OPINIÃO
A pandemia da ignorância a
propósito do “marxismo cultural”
Temos de suportar duas
pandemias, a da ignorância e a do vírus. Convenhamos que é demais. Nestas
alturas, tenho um surto de pedantismo incontrolável.
16 de Maio de 2020, 0:20
Às vezes nem vale a pena bater no
ceguinho, porque para bater em ceguinhos em Portugal arranja-se sempre uma
multidão. De preferência quando o ceguinho já está mesmo ceguinho, porque mesmo
só com um olho, o estilo reverencial abunda e o país é muito pequeno para haver
independência crítica. E então se for anónima a pancada, os praticantes são
mais que muitos.
Mas a ignorância atrevida, essa,
sim, merece azorrague, até porque nos dias de hoje, de pensamento mais do que
exíguo, a coisa tende a pegar-se pelas “redes sociais”, o
adubo ideal da ignorância. Temos de suportar duas pandemias, a da
ignorância e a do vírus. Convenhamos que é demais. Nestas alturas, tenho um
surto de pedantismo incontrolável. Bom, não sei bem se a classificação de
pedantismo é a melhor, mas que por lá anda, tenho a certeza.
Vem isto a propósito do actual
uso e abuso da expressão “marxismo cultural”, muito comum hoje à direita mas
também usada muitas vezes erradamente à esquerda, que, na sua globalidade, é
cada vez menos marxista, mas ainda não deu por ela. Porém, o uso à direita é
uma espécie de vilipêndio e insulto e, em muitos comentadores de direita, é
comum para caracterizar uma espécie de polvo omnipresente, que lhes rouba as
artes, as letras, o jornalismo, algumas universidades, as ciências sociais, a
comunicação social, a educação e o ensino, e os obriga a refugiar-se nos
espaços “livres” dos colégios da Opus Dei, no Observador, nos blogues de
direita, na Universidade Católica, nos lobbies ideológicos
empresariais com acesso à comunicação, nalgumas fundações, nalguns articulistas,
na imprensa económica, etc. Para bunker contra o “marxismo
cultural” já parece muito espaçoso, mas eles acham-no apertadinho.
Nuno Melo escreveu recentemente
um artigo com o título sugestivo de “A
supremacia do marxismo cultural”, que é um bom exemplo de quem não percebe
nada do que está a falar. Começa com uma citação de Marx, aquilo a que ele
chama a “lição” que a esquerda aprendeu:
“As ideias da classe dominante
são, em todas as épocas, as ideias dominantes, porque a classe que é a força
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual
dominante.”
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Muito bem. A frase quer dizer
exactamente o contrário do que ele pretende. Quer ele dizer que é o
proletariado a “classe dominante” nos dias de hoje e que é por isso que
a “força intelectual dominante” é o marxismo? Interessante, ele vai
certamente explicar-me quando é que houve mudança de “força material
dominante”, ou seja, quando é que houve uma revolução. Na interpretação de
Marx, são escritos como o de Melo que revelam a “força intelectual
dominante”, ou seja, a da burguesia.
O que é essencial na interpretação
do marxismo é que a seta do poder, que explica a sociedade, a cultura, a
economia, a cultura, se faz a partir “de baixo”, das relações de produção, do
modo de produção, das classes dominantes a cada momento da história, e que
nesse terreno é a luta de classes que define essa outra seta que é o sentido da
história. Como Lenine e Trotsky disseram de forma mais bruta, de um lado está o
“caixote do lixo da história” e do outro o futuro, a base da teleologia
marxista. E embora haja “acção recíproca” entre a superestrutura e a
infra-estrutura, ela faz-se sempre a partir da “determinação” da
infra-estrutura. Esta interpretação de Marx é a essência da sua teoria, e mesmo
quando, nas escassas páginas que escreveu sobre a “cultura”, Shakespeare, em
particular, admitiu uma “autonomia relativa da cultura”, nunca admitiu que essa
autonomia fosse absoluta. Ou seja, na interpretação marxista, nunca o “marxismo
cultural”, seja lá o que isso for, podia ser dominante numa sociedade
capitalista, e isto é o bê-á-bá da coisa. Nem Lenine, nem Rosa Luxemburgo, nem
Gramsci, nem Lukács, se afastaram deste ponto essencial.
Eu não sou guardião da
ortodoxia de Marx, mas sei o que ele disse e o que ele não disse e não
participo neste abastardamento das ideias pelas palavras e pela propaganda
E, mesmo aceitando-se a
ambiguidade da expressão, seria um absurdo dizer que qualquer forma de
“marxismo cultural” tem hoje “supremacia” na sociedade portuguesa. É verdade
que há muita força da esquerda e do esquerdismo (que não é a mesma coisa) em
determinados sectores da “superestrutura”, nas artes, nas letras, em certa
comunicação social, mas acrescente-se duas coisas: primeiro, a maioria dessa
esquerda e desse esquerdismo não é marxista; segundo, já teve mais força do que
hoje tem e, mesmo a que subsiste, está cada vez mais acantonada. Por exemplo,
nos anos da troika, muito do discurso público em matérias de
sociedade e economia era “neoliberal” (não gosto desta designação, mas vai por
facilidade), e uma das grandes vitórias ideológicas da direita foi conseguir
interiorizá-lo de forma “dominante”. Devo dizer que eu troco todo o esquerdismo
cultural no teatro pela reversão dessa invasão inconsciente de muitas cabeças
pela TINA.
Eu não sou guardião da ortodoxia
de Marx, mas sei o que ele disse e o que ele não disse e não participo neste
abastardamento das ideias pelas palavras e pela propaganda. O problema é que
gente como Nuno Melo, e muita direita, acha que bater no André Ventura é uma
expressão do “marxismo cultural” e só não se apercebe de como está a dignificar
o exercício, porque precisa de um papão com um nome ilustre para glorificar a
vaidade própria. Não é muito edificante ser vítima da sua ignorância, mas já é
outra coisa ser vítima de uma universal conspiração marxista que, vinda das trevas
do comunismo, os persegue pelas ruas de Bruxelas.
Historiador
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