domingo, 9 de fevereiro de 2025

Alexandra Lucas Coelho - Gaza voltou a casa, estropiada, épica. A Europa perdeu a II Guerra em Gaza





* Alexandra Lucas Coelho

Dezenas de prisioneiros palestinianos, incluindo gente sem culpa formada, ou seja reféns, foram libertados na Cisjordânia pelas trocas do cessar-fogo. Em geral maltratados, com marcas de tortura, alguns lembrando os sobreviventes do Holocausto. E recebendo um milésimo da comoção mundial que rodeia os reféns do Hamas.» Para um “ocidente” em plena miséria moral, nem gente serão. Tal como para Trump são empecilhos a remover de vez, para construir uma “nova riviera” sobre os seus cadáveres. Mas o heroísmo palestiniano não será vencido, nem a solidariedade dos povos do mundo o abandonará.


1. Precisamos de ir à Bíblia, ao que só imaginamos ou nos assombra, para dar conta do que aconteceu esta segunda-feira, 27 de Janeiro de 2025, em directo nos nossos ecrãs, na nossa mão. Um povo —os palestinianos — a caminhar ao longo do Mediterrâneo, naquela faixa litorânea que todos os antigos povos do Mediterrâneo percorreram, e está na Bíblia com o nome que tem até hoje: Gaza. Não era mais uma réplica do Êxodo. Nem do êxodo mítico de Israel, nem do êxodo que vimos com os nossos olhos em Outubro de 2023, quando esse mesmo povo— os palestinianos — foram forçados por Israel a deixar o Norte de Gaza com crianças, bebés, grávidas, velhos, doentes, estropiados, incluindo o meu amigo W, como contei no primeiro texto a seguir ao 7 de Outubro. Um êxodo que retomou a Nakba (Catástrofe) de 1948, desdobrando-se em deslocações sucessivas nos últimos 15 meses e meio.

O que se deu agora foi o contra-êxodo. Meio milhão de palestinianos dentro de carros, carrinhas, carroças mas sobretudo apeados. Eram eles mesmos, com os seus corpos, a Faixa de Gaza — ou a nossa mais épica Faixa Humana —, caminhando de volta a casa, quilómetros. E levavam a chave ao pescoço, levavam lenços, bandeiras, tambores, pandeiretas. Cantavam de alegria, beijavam o chão. Agradeciam ter vivido para voltar. Muitos não tinham água nem comida, nem pernas para muito. Nem pernas, alguns. Infinitamente mais estropiados do que há 15 meses e meio. Todos viveram um holocausto, ficaram órfãos de alguém, e sabiam que voltavam para a ruína, da própria casa ou do que havia em volta. Mas uma mulher dizia: a nossa alegria é mais importante do que a casa. E uma menina que perdera o pai: hoje é o dia mais importante da história do mundo. E aquele futebolista que nasceu para ser pai: é o mais belo regresso a casa. Vi, no último ano, pelo Instagram, as filhas dele crescerem dentro da tenda. A mais nova a gatinhar, depois a andar, de repente dois dentes. Sempre a rir, incrivelmente a rir. Até ao dia em que o pai desencantou uns dinossauros pequeninos, e ela chorou aterrorizada porque nunca vira um boneco. Então ali estava ela, radiante às cavalitas do pai, a subir a Faixa de Gaza a pé, entre trincheiras e arame farpado. E Bisan Owda, que aos vinte e tal anos atravessou um genocídio a falar connosco, a levantar os humanos do chão porque víamos Gaza com ela, e porque a víamos a ela, Bisan disse: eu estava a sobreviver para este momento. Ela cruzara o Corredor de Netzarim com que Israel dividira o Sul e o Norte, matando quem se aproximasse. Cruzara de sul para norte com meio milhão de pessoas. Que talvez amanhã não possam dizer: ainda estou viva. Mas hoje podem, dizem, abrem a porta da ruína, montam uma tenda onde era a casa, respondem a Trump. Não serão “limpos”.

2. Egipto e Jordânia não querem dois milhões de palestinianos. Nem um milhão, nem nenhum. Trump garante que os dobra, aos egípcios, aos jordanos (“Vão fazê-lo.”). Não sabemos até onde isto pode ir, mas nos últimos dias Steve Witkoff — o magnata do imobiliário que Trump transformou em negociador tipo máfia (assina o cessar-fogo, para teu bem) — já foi à Arábia Saudita, a Israel e a normalização está aí a apitar. Trump vai receber Netanyahu, e mandou-lhe as bombas de destruição máxima que Biden embargara para não dar estrilho, enquanto continuava a mandar outras. Trump é a própria patente do estrilho para os próximos quatro anos. O seu novo embaixador em Israel diz que não há palestinianos, nem ocupação. A sua nova embaixadora na ONU diz que Israel tem direito bíblico à Cisjordânia.

