sábado, 16 de maio de 2020

Clara Ferreira Alves -O espião chinês

PLUMA CAPRICHOSA
CLARA FERREIRA ALVES

A CHINA E OS SERVIÇOS SECRETOS CHINESES NUNCA ATRAÍRAM A NATA DOS ROMANCISTAS DE ESPIONAGEM. A CHINA TEM OS MAIS SECRETOS E MAIS BEM ORGANIZADOS SERVIÇOS DE INTELLIGENCE DO MUNDO

A
cabou “Segurança Nacional”. A série aguentou oito temporadas sem que a intriga tenha destrambelhado, como costuma acontecer a séries de alto risco com uma história cheia de curvas e contracurvas, escrita por dezenas de argumentistas. Vimos envelhecer as personagens e estamos muito longe da “traição” inicial, mas o final é uma descoberta, com Carrie Mathison a transformar-se em Nicholas Brody. A mancha de Rorschach desenha a simetria das duas personagens, Carrie e Brody, o nó romântico e trágico da série. Howard Gordon e Alex Gansa nunca perderam o fio à meada e controlaram o resultado.

Claro que Hollywood, como o resto das ficções de espionagem, nunca encontrou melhor inimigo e adversário do que a Rússia e a antiga União Soviética. Os árabes e muçulmanos substituíram às vezes e aguentaram o papel de inimigos secundários, no banco dos suplentes, mas tanto antes como depois do 11 de Setembro, as histórias de terroristas e dos vapores tóxicos do Médio Oriente nunca conseguiram destronar a atração do cinismo eslavo e da inquietação gerada pelo KGB, hoje GRU. Para os romances de espionagem, que ganharam a consagração durante a Guerra Fria e a Cortina de Ferro, no caldo fumegante do pós-guerra e da construção do Muro de Berlim e de Checkpoint Charlie, as intrigas e traições dos serviços secretos, com as histórias e personagens nascidas das brumas, com o jogo de espelhos, são o material de excelência.

John Le Carré, filho de Joseph Conrad e de Graham Greene, os precursores, conferiu ao género uma qualidade literária, que começa com “O Espião que Saiu do Frio”, o primeiro best-seller do autor e a matriz fundadora desta literatura na segunda metade do século XX. O romance, de 1963, apresenta-nos o espião relutante Alec Leamas, um agente britânico enviado para a Alemanha Oriental fazendo-se passar por dissidente para espalhar desinformação sobre um importante oficial da secreta comunista do lado de lá. Leamas, ao contrário de muitos espiões, tinha uma consciência. A consciência do espião, e as suas valorações axiológicas, que o fazem hesitar, duvidar, ou estar disposto a morrer antes de triunfar, é o que distingue o espião bom do espião mau. O bem do mal, se quiserem. Carrie Mathison está sempre à beira de perder a consciência, tal como o mentor Saul Berenson, mas recuperam-na no fio da navalha por onde deslizam como o caracol do coronel Kurtz.

Com a trilogia “The Quest for Karla”, “Smiley Versus Karla” em português, Le Carré atingiu a plenitude do género. A trilogia é uma obra-prima. Smiley, o chefe do MI6, joga um xadrez geoestratégico na intimidade com o homólogo Karla, chefe do KGB. Smiley é um anti-herói e Karla também, entretidos a sacrificar peões num tabuleiro onde a vida vale pouco e corre em estado líquido. Tudo em nome da pátria. O jogo é o que lhes interessa, não tanto a pátria. Smiley não joga For Queen and Country, joga para xeque-mate. Teoricamente, o jogo acaba assim, mas Smiley perde tanto como Karla quando ambos ficam soterrados na poeira dos escombros do império. São dois espiões velhos e desempregados, aposentados à força e avessos às tecnologias e às políticas da imagem. Ambos deitaram vidas a perder sem perderem o respeito um pelo outro. O mundo novo e digital do século XXI nunca os aceitaria ou compreenderia, são ambos produtos da mesma cultura fortíssima, a europeia, a da Europa que ia de São Petersburgo a Londres, passando por Praga, Viena, Paris e Berlim. Putin é um avatar deste mundo antigo e literário, na versão autocrática pós-moderna. E não é dotado de consciência, foi arregimentado pela cobiça imperial. Um czar fora de época, muito bem-sucedido porque os inimigos não estão à altura. Não se pode conceber um bom drama de espiões com medíocres atores.

