ambos democráticos, ambos defensores do Estado Social, e ambos promotores do mercado livre muito bem controlado; liberté, egalité, fraternité. Apesar das dificuldades e alguns soluços pelo caminho, os europeus parecem ter chegado ao fim da Grande Revolução.
18 de Dezembro
Ainda bem que o encontro entre Mário Centeno e Miguel Albuquerque foi desmarcado e que eles só se encontraram uns minutos em público, num “evento” inócuo. Afinal nem toda a gente endoideceu no PS. As negociações com o PSD foram grotescas. Se o PS tivesse arrebanhado aqueles três deputados, teria ficado a governar a Madeira, sem maioria na Assembleia Regional mas com maioria na representação nacional. Felizmente, Costa, que se julga um grande estadista, deu com a coisa a tempo.
19 de Dezembro
Trump foi destituído pela Câmara dos Representantes: todo o partido democrático votou a favor e todo o partido republicano votou contra. De qualquer maneira, a telenovela não acabou: os pais da Pátria não consideraram a hipótese de haver um presidente destituído contra a vontade unânime do senado. E, por isso, deixaram um vazio para Nancy Pelosi negociar o tipo de julgamento a que os democratas querem que Trump seja submetido. Não sei quanto tempo isto pode durar, mas pode durar séculos e adiar a resolução da peça até a impopularidade de Trump ser arrasadora.
Durante a discussão no Congresso, os republicanos compararam Trump a Jesus Cristo e os juízes dele a Pôncio Pilatos. Pior ainda, houve um congressista que comparou os democratas aos japoneses de Pearl Harbour. O ódio escorre. Basta ver a maneira como os locutores da CNN vão contando o caso – com um prazer pela queda presuntiva do homem e não só pela queda do político. Um desses senhores rebentava de gozo ao lembrar que Trump ficaria para sempre na história como um vilão. Se alguém julga que vai resolver alguma coisa com estes exercícios judiciais está muito enganado. O partido democrático ainda não percebeu que Trump existe por uma razão. Como Boris Johnson existe por uma razão. E como não serviu de nada tentar parar o “Brexit” com uma armadilha parlamentar, não servirá de nada tentar apanhar Trump numa armadilha constitucional. No fim dessas conversas, ele irá prevalecer, porque os conflitos da sociedade são reais, não são retórica.

Diário 6
Só ficou o mundo digital e Meghan Markle. Todo aquele minucioso edifício terá de se desfazer para se tornar a fazer. Não se volta atrás a história.
7 de Dezembro
Peço aos meus colegas do jornalismo escrito e falado, mas sobretudo falado, que não se esqueçam sistematicamente de que “melhor” não é igual a “mais bem”.
10 de Dezembro
Qualquer pessoa gostava de ter os salários dos alemães, o serviço de saúde dos ingleses, as reformas dos franceses e os impostos dos suíços. Infelizmente, estas coincidências não são possíveis, mas António Costa anda a esforçar-se por tirar uma do chapéu. É claro que nunca vai conseguir e que a tentativa só vai assanhar os protestos e dar ao governo um arzinho de falsário e trapalhão.
Isto é ao mesmo tempo triste e inevitável. A miséria nacional vem em grande parte da comparação saloia que a propósito de tudo toda a gente faz entre Portugal e a Europa. Infelizmente, como dizia Salazar, o país é pobre e pobremente será obrigado a ir vivendo.
Quem se indigna com este diagnóstico severo vive nas nuvens e abre a porta a muita agitação desnecessária. É extraordinário o tom com que as “massas” falam dos seus direitos; parece que antes vieram da Ilha do Tesouro e que uma fortuna lhes foi roubada na véspera por um tirano sanguinário. Sucede que não há ilha nem fortuna.
11 de Dezembro
Por esta época a ministra da Cultura ou quem faz a sua vez cai sempre numa armadilha. Se não se quer tornar um árbitro das elegâncias tem por força de distribuir o dinheiro para o teatro por critérios de autoridade e, lamentavelmente, deixar de fora uma boa parte dos fregueses. Costa deu este ano mais 18 milhões para o peditório, mas não há milhões capazes de satisfazer aquela fome.
Este ano, como de costume, apareceram algumas pindéricas manifestações de indignação a propósito de uns miríficos “cortes” na cultura. O problema do teatro é este: arranjado um espaço qualquer que se denomina “o palco” ou “a cena”, tudo o que se passe lá em cima é “arte” ou “cultura”. Quem dirá que não? Um político, acidentalmente promovido ao governo? Era só o que faltava.
Agora, o estrondo da indignação artística até chegou ao parlamento via BE. Não façamos caso.
12 de Dezembro
Boris Johnson ganhou. Porquê? Porque sustentou uma convicção até ao fim e fez tudo o que era necessário para ganhar. Votou contra May. Votou com May. Tomou o partido por cem mil votos. E, quando as “notabilidades” se revoltaram, pôs na rua as “notabilidades”. Perdeu várias vezes no parlamento até poder desembaraçar-se daquele parlamento e convocar eleições. E chegou ao fim com uma direcção e um objectivo – “Brexit”. Mereceu o seu lugar na história do Reino Unido. Daqui em diante, é preciso perceber uma coisa: o “Reino Unido” não é uma velha tradição dos ingleses, dos galeses, dos irlandeses ou dos escoceses. É uma entidade decretada pelo poder imperial no princípio do século XIX. Até aí, só existia a justaposição das coroas na cabeça de sua majestade britânica. Mas com o colapso do prestígio dessa majestade e as mudanças do mundo, só ficou o mundo digital e Meghan Markle. Todo aquele minucioso edifício terá de se desfazer para se tornar a fazer. Não se volta atrás a história.

