segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Sergei V. Lavrov - A ONU deve de novo tornar-se um centro de harmonização das acções das nações

*  Sergei V. Lavrov

     10.Feb.25      

Nos 80 anos da Cimeira de Ialta, um importante balanço sintético do trajecto histórico decorrido. A constatação de que as potências ocidentais nela participantes – EUA e Grã-Bretanha – se subscreveram os acordos posteriores e a Carta das Nações Unidas neles incluída, o fizeram sem qualquer genuína intenção de os respeitar e cumprir. Hoje há vozes nos EUA que declaram abertamente que os acordos Ialta-Potsdam lhes seriam prejudiciais. Mais, declaram que a sua própria “ordem baseada em regras” também já não lhes servirá. Ignoram que as condições demográficas, económicas, sociais e geopolíticas mudaram irreversivelmente. É uma figura diplomática da estatura de Lavrov quem o recorda. E recorda também que, a não serem reconhecidas essas novas condições, se poderá estar a caminhar para o caos.

Não é demasiado tarde para dar à ONU um novo sopro de vida. Mas isso não deveria ser feito através de ilusórias cimeiras e declarações, mas sim através da restauração da confiança baseada no princípio da igualdade soberana de todos os Estados enunciado na Carta. Infelizmente, não está a acontecer.

Há oitenta anos, em 4 de Fevereiro de 1945, os líderes dos vencedores da Segunda Guerra Mundial - a União Soviética, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha - abriram a Conferência de Ialta para determinar os contornos do mundo do pós-guerra. Apesar das diferenças ideológicas, concordaram em erradicar o nazismo alemão e o militarismo japonês. Os acordos alcançados na Crimeia foram reafirmados e aprofundados na Conferência de Potsdam, em Julho-Agosto de 1945.

Um dos resultados das negociações foi a criação das Nações Unidas e a aprovação da Carta das Nações Unidas, que permanece, até hoje, a principal fonte do direito internacional. A Carta estabeleceu objectivos e princípios para o comportamento internacional dos países, destinados a assegurar a sua coexistência pacífica e o seu desenvolvimento sustentado. O princípio da igualdade soberana dos Estados lançou a base do sistema de Ialta-Potsdam: nenhum pode reivindicar o domínio, uma vez que todos são formalmente iguais, independentemente do território, da população, das capacidades militares ou de outros parâmetros.

Apesar de todas as suas forças e fraquezas, sobre as quais os académicos ainda discutem, a ordem de Ialta-Potsdam forneceu durante oito décadas o quadro normativo e jurídico do sistema internacional. A ordem mundial baseada na ONU cumpre a sua principal tarefa - proteger toda a gente contra uma nova guerra mundial. Na verdade, “a ONU não nos trouxe o paraíso mas salvou-nos do inferno” [1]. O poder de veto consagrado na Carta - que não é um “privilégio”, mas um ónus de responsabilidade especial para salvaguardar a paz - serve como uma barreira sólida contra decisões imprudentes e oferece espaço para encontrar compromissos baseados num equilíbrio de interesses. Enquanto núcleo político do sistema Ialta-Potsdam, a ONU tem servido como uma plataforma universal única para o desenvolvimento de respostas colectivas a desafios comuns, quer para a paz e a segurança internacionais, quer para o desenvolvimento socioeconómico.

Foi na ONU que, com um papel fundamental desempenhado pela URSS, foram lançadas as bases para o mundo multipolar que está agora a emergir perante os nossos olhos. Em particular, o processo de descolonização foi legalmente implementado através da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, adoptada em 1960 por iniciativa da União Soviética. Nessa época, dezenas de povos, anteriormente oprimidos pelas potências coloniais, obtiveram pela primeira vez a independência e uma oportunidade de se tornarem Estados. Hoje, algumas destas antigas colónias podem afirmar-se como centros de poder no mundo multipolar, enquanto outras pertencem a uniões supranacionais com alcance civilizacional regional ou continental.

Como os académicos russos correctamente observam, qualquer instituição internacional é, acima de tudo, “uma forma de limitar o egoísmo natural dos Estados.” [2] A ONU, com a sua Carta adoptada por consenso, não é excepção.

