Opinião
* Daniel Oliveira
Nos EUA, o tempo passado a socializar presencialmente caiu mais de 20% em 20 anos. Na Europa, os jovens que não socializam uma vez por semana passaram de um em cada dez para um em cada quatro. O efeito político deste século antissocial é o crescimento da extrema-direita. Porque a solidão e o isolamento reforçam a crença na ameaça externa. É necessário retirar a oligarquia tecnológica do volante e reconstruir o espaço público como espaço de encontro físico. Salvar o que de humano existe na humanidade
Os pais de Sewell Setzer, um adolescente suicida, processaram uma plataforma online. Conta a família que o jovem de 14 anos passou os últimos dez meses da sua vida em diálogo com bots criados por Inteligência Artificial, a quem contava tudo, incluindo os problemas de saúde mental que escondia dos pais.
Os processos contra estas empresas avolumam-se, com relatos de casos em que estes “amigos” fictícios disseram a um jovem para matar os seus pais depois deles terem limitado o tempo de telefone, ou com conselhos agravam o risco de anorexia. Os utilizadores destas plataformas passam, em média, 93 minutos diários à conversa com bots e a maior destas plataformas, a Character.AI, tem dezenas de milhões de utilizadores. A forma como a empresa anuncia os seus serviços é esclarecedora: “converse com milhões de personagens de IA a qualquer hora e em qualquer lugar. Bots de conversação superinteligentes que o ouvem, o compreendem e se lembram de si”.
No século antissocial, como lhe chamou Derek Thompson, num magnífico e detalhado trabalho jornalístico na revista “The Atlantic”, essas promessas encontram um eco crescente em milhões de pessoas desligadas fisicamente de qualquer rede de amizade.
Um estudo anual do Departamento de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostra que o tempo passado a socializar presencialmente caiu, entre 2003 e 2023, mais de 20%. Um declínio superior a 35% entre homens solteiros e jovens com menos de 25 anos. O fenómeno não é episódico nem resulta apenas da pandemia. A tendência é anterior e continua a acelerar. Na Europa é igual: nos últimos vinte anos, os jovens europeus que não socializam uma vez por semana passaram de um em cada dez para um em cada quatro. Os adolescentes e jovens na casa dos vinte têm hoje os mesmos níveis de socialização presencial que as pessoas com mais de 30 anos tinham há apenas uma década ou duas.
O isolamento reflete-se até nos hábitos mais banais. Nos EUA, o número de reservas para apenas uma pessoa efetuadas em restaurantes cresceu 29%. Um estudo recente de Patrick Sharkey, sociólogo da Universidade de Princeton, concluiu que os americanos passam mais 99 minutos em casa, a cada dia da semana, quando comparado com 2002. Para onde quer que olhemos, há sinais de que a sociedade se está a reorganizar para que cada um possa viver no seu casulo, sem precisar de interagir presencialmente com ninguém.
A falta de interação social tem consequências devastadoras. Um jovem que cresce sem um espaço real para partilhar emoções, dúvidas e frustrações é presa fácil da ansiedade, da depressão e da baixa autoestima. O aumento do tempo passado sozinho correlaciona-se diretamente com o declínio da satisfação com a vida entre jovens adultos nos últimos 15 anos, como indica o Financial Times com uma profusa sucessão de gráficos e dados. E os jovens até aos 30 anos sabem-no. As atividades que lhes consomem cada vez mais tempo, como os jogos e interação online, são exatamente a que eles indicam como dando-lhes menor satisfação.
Adolescentes e jovens estão presos numa armadilha digital que os condiciona a repetir um comportamento que os faz sentir pior. Como acontece com qualquer adição. Porque a economia digital da atenção é orientada por algoritmos desenvolvidos para hiperestimular o cérebro e ativar o seu circuito de recompensa através da libertação de dopamina. E é uma adição coletiva e é como tal que temos de a enfrentar.