Diário 7
A menina Greta veio agora à vela de Nova Iorque. E como tinha de fazer escala em Lisboa, provocou, naturalmente, uma crise de nervos nacional.
30 de Novembro
A menina Greta veio agora à vela de Nova Iorque, para não sujar o planeta e para convencer os milhões de pessoas que todos os dias atravessam o Atlântico que esse é o método mais prático e seguro de viajar. A propósito, o destino da menina Greta é Madrid.
E como tinha de fazer escala em Lisboa, provocou, naturalmente, uma crise de nervos nacional. O senhor Presidente da República explicou em pormenor por que razão não tencionava recebê-la com muitas selfies e um discurso no Cais de Alcântara. O senhor presidente da Câmara de Lisboa já prometeu oratória e beijinhos. O senhor ministro do Ambiente teve um espasmo de alegria e virtude. E não há quem os agarre.
1 de Dezembro
O 1.º de Dezembro é uma data curiosa. Começou por ser o emblema da casa de Bragança: um emblema dinástico e não um emblema nacional. Foi também, depois, o hino do constitucionalismo monárquico, escrito por D. Pedro IV num acesso de lirismo imperial. Durante a República tornou-se numa festa da resistência monárquica. Hoje em dia, não se sabe porquê, o Estado democrático resolveu juntar-lhe o hino da Patuleia, que 35 bandas tocaram misteriosamente nos Restauradores.
Claro que Marcelo não se meteu nesta trapalhada: ajuizadamente entrou mudo e saiu calado nas cerimónias oficiais. Deixou a idiotia retórica a Siza Vieira e Fernando Medina.
2 de Dezembro
A NATO perdeu todo o sentido, desde que Trump foi eleito para a presidência dos Estados Unidos e declarou que o seu principal interesse estava no Pacífico. E está: a Rússia ainda tem uma máquina de guerra capaz de intimidar qualquer um, mas tem uma economia frágil, atrasada e muito pequena – por esse lado, não inquieta ninguém. Quando caiu o muro de Berlim, caíram também os argumentos que justificavam uma aliança da América com a Europa. Para a América, essa aliança era só uma despesa; para a Europa acabou por ser a condição da sua prosperidade. Durante o império soviético a Europa viveu tranquila sob o guarda-chuva americano e hoje nem sequer gasta 2% do PIB em sua defesa.
Não admira que Trump ande por aí a fazer desacatos. Os problemas que ele tem com a Ucrânia são outros. E não passa pela cabeça de Putin arrasar o mundo pelo prazer de mandar na Bulgária ou na Letónia; nem sequer pelo prazer de mandar num bocado da Ucrânia. A arrogância da América e da Rússia face à Europa assenta nesta verdade primária: a Europa é uma personagem gratuitamente acrescentada ao quadro.
4 de Dezembro
Os candidatos à “liderança” do PSD insultaram-se entusiasticamente mostrando a mediocridade de todos eles – o que se previa. O que não se previa é que, discutindo o partido com um ar sabedor, nenhum deles se tivesse referido à Igreja Católica Apostólica Romana. É como se ela nunca tivesse existido, nunca se tivesse importado com as peripécias do casamento de Sá Carneiro e não fosse, nos primeiros anos do regime, uma força decisiva em qualquer eleição.