A Rússia, tal como a maioria da comunidade mundial, nunca teve qualquer dificuldade em fazê-lo. Mas o Ocidente nunca se curou do sua síndroma de excepcionalismo e mantém os seus hábitos neocoloniais, ou seja, de viver à custa dos outros. As relações inter-estatais baseadas no respeito pelo direito internacional não foram, desde o início, do agrado do Ocidente.

A antiga subsecretária de Estado norte-americana Victoria Nuland admitiu uma vez, numa entrevista, que “Ialta não foi um bom acordo para nós, não foi um acordo que devêssemos ter feito”. Este tipo de atitude explica em grande parte o comportamento internacional dos Estados Unidos; em 1945, Washington foi praticamente forçado a aceitar de má vontade a ordem mundial do pós-guerra, já vista como um obstáculo pela elite americana, que rapidamente procurou revê-la. A revisão começou com o infame discurso da Cortina de Ferro de Winston Churchill, em Fulton, 1946, que essencialmente declarou uma Guerra Fria contra a União Soviética. Entendendo os acordos de Ialta-Potsdam como uma concessão táctica, os Estados Unidos e os seus aliados nunca seguiram o princípio fundamental da Carta das Nações Unidas da igualdade soberana dos Estados.

O Ocidente teve uma oportunidade fatídica de corrigir o seu rumo, de mostrar prudência e visão, quando a União Soviética se desmoronou juntamente com o campo socialista mundial. No entanto, os instintos egoístas prevaleceram. Dirigindo-se ao Congresso, a 11 de Setembro de 1990, inebriado pela “vitória na Guerra Fria”, o presidente americano George H. W. Bush proclamou o advento de uma nova ordem mundial [3], uma ordem que os estrategas americanos entendiam como o domínio total dos Estados Unidos na cena internacional, como uma janela de oportunidade para agir unilateralmente, sem ter em conta as restrições legais inscritas na Carta das Nações Unidas.

Uma manifestação da “ordem baseada em regras” foi a política de Washington de absorver geopoliticamente a Europa de Leste. A Rússia foi forçada a eliminar as suas explosivas consequências com a Operação Militar Especial.

Em 2025, com a administração republicana de Donald Trump de volta ao poder, a interpretação de Washington dos processos internacionais desde a Segunda Guerra Mundial assumiu uma nova dimensão, como vividamente descrito ao Senado pelo novo Secretário de Estado Marco Rubio em 15 de Janeiro: não só a ordem mundial do pós-guerra está ultrapassada, como foi transformada numa arma contra os interesses dos EUA [4]. Por outras palavras, não só a ordem de Ialta-Potsdam é indesejável, como também a “ordem baseada em regras” que parecia encarnar o egoísmo e a arrogância do Ocidente liderado pelos EUA após a Guerra Fria. “A América primeiro” é assustadoramente semelhante ao slogan hitleriano ‘A Alemanha acima de tudo’, e uma aposta na ‘paz através da força’ pode ser o golpe final para a diplomacia. Para não mencionar que tais declarações e construções ideológicas não demonstram o mínimo respeito pelas obrigações legais internacionais de Washington ao abrigo da Carta das Nações Unidas.

No entanto, hoje não estamos em 1991 ou mesmo em 2017, quando o actual Presidente dos EUA assumiu o leme pela primeira vez. Os analistas russos observam, com razão, que “não haverá regresso à situação anterior, que os EUA e os seus aliados ainda procuram, porque as condições demográficas, económicas, sociais e geopolíticas mudaram irreversivelmente.” [5] Também é provável que haja verdade na previsão de que, eventualmente, “os Estados Unidos compreenderão que não devem alargar demasiado a sua área de responsabilidade nos assuntos internacionais e viverão de forma bastante harmoniosa como um dos Estados líderes, mas já não como um hegemon.” [6]

A multipolaridade está a ganhar impulso e, em vez de se oporem a ela, os EUA poderão, num futuro previsível, tornar-se um centro de poder responsável, juntamente com a Rússia, a China e outros Estados do Sul, do Leste, do Norte e do Oeste globais. De momento, parece que a nova administração dos EUA vai lançar ataques de cowboys para testar os limites e a durabilidade do actual sistema centrado na ONU face aos interesses americanos. Mas tenho a certeza de que também esta administração compreenderá em breve que a realidade internacional é muito mais complexa do que as caricaturas que tem a liberdade de apresentar ao público interno americano ou a obedientes aliados geopolíticos.

