sábado, 2 de maio de 2020

José Pacheco Pereira A viagem de um rapaz confinado em si mesmo


OPINIÃO
* José Pacheco Pereira

Hoje muito pouca gente lê Júlio Dinis, seja pela perversidade da modernidade, seja porque o universo dos seus romances e das suas personagens é mais estranho do que um E.T., seja, acima de tudo, porque é um livro e hoje os livros que não sejam papel pintado estão fora de moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.
2 de Maio de 2020, 0:20

Júlio Dinis já foi durante muitas décadas um best-seller. As pessoas liam-no não porque fossem obrigadas pela escola (como acontece com os Maias), mas por gosto. Era um autor popular, dando origem a filmes e uma considerável iconografia e cujos “tipos” existem ainda na linguagem comum, desde o “João Semana” ao “senhor Joãozinho das Perdizes”. Isto é tudo passado, porque hoje muito pouca gente o lê, seja pela perversidade da modernidade, seja porque o universo dos seus romances e das suas personagens é mais estranho do que um E.T., seja, acima de tudo, porque é um livro e hoje os livros que não sejam papel pintado estão fora de moda. Fazem mal, não sabem o que perdem.

De tudo o que li de Júlio Dinis (e confesso que nunca li As Pupilas do Senhor Reitor…), as páginas que, vá-se lá saber porque meandros da nossa cabeça por onde passa a memória, melhor recordo são da Morgadinha dos Canaviais, os primeiros capítulos. Tenho a ideia que quando li o livro pela primeira vez me pareceram desinteressantes, porque o que eu queria era a acção. Não tinha nenhuma simpatia pelo fastio e indolência da personagem, Henrique de Souselas, e não sabia mesmo o que era isso do spleen. E, no entanto, foram elas que mais me marcaram a memória.

Cenas do filme A Morgadinha dos Canaviais, de 1949 DR

A história começava com a viagem de Henrique de Souselas para casa da tia no fundo dos fundos do Minho. Tinha vinte e sete anos e vivia dos rendimentos herdados dos pais. Vinha a morrer de tédio e do “demónio” da hipocondria

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Volume
Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Grémio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a acha-lo insuportável de insipidez; porque poucas coisas há que mais perturbem o espirito, do que o espectáculo d’um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.
E ia para tão longe como se fosse para o cemitério. O homem que o acompanhava e que comandava o macho onde vinha pousado, mais do que sentado, fala com ele sem grande paciência para aturar a impaciência do “patrão”.

Chegados à casa da tia, onde tinha estado na infância, o primeiro choque com a realidade do rapaz cheio de spleen foi tentar descrever à tia a sua “moléstia”:

Mas a final que moléstia é a tua, menino?

― Eu sei lá, tia Doroteia? Nem os médicos a conhecem bem. É, entre outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me persegue por toda a parte. Às vezes parece-me que sinto apertar-se-me dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ânsias... Tenho quási vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem, nada quero ver, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como. Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

(…) Assim que Henrique terminou a exposição, ela disse-lhe com uma adorável candura:
― Então é assim uma espécie de mania!
(…)
― Mania? Ó tia Doroteia! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte? Mania!

― Sim, menino ― insistiu ingenuamente a boa senhora ― pois olha que não é outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque não te morrendo ninguém, nem te doendo nada...

A criada, que também não percebia a “mania”, tinha no entanto um exemplo para fornecer, o de um homem da terra, que andava “por aí sempre triste, sempre a falar só, até que a final lá foi parar...” Onde, pergunta Henrique? Ao manicómio.

Depois começa a terapia involuntária da “mania”. Começa na comida (como em Eça a comida é muitas vezes o sinal de que se estava a entrar num mundo novo), o caldo de arroz “que lhe estava sabendo como nunca manjar lhe soubera”. E depois a cama onde dormiu debaixo de cinco cobertores como há muito tempo já não dormia: “Dormi a noite de um sono, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha das ocorrências.” Dois pontos para a tia, zero para o spleen. E depois começa o romance.

O confinamento de Henrique de Souselas era dentro da sua cabeça. A tia e a criada desconfinaram-no. Eram de uma época pré-freudiana, percebiam o que era a fome, a dor, a doença, mas não percebiam os estados de alma.

Como eu também nunca os percebi, deve ser por isso que nunca esqueci estas páginas.
Historiador

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