Diário 8
16 de Novembro
À velocidade com que fala, é impossível que Catarina Martins pense no que diz.
17 de Novembro
Num país onde 20 por cento da população está abaixo do limiar de pobreza, o Presidente da República preocupa-se com os 500 homeless (ómelésses, como lhes chamava uma amiga minha) de Lisboa. Fica-lhe bem. Quando me lembro de um inverno em Washington, em que havia criaturas congeladas pelas valetas, não tenho coração para o criticar. Mas não consigo deixar de pensar que estes desventurados são “os pobrezinhos do senhor Presidente”.
Não me repugna a caridade como ao militante médio do PCP. Mas neste caso, em que se junta o pitoresco de que os media gostam ao sentimentalismo de telenovela, não consigo evitar um ligeiro arrepio. A mobilização das instituições da República para os sem-abrigo não me parece uma grande causa.
18 de Novembro
A urgência de pediatria do hospital Garcia de Orta, em Almada, fechou porque não tem pediatras. É inevitável que alguém com 20 e poucos anos e uma especialização não queira viver em Almada e trabalhar para o Garcia de Orta. O mercado livre da União Europeia também é um mercado livre de trabalho.
19 de Novembro
O senhor Pinto Luz da Câmara de Cascais, que pretende ser o próximo presidente do PSD, prometeu “ganhar”. Esta mania de “ganhar” instalou-se no partido com o adorável Cavaco Silva em meados dos anos 80. Mas não passa de uma gabarolice. Quanto mais se diz que o PSD quer ganhar, mais ele perde.
20 de Novembro
Lamento não acompanhar o Presidente da República e a “esquerda” indígena na uníssona homenagem a José Mário Branco. Ainda me lembro vividamente do PREC, de que esta personagem foi um dos rostos mais militantes e visíveis. A gente que hoje se abriga à sombra da social-democracia e do Estado de Direito não imagina o que lhe teria sucedido em 1975, a título de ser “fascista” e membro da “reacção” para a qual existia “uma só solução”: o fuzilamento. “Uma só solução, fuzilar a reacção”, uma palavra de ordem que se ouvia incessantemente na rádio entre baladas deste benemérito.

21 de Novembro
A única resposta possível deste governo à manifestação de hoje, em frente à Assembleia da República, é despedir o ministro Eduardo Cabrita. O governo de António Costa é responsável por ter dado às forças de segurança motivos plausíveis para descer à rua. E também é responsável por ter permitido que um aventureiro político se tivesse apropriado de um compreensível descontentamento para fins obscuros. O PS e o PSD, ou seja, os partidos constitucionais, foram os únicos que não estiveram no sítio onde deviam estar: cá fora, na escadaria.
21 de Novembro, à noite
Os peritos parecem concordar que o último grande investimento nas forças de segurança foi em homenagem ao Campeonato Europeu de futebol de 2004, que, se bem me lembro, excitou particularmente o doutor Marcelo Rebelo de Sousa. O que isto diz sobre a saloiice portuguesa é aflitivo.
22 de Novembro
O CDS não resistiu a ir atrás do Chega, na forma do deputado e comentador desportivo Telmo Correia. Deus Nosso Senhor os salve, que mais ninguém pode.

Diário 9
Vão ser admiráveis as discussões parlamentares sobre os princípios teóricos da “progressão” e da “retenção”. Tenho pena de não assistir e mais pena ainda de não participar. Ia ser muito divertido.
10 de Novembro
“Eu, Luís Montenegro, católico, português, resolvi dedicar os próximos doze anos da minha vida a salvar a Pátria e prometo, pela alma da minha mãezinha, ganhar as próximas eleições, o governo de Portugal, as eleições seguintes, mais quatro anos de governo, o restabelecimento do monopólio da pimenta, a tomada de Ormuz, a descoberta da relatividade, e a minha entrada triunfal na lista da Forbes como a maior fortuna do mundo”.
Graças a Deus pelo PSD.
11 de Novembro
Desde o I Governo constitucional que os grandes partidos, interpretando erroneamente a morte da I República, se preocuparam em pôr uma rolha regimental aos pequenos. Isto foi mais visível à esquerda do que à direita por duas razões. Primeiro, por causa das excitações revolucionárias de Abril. E, segundo, por causa do carácter doutrinário da esquerda: lembremos que o Partido Socialista só renunciou ao marxismo programático nos anos 80 e que sofreu de facto uma cisão, a dos saudosos Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira; e que também o PC teve de se haver com vários “autênticos partidos do proletariado”.
Claro que, em boa doutrina, os pequenos partidos parlamentares deviam ter o tempo que quisessem. Mas não se trata disso. Nem do imaginário perigo da extrema-direita. Do que se trata é de anular dois deputados do PS ou do PSD que amanhã resolvam constituir-se num partido. Nenhum dos partidos do regime – e conto o Bloco entre os partidos do regime – poderia viver sob tal ameaça.
Desta perspectiva, o que sucedeu agora foi uma aberração. Ferro Rodrigues lá sabe.
13 de Novembro
O senhor primeiro-ministro decidiu por sua alta recreação que não haveria “chumbos” até ao 9º ano de escolaridade. A isto se chama, no idioma “eduquês”, evitar a “retenção”. Não me pronuncio sobre o assunto, quanto mais não seja porque neste ponto já errei várias vezes e não há certezas absolutas. Noto apenas que os argumentos que valem para o 9º ano também valem para o 12º, a licenciatura, o mestrado e o doutoramento. Mas António Costa também remeteu Rui Rio para a bibliografia. Parece que o Conselho de Ministros, como José Sócrates, foi a Paris estudar sociologia da educação. E quer transformar a Assembleia da República num seminário.
Vão ser admiráveis as discussões parlamentares sobre os princípios teóricos da “progressão” e da “retenção”. Tenho pena de não assistir e mais pena ainda de não participar. Ia ser muito divertido.
14 de Novembro
A ortodoxia política pegou com pinças no episódio da mãe que abandonou o filho num ecoponto. Nos dias que vão correndo, toda a gente sabe que este género de histórias só são aproveitadas pelo Correio da Manhã e pela televisão de cabo. E que as pessoas sérias não gostam de “explorações mediáticas”.
Mas, no meio do barulho, lembrei-me d’Os Miseráveis e de como esse panfleto foi politicamente importante para o movimento republicano francês. E de como depois foi copiado em abundância por Eugène Sue (Les Mystères de Paris), por Ponson du Terrail (Les Drames de Paris) e até pelo nosso Camilo (Os Mistérios de Lisboa). Para bem ou para mal, o género ficou: a burguesia gostava de saber o que se passava nesse escuro mundo que existia ao lado dela. E ainda hoje o fenómeno se replica com o jornalismo popular. A direita percebeu isto, e a esquerda não.

