segunda-feira, 30 de março de 2009

Às vezes julgo ver nos meus olhos - Sophia de Mello Breynner

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Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.

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Sophia de Mello Breyner Andressen
"Obra Poética I" - Círculo de Leitores

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domingo, 29 de março de 2009

PARA SEMPRE - Carlos Drummond de Andrade

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* Carlos Drummond de Andrade
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Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

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Enviado poe Moranguihno Pereira (HI5)
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Poesia - Mário Quintana e Miguel Torga

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Mário Quintana - poeta brasileiro

http://caminhodosversos.blogspot.com/2007/03/os-poemas.html

SEGREDO

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...


Miguel Torga

http://fumacas.blogspot.com/2003_07_01_fumacas_archive.html

click to comment
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Enviado por Gioconda do Porto (hi5)
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29/Mar 14:20
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Domingo, Março 26, 2006


Eugénio de Andrade: uma casa que fosse um areal



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Música de Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone, executada ao piano por Joel Bello Soares


O LUGAR DA CASA

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade, o Sal da Língua

http://www.fundacaoeugenioandrade.pt

Mãe - Miguel Torga - Data: 28/Mar 22:51

EM HONRA DA MINHA MÃE - 28 DE MARÇO DE 2009...15 HORAS.

MÃE

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

MIGUEL TORGA

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Ennviado por Moraguinho Pereira (hi5)

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NUMA NOITE... - António Rebordão Navarro

NUMA NOITE... )

Numa noite em que nasciam
crianças aos milhares
e outras morriam sem assistência médica
e outras morriam brincando com bombas
e outras morriam esmagadas
por fugitivos automóveis;
numa noite de Inverno,
numa noite de névoa
sobre os barcos sem equipagem junto ao rio;
numa noite de ruas desertas e casas fechadas
aos que andavam perdidos e sozinhos,
três poetas sentaram-se a uma mesa
e decretaram a paz e a alegria

E decretaram a paz
para os que, cabelos soltos nas mãos das noites frias,
viviam na cidade onde agora estavam,
respiravam o mesmo ar
e liam as mesmas notícias dos jornais.
E decretaram a paz
para os que tinham
os olhos riscados pelos dedos do medo.
E decretaram a paz
para os que traziam
a angústia dos dias misturada no sangue.
E decretaram a alegria
para as crianças que estavam nascendo em todo o mundo.
E decretaram a alegria
para as jovens que sentiam os seios despontar.
E decretaram a alegria
para as mulheres que eram mães.
E decretaram a alegria
para todos os seres.

Foi então que Jesus Cristo
nascido há quase mil
novecentos e sessenta anos,
sorriu no céu que cobria a mesa
onde três poetas se tinham sentado
para decretar a paz e a alegria.
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Enviado por Moranguinho Pereira (hi5)
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Poema - Ana Hatherly

( SEM TÍTULO )

Um poeta barroco disse:

as palavras são

as línguas dos olhos

Mas o que é um poema

senão

um telescópio do desejo

fixado pela língua?

O voo sinuoso das aves

as altas ondas do mar

a calmaria do vento:

Tudo

tudo cabe dentro das palavras

e o poeta que vê

chora lágrimas de tinta


ANA HATHERLY
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Enviado por Moranguinho Pereira (hi5)
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sábado, 28 de março de 2009

Poema - Fernando Pessoa


POEMA

O céu, azul de luz quieta.
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa
Pontos de dedos a brincar.

No piano anónimo da praia
Tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saía
Todo o sentido deste dia.

Que bom se isto satisfizesse!
Que certo se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.

(Fernando Pessoa in Cancioneiro)
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Enviado por Gioconda Porto (hi55)
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O GUARDADOR DE REBANHOS - Alberto Caeiro

From Moranguinho Pereira
O GUARDADOR DE REBANHOS

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.



Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento..


ALBERTO CAEIRO
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Enviado por Moranguinho Pereira (hi5)
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quinta-feira, 26 de março de 2009

Poema de Alexandre O ´Neill

From Moranguinho Pereira
( SEM TÍTULO )

Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas «de amor, de amor».

À parte aquelas
trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.

ALEXANDRE O'NEILL
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Enviado por Moranguino Pereira (hi5)
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Sem título - - Adelina Gomes

( SEM TÍTULO )

"Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como bonita,
as pessoas diziam-lhe:-
Eu amo-te.

E iam com ela para a cama e para a mesa.


Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:


- Não gosto de ti.


E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.


A mulher pediu a Deus:


- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.


Então Deus fê-la feia.


A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona


e a ouvir coisas feias.


Só os animais gostavam sempre dela,


tanto quando era bonita como quando era feia


como agora que era sempre feia.


Mas o amor dos animais não lhe chegava.


Por isso deitou-se a um poço.