As grandes centrais de espionagem romanesca foram sempre a CIA, o KGB, a Mossad, O MI6 e, tangencialmente, os serviços secretos franceses ou alemães para servirem cafés. A implacável Mossad ocupa o topo da tabela, com proezas mais militares do que de intelligence, e com uma mitologia duramente construída em paralelo com a fundação do Estado de Israel e o combate ao inimigo palestiniano. Em “A Rapariga do Tambor”, Le Carré foi seduzido pela região e as guerrilhas no deserto moral das religiões, mas não ficou muito tempo. O território dele é a Alemanha, a Inglaterra, a Rússia. Berlim, Londres, Moscovo. Afastou-se para outros continentes e regressou sempre a casa. Sozinho, John Le Carré, aliás David Cornwell, refundou o género, cristalizando na imaginação coletiva a figura do espião intelectual e indeciso sobre a pertença e identidade. Todos os espiões com consciência são espelhos do autor, refletindo a ambiguidade moral e identitária de uma condição universalista sobreposta a um nacionalismo que cria e alimenta marionetas movidas pela ambição e ganância da burocracia política e militar das nações.

A aventureira Carrie Mathison herda esta ambiguidade, característica mais inglesa do que americana. A realidade da CIA não ostenta muitas personagens como Carrie e Saul, filhos dos espiões da Guerra Fria e das operações do Médio Oriente no tempo em que se usavam luvas. E Carrie tem mais de T.E. Lawrence do que de James Jesus Angleton. Ela acaba na Rússia, desertora e traidora, a recusar going native. Na série, o apartamento de Moscovo parece-se mais com um de Manhattan do que com a modéstia dos aposentos que a Rússia reservou para os traidores ocidentais. Kim Philby vivia num cinzento prédio estalinista, encostado ao tédio e ao samovar, com um copo de whisky na mão e saudade dos prados ingleses. E não consta que Edward Snowden esteja bem instalado.

É um facto curioso que a China e os serviços secretos chineses nunca tenham atraído a nata dos romancistas de espionagem. A China tem os mais secretos e mais bem organizados serviços de intelligence do mundo, e trava uma guerra ideológica permanente com um bloco ocidental que despreza e deseja submeter. Ao contrário dos extremistas da Jihad, um bando de assassinos maltrapilhos e desorganizados, o perigo da nossa “submissão”, para usar o título do livro de Houellebecq, nunca veio daqui. Qualquer diplomata sabe que o perigo, mais do que a Rússia, é a China. Demasiado poderosa para ser confrontada. Demasiado corruptora.

O grande livro sobre a secreta chinesa tem por título “Chinese Intelligence Operations”, de Nicholas Eftimiades, a bíblia para quem queira saber alguma coisa sobre o assunto. Sobre o assunto sabe-se quase nada. Impenetrável, mais impenetrável do que a Al-Qaeda dos sauditas, a China age no segredo e na discrição milenar. Está mais ativa do que nunca, controlando a narrativa da pandemia e os danos para o país, financiando espiões e idiotas úteis, movendo as peças para capturar a rainha e dar xeque ao rei americano. Por baixo do radar, a China observa e ordena, e será a única superpotência do futuro. No entanto, raros são os escritores que se interessam por tais manobras. Nunca saberemos o que aconteceu em Wuhan, para lá da especulação. Os escritores e ficcionistas não se interessam pelo que desconhecem, nem por uma cultura referencial que lhes é estranha. A língua, os usos e costumes, os comportamentos, as paisagens. A China é o maior país do mundo e o mais bem guardado segredo do mundo.

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