OPINIÃO
* José Pacheco Pereira
Hoje muito pouca gente lê
Júlio Dinis, seja pela perversidade da modernidade, seja porque o universo dos
seus romances e das suas personagens é mais estranho do que um E.T., seja,
acima de tudo, porque é um livro e hoje os livros que não sejam papel pintado
estão fora de moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.
2 de Maio de 2020, 0:20
Júlio Dinis já foi durante muitas
décadas um best-seller. As pessoas liam-no não porque fossem
obrigadas pela escola (como acontece com os Maias), mas por gosto.
Era um autor popular, dando origem a filmes e uma considerável iconografia e
cujos “tipos” existem ainda na linguagem comum, desde o “João Semana” ao “senhor
Joãozinho das Perdizes”. Isto é tudo passado, porque hoje muito pouca gente o
lê, seja pela perversidade da modernidade, seja porque o universo dos seus
romances e das suas personagens é mais estranho do que um E.T., seja, acima de
tudo, porque é um livro e hoje os livros que não sejam papel pintado estão fora
de moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.
De tudo o que li de
Júlio Dinis (e confesso que nunca li As Pupilas do Senhor
Reitor…), as páginas que, vá-se lá saber porque meandros da nossa cabeça
por onde passa a memória, melhor recordo são da Morgadinha dos
Canaviais, os primeiros capítulos. Tenho a ideia que quando li o livro pela
primeira vez me pareceram desinteressantes, porque o que eu queria era a acção.
Não tinha nenhuma simpatia pelo fastio e indolência da personagem, Henrique de
Souselas, e não sabia mesmo o que era isso do spleen. E, no
entanto, foram elas que mais me marcaram a memória.
Cenas do filme A
Morgadinha dos Canaviais, de 1949 DR
A história começava com a viagem
de Henrique de Souselas para casa da tia no fundo dos fundos do Minho. Tinha
vinte e sete anos e vivia dos rendimentos herdados dos pais. Vinha a morrer de
tédio e do “demónio” da hipocondria
Tudo lhe causava fastio.
Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Grémio, bocejava no
Suisso, no Chiado e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também
a acha-lo insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem
o espirito, do que o espectáculo d’um homem que boceja ou dorme, onde e quando
os outros forcejam por divertir-se.
E ia para tão longe como se fosse
para o cemitério. O homem que o acompanhava e que comandava o macho onde vinha
pousado, mais do que sentado, fala com ele sem grande paciência para aturar a
impaciência do “patrão”.
Chegados à casa da tia, onde
tinha estado na infância, o primeiro choque com a realidade do rapaz cheio
de spleen foi tentar descrever à tia a sua “moléstia”:
Mas a final que moléstia é a
tua, menino?
― Eu sei lá, tia Doroteia? Nem
os médicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma
melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Às vezes
parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são
palpitações, ânsias... Tenho quási vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me,
não quero que me falem, nada quero ver, nada quero ouvir; não leio, não durmo,
não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.
(…) Assim que Henrique
terminou a exposição, ela disse-lhe com uma adorável candura:
― Então é assim uma espécie de
mania!
(…)
― Mania? Ó tia Doroteia!
Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!
― Sim, menino ― insistiu
ingenuamente a boa senhora ― pois olha que não é outra coisa. Pois isto de
estar triste sem ter de quê... sim... porque não te morrendo ninguém, nem te
doendo nada...
A criada, que também não percebia
a “mania”, tinha no entanto um exemplo para fornecer, o de um homem da
terra, que andava “por aí sempre triste, sempre a falar só, até que a final
lá foi parar...” Onde, pergunta Henrique? Ao manicómio.
Depois começa a terapia
involuntária da “mania”. Começa na comida (como em Eça a comida é muitas
vezes o sinal de que se estava a entrar num mundo novo), o caldo de arroz “que
lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera”. E depois a cama
onde dormiu debaixo de cinco cobertores como há muito tempo já não dormia: “Dormi
a noite de um sono, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha
das ocorrências.” Dois pontos para a tia, zero para o spleen. E
depois começa o romance.
O confinamento de Henrique de
Souselas era dentro da sua cabeça. A tia e a criada desconfinaram-no. Eram de
uma época pré-freudiana, percebiam o que era a fome, a dor, a doença, mas não
percebiam os estados de alma.
Como eu também nunca os percebi,
deve ser por isso que nunca esqueci estas páginas.
Historiador
Sem comentários:
Enviar um comentário