E, a propósito de Cisjordânia, enquanto15 reféns já foram libertados em Gaza (incluindo cinco soldadas israelitas), felizmente muito mais saudáveis do que o mundo imaginava, Israel aproveitou para arrasar o campo de refugiados de Jenin. Não sem uma ajuda miserável da Autoridade Palestiniana. Milhares de desalojados. Mas além de Jenin, as forças de Israel têm atacado outras partes da Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Enquanto os colonos tratam de muitas outras, incendiando aldeias, casas, carros. Tudo isto desde o cessar-fogo. Que também vigora no Líbano, que também é bombardeado. Ao mesmo tempo, dezenas de prisioneiros palestinianos, incluindo gente sem culpa formada, ou seja reféns, foram libertados na Cisjordânia pelas trocas do cessar-fogo. Em geral maltratados, com marcas de tortura, alguns lembrando os sobreviventes do Holocausto. E recebendo um milésimo da comoção mundial que rodeia os reféns do Hamas. Aquela organização que Israel ia extinguir mas tem exibido milhares de homens armados a cada libertação de reféns. Quem conhece a Palestina sabe que o Hamas não vai ser extinto à bomba. Só é possível esvaziá-lo: se a Palestina for livre. Familiares de reféns israelitas imploram, entretanto, a Trump e ao Governo de Israel que a guerra não recomece até ao último refém ser libertado. Como se em Gaza os únicos humanos fossem os reféns. Famílias israelitas amorosas dos seus (e dos restantes israelitas), bravas lutadoras pelos seus (e pelos restantes israelitas). Israel é um país dividido, convulso. Mas destes 15 meses e meio emergiu uma grande maioria, mais clara do que nunca: a dos que não vêem, ou não querem ver, os palestinianos. Desumanizaram-nos. Viram que Israel pode fazer o que quer, matar com inteligência artificial, negar as evidências de genocídio, torturar nas cadeias, colonizar mais, anexar e safar-se sem sanções. E nos próximos quatro anos Israel tem Trump. Está em velocidade de cruzeiro na alienação.

Mas qualquer judeu consciente, em Israel ou no mundo, sabe que os últimos 15 meses e meio marcam a história dos judeus para sempre. O Estado de Israel fortaleceu-se contra a vergonha de os judeus não terem resistido quando eram perseguidos (ou, pior, terem colaborado). Mas há a vergonha em curso, de se continuar a fortalecer à custa de ser o mais forte, enquanto destrói outro povo.

3. Essa é uma das razões por que a Europa perdeu, simbolicamente, a Segunda Guerra em Gaza. Perdeu-a por ter deixado Israel fazer tudo o que fez desde 7 de Outubro, e por ter colaborado no genocídio mesmo. A Europa que foi gerando o Estado de Israel, pelo anti-semitismo de séculos, pelo sionismo desde o fim do século XIX e enfim pela sua culpa no Holocausto, é a mesma Europa que perdeu a guerra nas ruínas de Gaza. Como se a Segunda Guerra nunca tivesse acabado até agora.

Pensei nisto há dias, ao ouvir poemas de Primo Levi no lançamento da tradução portuguesa (A Uma Hora Incerta, Edições do Saguão). Primo Levi é aquele sobrevivente de Auschwitz que a maioria hoje no poder em Israel vê (ou ignora) como se ele não tivesse continuado a pensar. Mas ele continuou por mais de 20 anos, o bastante para ter dito coisas que hoje seriam chaves para Israel ver o seu próprio buraco, se fosse capaz.

Os 80 anos da libertação de Auschwitz celebraram-se justamente na segunda-feira em que meio milhão de palestinianos voltavam a casa —mas não para a liberdade. Os polacos estenderam a passadeira a Netanyahu, mas ele não esteve para isso (além de que tinha um julgamento). E o que seria preciso dizer nesse dia em relação a Gaza não foi dito pela Europa, mais uma vez.

Salvam-se as excepções do costume. Como a Espanha, que anunciou 50 milhões extras para a UNRWA, essa agência criada depois da Segunda Guerra para assistir os palestinianos que o mundo abandonara. Ontem Alemanha, França, Reino Unido fizeram uma declaração de apoio à UNRWA, banida por Israel desde quinta-feira, e apelando a Israel para que isso nãose concretize. Com que pressões? Que sanções?

Pior só a última declaração de Rangel, a dizer que Portugal se mantém na sua posição “tradicional” dos dois Estados, mas não é oportuno reconhecer a Palestina. Para o poço sem fim da vergonha. O contrário da coragem palestiniana.

Fonte: “Público”, 1.02.2025 
https://www.odiario.info/gaza-voltou-a-casa-estropiada-epica/

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