* António Guerreiro
Cultura-Ípsilon - CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
22 de Maio de 2020, 9:43
A palavra “propaganda” ficou tão associada aos modos de comunicação e de doutrinação ideológica que deixou de ser utilizada tanto na sua dimensão comercial (a que chamamos hoje “publicidade”, aludindo assim à ideia de esfera pública) como no metadiscurso político em vigor nos regimes democráticos. Mas é preciso referirmo-nos ao sentido e aos processos da propaganda para termos um entendimento crítico do discurso totalitário a que temos sido submetidos.
Não discuto se ele advém de boas razões e se é legitimado por uma boa causa, ou seja, pelo sentido de perigo e de extrema precaução exigidos aos nossos gestos e comportamentos quotidianos, em nome não apenas da saúde individual, mas também — ou sobretudo — da saúde pública. O que se tornou entretanto evidente é que a resposta à reclamação de absoluta segurança (algo impossível de alcançar, mas sempre presente nos tempos actuais) foi para além dos seus fins e agora nem os governos nem todos aqueles que, nos media, substituíram a informação pela propaganda e pelo moralismo sabem como atenuar a overdose de medo inoculado à população. Ao medo do vírus, sucedeu agora o medo de que os efeitos do confinamento e de todo o discurso público que o acompanhou — sempre informado pela lógica do pior — se tenham tornado permanentes.
As medidas do governo até podem ter sido prudentes e na medida certa (é pelo menos o que nos dizem muitos epidemiologistas cujo conhecimento desta matéria foi tido em conta, sabendo-se que não há nem pode haver aqui unanimidade), mas todo o discurso que as acompanhou, particularmente exacerbado em muitos canais de televisão, tem sempre como pressuposto a menoridade intelectual dos espectadores. Os elogios públicos ao civismo dos portugueses ganhou o sentido de um auto-elogio que se podia traduzir nestes termos: “Vejam como somos eficazes e performativos, vejam como a nossa acção é importante para que população (e é de população que se trata, não de povo) seja disciplinada e obediente”.
Face a um inimigo invisível que é o vírus, assistimos a uma operação de propaganda que construiu um medo útil, mas de acção mais duradoura e em dose mais exagerada do que seria agora conveniente. Uma operação de propaganda desta dimensão, no nosso tempo, só a encontramos na reacção a um outro inimigo que também legitimou uma política do medo: o terrorismo.
Para esta propaganda total contribuiu também a publicidade. Todos reparámos certamente que os spots publicitários não desapareceram, mas foram atacados pelo vírus do pudor e do didactismo moralista, paternalista e geralmente piegas. Deixaram de dizer “compre”, “pague um e leve dois”, “X lava mais branco”, para passarem a dizer: “seja responsável”, “fique feliz em casa: carpe diem”, “o nosso automóvel é experiente em curvas, saiba como achatar esta com que estamos confrontados”, “tudo vai ficar bem com a nossa ajuda”. De maneira mais ou menos directa, a publicidade passou a só falar do vírus. Tornou-se tão insuportável como as afectações “poéticas” de alguns apresentadores dos jornais televisivos, ilustrando na perfeição a verdade enfática dos propagandistas. E foi assim que ficámos não apenas reféns do medo, mas também dos bons sentimentos, das afecções da alma. Distanciamento social? Não, o que houve foi a “partilha” em modo superlativo. Fechados em casa, mas a partilhar e a receber de todos os lados — da publicidade, do jornalismo, do discurso público dominante — mensagens de medo e de bons sentimentos. E o medo como o melhor dos sentimentos. O que fazer agora, com todo o medo que sobra?
Há ainda as máscaras. Como usá-las? Como fazê-las em casa? Que percentagem de gotículas elas filtram? Porque é que o seu uso indevido as pode tornar perigosas? A que certificação têm que estar sujeitas? Todas estas instruções são tão necessárias como as próprias máscaras. Mas até quando aguentamos um mundo de gente mascarada? E os políticos mascarados em todas as suas frequentes aparições públicas — o que é que isso contribui para a erosão do poder político? Não sabemos ainda, mas começamos a sentir que isto não se pode prolongar por muito tempo. A catástrofe está a tornar-se uma paródia e vamos todos acabar mortos de riso.
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