Enquanto esperamos que os americanos fiquem sóbrios e se apercebam disso, continuaremos a trabalhar conscienciosamente com os nossos parceiros que partilham a mesma opinião para adaptar os mecanismos das relações inter-estatais à multipolaridade e ao consenso jurídico internacional de Ialta-Potsdam, que está consagrado na Carta das Nações Unidas. Vale a pena referir a Declaração de Kazan dos BRICS, de 23 de Outubro de 2024, que reafirma claramente o “compromisso unido da Maioria Mundial com o multilateralismo e a defesa do direito internacional, incluindo os Objectivos e Princípios consagrados na Carta das Nações Unidas como a sua pedra angular indispensável e o papel central da ONU no sistema internacional.” [7] Esta abordagem foi formulada por Estados líderes que moldam o mundo moderno e representam a maioria da sua população. Sim, os nossos parceiros do Sul e do Leste têm desejos muito legítimos no que diz respeito à sua participação na governação mundial. Ao contrário do Ocidente, eles, e nós, estamos prontos para discussões honestas e abertas sobre todas as questões.

A nossa posição sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU é bem conhecida. A Rússia procura tornar este órgão mais democrático, alargando a representação da Maioria Mundial: Ásia, África e América Latina. Apoiamos as candidaturas do Brasil e da Índia a lugares permanentes no Conselho de Segurança, ao mesmo tempo que trabalhamos para corrigir - por meios acordados pelos próprios africanos - a injustiça histórica para com o continente africano. A atribuição de lugares adicionais a países do Ocidente colectivo, já sobre-representados no Conselho de Segurança, é contraproducente. A Alemanha e o Japão, tendo delegado grande parte da sua soberania ao seu patrono ultramarino e tendo começado a reavivar os fantasmas do nazismo e do militarismo no seu país, não podem trazer nada de novo ao trabalho do Conselho de Segurança.

Estamos fortemente empenhados na inviolabilidade das prerrogativas dos membros permanentes do CSNU. Dada a política imprevisível da minoria ocidental, só o poder de veto pode garantir que as decisões do Conselho tenham em conta os interesses de todas as partes.

A política de pessoal do Secretariado da ONU continua a ser um insulto à Maioria Mundial, uma vez que os ocidentais continuam a predominar em todas as posições-chave. O alinhamento da burocracia das Nações Unidas com o mapa geopolítico mundial não pode ser adiado, tal como afirmado de forma inequívoca na Declaração de Kazan dos BRICS acima referida. Veremos até que ponto a administração da ONU, habituada a servir os interesses de um grupo restrito de países ocidentais, será receptiva a este apelo.

Quanto ao quadro normativo da Carta das Nações Unidas, estou convencido de que responde de forma óptima às necessidades da era multipolar, uma era em que todos devem observar - não apenas em palavras, mas em actos - os princípios da igualdade soberana dos Estados, da não interferência nos seus assuntos internos e outros princípios fundamentais. Entre estes princípios, conta-se o direito dos povos à autodeterminação, cuja interpretação consensual está consagrada na Declaração das Nações Unidas sobre os Princípios do Direito Internacional de 1970: a integridade territorial de um Estado deve ser respeitada se o seu governo representar a totalidade da sua população. Escusado será dizer que, desde o golpe de Estado de Fevereiro de 2014, o regime de Kiev não representa os povos da Crimeia, do Donbass ou da Novorossiya, tal como as potências ocidentais não representavam os povos dos territórios coloniais que exploravam.

As tentativas descaradas de reordenar o mundo no seu próprio interesse, violando os princípios da ONU, podem gerar instabilidade, confrontos e até catástrofes. Dado o actual nível de conflitos internacionais, a rejeição imprudente do sistema de Ialta-Potsdam, com a ONU e a Carta das Nações Unidas no seu centro, conduzirá inevitavelmente ao caos.

É frequente ouvir-se dizer que é prematuro falar da ordem mundial desejada numa altura em que ainda estamos a lutar para suprimir as forças do regime racista em Kiev apoiadas pelo Ocidente. Esta é, a nosso ver, uma abordagem perversa. Os contornos da ordem mundial do pós-guerra e os pontos-chave da Carta das Nações Unidas foram discutidos pelos Aliados no auge da Segunda Guerra Mundial, incluindo a Conferência de Moscovo dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e a Conferência de Teerão dos Chefes de Estado e de Governo, em 1943, e durante outros contactos entre as futuras potências vitoriosas, até às Conferências de Ialta e Potsdam, em 1945. Embora os nossos aliados já tivessem uma agenda secreta, isso não diminuiu a importância duradoura dos princípios supremos da igualdade, da não ingerência nos assuntos internos, da resolução pacífica de litígios e do “respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”.

