* José Diogo Quintela
Bizarramente os meus compatriotas optaram por fazer fila
em cabeleireiros e barbearias em vez de se dirigirem, como eu, à sede da CGTP.
Um processo de filiação que vale bem mais que um corte de cabelo
05 mai 2020, 00:1025
Como todos os portugueses que passaram as últimas semanas em
quarentena, saí ontem de manhã preparado para enfrentar as bichas à porta do
sítio onde toda a gente queria ir depois de quase dois meses de confinamento.
Bizarramente, ao chegar lá, não tinha ninguém à frente. Os
meus compatriotas optaram por fazer fila em cabeleireiros e barbearias, em vez
de se dirigirem, como eu, à sede da CGTP. Um processo de filiação que vale
muito mais que um corte de cabelo. A trunfa espera bem mais dois ou três dias,
eu já estou treinado a não olhar para espelhos. Mesmo importante é não perder
os benefícios de pertencer à Intersindical. Nunca se sabe se não volta o Estado
de Emergência. Prefiro ser um guedelhudo e passear por onde me apetece, do que
um penteadinho que tem de cumprir escrupulosamente todas as regras do
isolamento social.
Obviamente, o segundo local onde me dirigi foi ao médico.
Depois de 52 dias em casa com uma mulher, 4 crianças e um cão, fui a um o
otorrinolaringologista. Neste momento, estou surdo e não consigo falar sem ser
aos berros. Sinto-me como um idoso que é capataz numa serração. Que opera
dentro de um Hércules C-130. Onde estão a tocar os Moonspell. Com a Dulce
Pontes como convidada especial.
O curioso é que, cá em casa, não notámos que estávamos a
gritar muito uns com os outros. Só nos apercebemos no dia em que a polícia veio
avisar que não podíamos fazer uma festa àquela hora da noite, quando eu só
estava a embalar o meu filho com uma canção e umas palmadinhas na fralda.
(Por falar no bebé, tenho pena que, apesar do que a Ministra
da Saúde disse, a Igreja mantenha o plano de festejar o 13 de Maio sem
peregrinos, por causa do coronavírus – ou seja, desta feita, em vez de trazer
pessoas a Fátima, um ser invisível afasta pessoas de Fátima. É que gostava de lá
ir prestar homenagem. Nesta quarentena, desenvolvi uma admiração especial por
Nossa Senhora. Também ela criou um filho que não tinha crianças com quem
brincar. Maria, por causa de Herodes, que mandou matar todos os bebés até dois
anos. Eu, por causa desta quarentena que tirou o miúdo da creche e me obriga a
passar as 24 horas do dia com ele.
Não aconselho, aturar um pirralho que não tem amiguinhos da
sua idade com quem se entreter. É que o meu filho está mesmo a imitar Jesus.
Julga que eu sou Deus, porque parece achar que a minha paciência é infinita. E,
de certa forma, também transforma água em vinho: desde que fiquei confinado com
ele, é raro não estar com um copo de tinto na mão).
Apesar dos gritos, não se julgue que a quarentena foi um mau
período familiar. Pelo contrário. Acho que tanto tempo juntos, ainda mais do
que o costume, fortaleceu as relações entre todos. Especialmente, devo dizer
com surpresa, a minha relação conjugal. Sinto que saímos deste período com um
casamento ainda mais sólido. Na adversidade, conseguimos desenvolver uma
cumplicidade que está ao alcance de poucos casais. No início, foi difícil.
Qualquer coisa que um de nós dizia servia para iniciar uma discussão.
– O que vai ser o jantar?
– “O que vai ser o jantar?”, não é?
– Sim, qual é o problema?
– Podias perfeitamente ter perguntado “o que é o
jantar?”, mas tinhas de enfatizar que é no futuro, não é? “O que vai ser”. Vai
ser, porque esta preguiçosa ainda não fez nada. Se calhar nem vai fazer, a
calona.
– Mas interessa a forma como eu conjugo?
– Ah! “Eu com jugo”! Lá está o menino a fazer-se de
vítima. Tem uma canga pendurada, é?
– Não foi nada disso que eu disse.
– Fui eu que ouvi mal. Sou surda, querem ver?
– Não és nada surda.
– Então sou mentirosa. É isso?
Depressa percebemos que assim não íamos durar muito. E, ao
longo das semanas, evoluímos. Deixámos de discutir por qualquer coisa que
alguém dissesse. Começámos a entendermo-nos, já sabíamos o que o outro estava a
pensar. De maneira que passámos a discutir quando ninguém dizia nada.
– O que foi isto?
– Eu não disse nada.
– Não disseste, mas a tua barriga fez barulho. Aí, a
roncar de fome, como quem pergunta “o que é que vai ser o jantar?” “O que vai
ser”, não é?
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