sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

João Lopes - Na solidão de Gene Hackman


Opinião

* João Lopes
 
28 Fev 2025, 00:46
 
Como nos lembramos de um ator? Ao saber da morte de Gene Hackman, contava 95 anos, pensei no seu papel, secundário, mas muito significativo, em Lilith (1964), obra-prima de Robert Rossen. O seu diálogo com Warren Beatty envolve as questões com que este supostamente se confronta no asilo de loucos em que trabalha como assistente, em particular na maneira de lidar com as mulheres aí recolhidas. Muito antes do simplismo moralista que o politicamente correto instilou nas nossas vidas, Hackman expõe uma monstruosidade especificamente masculina, sem nunca perder aquela bonomia bem-disposta que nos aproxima dele e, de algum modo, nos mobiliza - é tudo muito sereno e infinitamente perturbante.

Não haverá muitos que como ele tenham sabido expor, assim, com tal rigor e depuração, as contradições de que somos feitos - e a resistência a percebermos como somos feitos. Sem qualquer preocupação exaustiva, e para lá dos Óscares que ganhou - em Os Incorruptíveis contra a Droga (William Friedkin, 1971) e Imperdoável (Clint Eastwood, 1992), respetivamente como ator principal e secundário -, lembro o seu misto de transparência e mistério em filmes tão diversos como O Espantalho (Jerry Schatzberg, 1973), Um Lance no Escuro (Arthur Penn, 1975), Uma Outra Mulher (Woody Allen, 1988), Mississípi em Chamas (Alan Parker, 1988), A Firma (Sydney Pollack, 1993), O Golpe (David Mamet, 2001)... sem esquecer os seus invulgares dotes de comédia, por exemplo em Casa de Doidas (Mike Nichols, 1996).



'O Vigilante' (1974), ou a tragédia do poder. FOTO: D.R. / Arquivo

Há um filme algo esquecido de Francis Ford Coppola que pode simbolizar o prodigioso talento de Hackman. Chama-se no original The Conversation (1974), tendo sido lançado entre nós como O Vigilante. Inspirado em algumas personagens verídicas, o argumento, da autoria do próprio Coppola, dá-nos a conhecer Harry Caul, figura enigmática, fechada sobre si mesma, que trabalha numa equipa de sonoplastas que aceitam “encomendas” para efetuar escutas da vida privada de outras pessoas.

O filme não pode ser desligado de um contexto de acelerada transfiguração das vidas humanas pela evolução tecnológica, para mais contaminado por múltiplas formas de descrença política - e escusado será sublinhar que as suas inquietações não desapareceram neste nosso século XXI. Era o tempo em que os cartazes dos filmes não receavam usar frases relativamente longas e não resisto a lembrar a de O Vigilante: “Harry Caul é um invasor da privacidade. O melhor no negócio. Consegue gravar qualquer conversa entre duas pessoas em qualquer lugar. Até agora, morreram três pessoas por causa dele.”

A certa altura, há uma cena em que Caul monta a sua parafernália numa casa de banho. Para escutar melhor, enrosca-se, literalmente, por baixo de uma prateleira... e fica ali, com os seus auscultadores, a olhar para o vazio. É bem verdade que o filme tende a ser visto como a tragédia daqueles que são escutados - o que, aliás, de acordo com a frase promocional do cartaz, possui uma lógica irrefutável. Mas sinto sempre que essa visão “apaga” aquilo que temos ali mesmo, à nossa frente: a solidão irredutível do homem que escuta.

Dito de outro modo: O Vigilante é também um filme sobre a dispersão de uma personalidade no interior de um sistema de poder por ele servido, tanto quanto por ele desconhecido. Não que tal dispersão desresponsabilize Caul - longe disso. Acontece que ele serve um poder que, através do imponderável da tecnologia, tende a rasurar a própria noção de responsabilidade.

Hackman foi esse ator, capaz de encarnar personagens na fronteira da dimensão humana, à deriva no interior de um espaço social incapaz de os libertar de tão cruel solidão. Apesar de parco nas palavras, há um momento em que Caul discute com um dos colegas o valor da curiosidade na atividade dos humanos. Diz ele: “Se há uma regra segura que aprendi neste negócio é que não sei nada sobre a natureza humana. Não sei nada sobre a curiosidade, não tem nada a ver com aquilo que faço.”

Jornalista   
https://www.dn.pt/opiniao/na-solid%C3%A3o-de-gene-hackman

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