É evidente que o Ocidente subscreveu estes princípios com segundas intenções e depois violou-os grosseiramente na Jugoslávia, no Iraque, na Líbia e na Ucrânia, mas isso não significa que devamos isentar os Estados Unidos e os seus satélites de responsabilidade moral e legal, ou que devamos abandonar o legado único dos fundadores da ONU, tal como está consagrado na Carta das Nações Unidas. Se, Deus nos livre, alguém tentar reescrevê-la (sob o pretexto de se livrar do sistema “ultrapassado” de Ialta-Potsdam), o mundo deixará de ter valores orientadores comuns.

A iniciativa do Presidente Vladimir Putin de 2020 para uma reunião dos líderes dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que têm “uma responsabilidade especial pela preservação da civilização”, [8] procurava um diálogo equitativo sobre todas estas questões. Por razões bem conhecidas e fora do controlo da Rússia, esta iniciativa não foi avante. Mas mantemos as nossas esperanças, embora os participantes e o formato dessas reuniões possam agora ser diferentes. O mais importante, segundo Putin, é “recuperar a compreensão daquilo para que as Nações Unidas foram criadas e seguir os princípios estabelecidos nos seus documentos fundadores.” [9] Esta deve ser a principal directriz para regular as relações internacionais na era multipolar que já despontou.

Referências

[1] RGP, 2020. Бордачёв Т.В. ООН не привела нас к раю, но спасла от ада // Можно ли представить мир без ООН? [Bordatchov T.V., Podemos imaginar um mundo sem a ONU?]. Debate em mesa redonda do CFDP e da Fundação Gorchakov Rossiya v globalnoi politike, 26 de Novembro. Disponível em: https://globalaffairs.ru/articles/mozhno-li-predstavit-mir-bez-oon// [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

[2] Ibid.

[3] Bush, George H.W., 1990. Address Before a Joint Session of the Congress on the Persian Gulf Crisis and the Federal Budget Deficit [Discurso perante uma sessão conjunta do Congresso sobre a crise do Golfo Pérsico e o défice orçamental federal]. The American Presidency Project. Disponível em: https://www.state.gov/opening-remarks-by-secretary-of-state-designate-marco-rubio-before-the-senate-foreign-relations-committee [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

[4] Rubio, M., 2025. Opening Remarks by Secretary of State-Designate Marco Rubio Before the Senate Foreign Relations Committee, 15 de Janeiro. Os sítios Web oficiais utilizam .gov. Disponível em: https://www.state.gov/opening-remarks-by-secretary-of-state-designate-marco-rubio-before-the-senate-foreign-relations-committee / [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

[5] Lukyanov, F.A., 2025. Downward. Russia in Global Affairs, 23(1). Disponível em: https://eng.globalaffairs.ru/articles/downward-lukyanov// [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

[6] Sushentsov, A.A., 2023. The Crumbling of the World Order and a Vision of Multipolarity: The Position of Russia and the West. Clube de Discussão Valdai, 20 de Novembro. Disponível em: https://valdaiclub.com/a/highlights/the-crumbling-of-the-world-order-and-a-vision/ [Acedido em 31 de janeiro de 2025].

[7] XVI Cimeira dos BRICS, 2024. Declaração de Kazan. Reforço do Multilateralismo para um Desenvolvimento e Segurança Globais Justos. Kazan, Federação Russa, 23 de Outubro. Disponível em: https://cdn.bricsrussia2024.ru/upload/docs/Kazan_Declaration_FINAL.pdf?1729693488349783 [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

[8] Putin, V., 2020. Recordar o Holocausto: Fórum sobre a luta contra o antissemitismo. 23 de Janeiro. Presidente da Rússia. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/62646 [Acedido em 31 de janeiro de 2025].

[9] Putin, V., 2025. Conferência de imprensa após as conversações russo-iranianas. 17 de Janeiro. Presidente da Rússia. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/76126 [Acedido em 31 de Janeiro de 2025].

 https://www.odiario.info/a-onu-deve-de-novo-tornar/

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