UM EXÉRCITO DE SOLITÁRIOS FURIOSOS
Os efeitos deste século antissocial não se ficam pelo seu impacto no bem-estar e saúde mental, especialmente dos mais jovens. Quando milhões passam pelo mesmo processo, os impactos tornam-se políticos. A frustração acumulada, a ausência de conexões reais e a perceção de que o mundo os abandonou fazem crescer uma raiva latente que se transforma em ressentimento. E essa raiva, explorada pela extrema-direita, ajuda a explicar a atração da juventude pela desumanização do outro. Indivíduos isolados têm maior predisposição para culpar terceiros pela sua insatisfação e a desenvolver atitudes agressivas em relação a grupos que percecionam como “inimigos”. Esta predisposição para procurar bodes expiatórios e abraçar teorias da conspiração é amplificada pelos algoritmos das redes sociais, que apresentam conteúdos cada vez mais polarizados e extremados.
Michael Bang Petersen, um cientista político dinamarquês citado pela “The Atlantic”, diz que são os que tendem a sentir-se socialmente isolados que mais reforçavam uma necessidade de caos e destruição. A política deixa de ser um exercício de construção e passa a ser um palco de destruição. O outro não é um adversário, mas um inimigo. E quando a única via de escape parece ser a implosão do sistema, o populismo radical oferece exatamente isso: um refúgio emocional, uma catarse coletiva, a promessa de que o caos será a resposta para a dor.
Um estudo recente, desenvolvido por investigadores da Universidade de Amesterdão e Instituto de Psicologia Leibniz, com 41 mil participantes de nove países europeus, indica que os solitários têm uma maior propensão para apoiar a extrema-direita. A solidão e o isolamento reforçam o sentimento de alerta e a crença na ameaça externa, gerando indivíduos mais recetivos ao discurso nativista (que vê imigrantes e minorias como ameaças) e populista (que culpa as elites políticas e económicas). A oferta de uma ideia de comunidade, que se vem perdendo com o declínio das formas tradicionais de intermediação como a religião, sindicatos e estruturas associativas, cria um sentimento de pertença atraente para quem se sente isolado.
O mecanismo pode ser bidirecional: a solidão tanto pode aumentar a predisposição para apoiar a extrema-direita, como ser o apoio a grupos radicais aumentar o isolamento social, devido à estigmatizarão social dos apoiantes desses grupos. É um ciclo dinâmico, onde fatores emocionais e políticos se alimentam mutuamente.
Tenho defendido de forma crescentemente empenhada a necessidade de limitar os telefones nas escolas. Faço-o, consciente que a dopamina libertada pela economia da atenção das redes sociais limita a capacidade de atenção necessária para pensamentos complexos, mas também para impedir que as crianças cresçam sem desenvolver interações sociais reais. Os dados que começam a surgir nos revelam que temos de o fazer também para proteger o bem-estar da comunidade. Ou enfrentamos o problema de frente, ou entregamos o futuro a uma geração de jovens isolados, viciados em dopamina digital e prontos para se agarrar à primeira ideologia que lhes oferecer um sentido de pertença – mesmo que esse sentido venha embrulhado em ódio. Se não reconstruirmos o tecido social, a extrema-direita fá-lo-á por nós.
De pouco vale tentar travar a extrema-direita e o ódio se não retomarmos os espaços de socialização que nos permitem viver em comunidades empáticas. A radicalidade democrática passa pelo desmame, no espaço escolar e familiar, de uma adição coletiva feita para nos escravizar. A começar pelos nossos filhos e netos. Depois, pela regulação da IA e das redes, retirando a oligarquia tecnológica do volante das nossas sociedades. Por fim, a reconstrução do espaço público como espaço de encontro físico. Tudo isto seria absolutamente revolucionário. E já não se trata de construir um mundo novo, mas de salvar o que de humano existe na humanidade.
(Expresso 2025 02 12)
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