Diário 10
Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer perante a cultura identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a ser uma entidade abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este espectáculo me repugna e me enfurece.
2 de Novembro
O programa do governo desapareceu sob as saias do assessor de Joacine e a política desapareceu sob a pessoa de Joacine ela própria. Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer perante a cultura identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a ser uma entidade abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este espectáculo me repugna e me enfurece.
Quem leu as dezenas de artigos de propaganda que Rui Tavares escreveu tentando convencer as pessoas que o partido, absurdamente chamado Livre, era a esquerda europeia não pode deixar de ficar embasbacado. O submundo das querelas radicais continua a fervilhar como uma infecção, mesmo quando nós não damos por isso.
3 de Novembro
O debate entre os chefes dos partidos espanhóis foi surpreendentemente calmo e bem-educado. Deu muito a pensar à direita. E muitíssimo mais à esquerda. O Podemos atacou constantemente o PSOE pela simples razão de que quer ir para o governo com ele e o PSOE não quer (e não só por causa das divergências a respeito da Catalunha).
Em Portugal acontece exactamente a mesma coisa: o Bloco quer uma aliança, como eles dizem, “estável” e “a prazo” com o PS, isto é, para a legislatura, e o PS não quer.
O que Pedro Sánchez e António Costa temem acima de tudo é que a social-democracia europeia, vigente nos seus partidos, seja invadida e substituída pelos radicais à sua esquerda. Não sei bem o que se passa em Espanha. Em Portugal é óbvio que não há nenhuma diferença entre a direcção do Bloco e a esquerda do PS. Por isso Costa promoveu a direita do partido e a gente da sua confiança, e deixou Pedro Nuno Santos dependente da sua graça pessoal. Infelizmente, com o tempo, suspeito que o Podemos e o Bloco vão ganhar: o radicalismo urbano tendeu sempre a chegar às últimas consequências.
6 de Novembro
Duas técnicas da Segurança Social, seja isso o que for, estão acusadas de tirar duas filhas à mãe. Essa mãe era vítima de violência doméstica e fez, em protesto, vinte e seis dias de greve de fome (vinte e cinco chegam para matar o adulto médio) e ainda hoje só pode ver as filhas duas vezes por semana: aparentemente, o grande crime dela, que não se provou, foi ter abandonado a criança mais velha, de quatro anos, num café.
Uma pessoa pasma que dois funcionários administrativos – é isso que em última análise as duas “técnicas” são – possam separar uma família ao seu arbítrio pelo simples exercício de um poder que o Estado lhes conferiu. Mas podem. O jornalismo que por aí se esfalfa a examinar a justiça portuguesa nunca deu por esta barbaridade, que se instalou calada e burocraticamente. Quando a descobri, num noticiário da SIC, tremi de medo. Um dia destes aparece-me um “técnico” em casa, com um papel na mão, declara-me incapaz e mete-me num asilo; nenhum dos nossos políticos vai achar que se tratou de uma violação dos direitos do homem. A Constituição que se lixe.

Colunista