segunda-feira, 4 de maio de 2020

Rita Rato - Quanto mais a gente se baixa, mais se vê o cu

Quanto mais a gente se baixa, mais se vê o cu
RITA RATO 4.5.20

Desde que isto tudo começou só vê ainda mais gente desgraçada. Vida fácil nunca teve, sair de casa de noite e noite chegar nunca foi um sonho. Tantas vezes exausta, a impaciência a pôr-lhe os nervos em franja, ainda inventar alguma coisa para o jantar com o que sobra na dispensa, cerelac e cereais já os miúdos deitam pelos olhos. E torcer para que sobre para o almoço amanhã, massa com milho já enjoa. Mas como diz a outra senhora, bifes todos os dias não é pra quem quer, é pra quem pode. Ah, peixe então não o cheiram há meses, douradinhos marca branca e cavala, que o atum tem estado ao preço da lagosta. Chama-se roda das necessidades, aprendida na escola como roda dos alimentos. E quase a adormecer no sofá lembra-se de confirmar se os miúdos fizeram os trabalhos, ou pelo menos se viram as professoras na televisão, que computador em casa não há, houve um subsidio de férias que guardou para isso, mas depois o frigorífico estragou-se e pronto, dinheiro não é elástico, não resiste às primeiras duas semanas do mês.

Nunca deixou de ir trabalhar, desde que tudo isto começou, mesmo quando a chefe disse que não tinham ainda chegado as máscaras nem as luvas. Mesmo quando o autocarro ia tão cheio como num dia normal, porque agora não passam tantos e vamos como gado. Desconfio que há gado que é transportado em melhores condições, mas a gente é gado de segunda. Põe os filhos em risco porque não tem com quem os deixar, custa-lhe, mas não tem escolha.

O telemóvel toca o dia todo, colegas a dizerem que não recebem há mais de um mês e meio, que não podem deixar os filhos pequenos sozinhos, que lhos podem tirar, mas que não têm dinheiro pra nada. Outras a dizer que estão fartas de ouvir dizer que as máscaras estão a chegar, mas já se passaram semanas e nem vê-las. Outras a dizer que os maridos estão em casa e não as deixam ir trabalhar naquelas condições, que não conseguem aturar os miúdos e fazer comida, mas beber o dia todo conseguem. Queixas ao sindicato já fez mais de 20, de empresas diferentes, cortes nos subsídios sem razão, colegas despedidas por SMS, salários que não entram na conta, desespero em forma de mensagens do Facebook. O advogado do sindicato está a tratar, tens que esperar, já fizemos de tudo, a senhora dos recursos humanos diz que vai responder até sexta-feira.

Trabalhar mais de 10h, seis dias por semana, pra levar nem chega a 600 euros pra casa, já é um risco em situações normais. Agora é o risco elevado ao quadrado, sobreviver no limiar da pobreza e sujeita a infectar-se a ela e aos filhos. Em troca de quê? Ainda lhe chamam ingrata, que isto anda aí muita gente que dava tudo pra ter a oportunidade que ela tem.

Andam há anos a dizer que merecem o subsídio de risco, lavar a roupa dos hospitais sujeitas a apanhar doenças não é risco? Nunca tiveram resposta dos recursos humanos. Já pararam e fizeram greve, prometeram negociações e têm engonhado a ver se as cansam.

Amanhã é o Primeiro de Maio e tenho que lá ir. Tenho que arranjar maneira, por mim e por elas, pelos delas e pelos meus. Nesta altura em que as coisas estão tão más é que temos mesmo que lá estar. Tanta porrada levamos da vida, quanto mais a gente se baixa, mais se vê o cu, sempre vi acontecer.

Qual quê filha, estava tudo organizado, o pessoal dos sindicatos não brinca em serviço, quem me dera a mim ter aquelas condições todos os dias quando vou trabalhar. O senhor da televisão está a dizer isso, ó filha manda-o ir trabalhar comigo uma semana, é como a outra dos recursos humanos, a largar postas de pescada são uns artistas, sobreviver ao quadrado é que nunca precisarão.

https://manifesto74.blogspot.com/2020/05/quanto-mais-gente-se-baixa-mais-se-ve-o.html

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