No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.


a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.


cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe,


descobriram a mulher dentro do peixe.


o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou,


e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher,


e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado,


a mulher não morreu e o peixe morreu.


As criadas e o rei eram muito bonitos.


E a mulher ali era tão feia que não era feia.


Por isso, quando as criadas foram chamar o rei


e o rei entrou na cozinha e viu a mulher,


o rei apaixonou-se pela mulher.


- Será uma sereia ?


perguntaram em coro as criadas ao rei.


- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas,


muito tortas, uma mais curta do que a outra ,


respondeu o rei às criadas.


E o rei convidou a mulher para jantar.


Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe.


O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:


- Eu amo-te.


Quando o rei disse isto, sorriu à mulher,


e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça.


A mulher apanhou a azeitona e comeu-a.


Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:


- Eu amo-te.


Depois comeu a azeitona.


E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar."

ADÍLIA LOPES
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POEMA DA AMANTE - Adalgisa Néry

POEMA DA AMANTE

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

ADALGISA NERY
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E de súbito desaba o silêncio - Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade (1923 - 2005)

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

de Coração do Dia
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Enviado por Gioconda do Potrto (hi5)
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http://nadirzenite.blog.com/
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Eu te amo - Adalgisa Néry

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

ADALGISA NERY
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Paixão Secreta - Rabindrath Tagore

PAIXÃO SECRETA

Acordei com os primeiros pássaros,
já minha lâmpada morria.
Fui até à janela aberta e sentei-me,
com uma grinalda fresca
nos cabelos desatados...
Ele vinha pelo caminho
na névoa cor de rosa da manhã.
Trazia ao pescoço
uma cadeia de pérolas
e o sol batia-lhe na fronte.
Parou à minha porta
e disse-me ansioso:
— Onde está ela?
Tive vergonha de lhe dizer:
— Sou eu, belo caminhante,
sou eu.

Anoitecia
e ainda não tinham acendido as luzes.
Eu atava o cabelo, desconsolada.
Ele chegava no seu carro
todo vermelho, aceso pelo sol poente.
Trazia o fato cheio de poeira.
Fervia a espuma
na boca anelante dos seus cavalos...
Desceu à minha porta
e disse-me com voz cansada:
— Onde está ela?
Tive vergonha de lhe dizer:
— Sou eu, fatigado caminhante,
sou eu.

Noite de Abril.
A lâmpada arde neste meu quarto
que a brisa do Sul
enche suavemente.
O papagaio palrador
dorme na sua gaiola.
O meu vestido é azul
como o pescoço dum pavão,
e o manto verde como a erva nova.
Sentada no chão, perto da janela,
olho a rua deserta ...
Passa a noite escura
e não me canso de cantar:
— Sou eu, caminhante sem esperança,
sou eu.

RABINDRANATH TAGORE
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Enviado por Moanguinho Pereira (hi5)
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quarta-feira, 25 de março de 2009

Guerra Junqueiro há 112 anos ...ou ontem???

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (...).


Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta ate à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida intima, descambam na vida publica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na politica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (...).


Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo, este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do pais, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre - como da roda duma lotaria. A justiça ao arbítrio da Politica, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.


Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...) vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar (...)."



--
LL
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Enviado em seg 23-03-2009 22:02
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POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO . Alexandre O'Neiil


maria diz:
25/Mar/2009 5:36
Então isto são horas dos cotas estarem levantados? (desculpa, não leves a mal)

POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

«O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
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Enviado por Guilhermina Abteu (hi5)
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Marx, teorias das crises do capitalismo e a posição dos comunistas (3)




21 DE MARÇO DE 2009 - 18h55

Marx, teorias das crises do capitalismo e a posição dos comunistas (3)


por Sérgio Barroso*

“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva... (...) acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial... (...) Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises... (...) levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3) [1].


Prosseguindo no enfoque mais teórico, vimos nas duas primeiras partes desta série que, segundo Marx, a) mutantes, o capital-dinheiro, o capital-mercadoria e o capita-produtivo formam as “três figuras do ciclo”, isto querendo dizer que são distintas as formas que o capital assume, mantendo-se a unidade do ciclo; b) nas crises do capitalismo - que se expressam regularmente nos fenômenos de superprodução, lei da tendência de queda da taxa de lucros e desproporção entre os departamentos -, a manifestação em uma de suas esferas (como agora, na financeira) é inseparável da dinâmica do ciclo global do capital.


Quer dizer, não há sentido algum apartar a esfera financeira da produtiva (circulação e produção), ou falar-se que “a crise não é só financeira, é econômica”, do ponto de vista do modo de produção capitalista. Dito de outro modo, a existência contínua das três formas referidas decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases.


Mas o mesmo não se pode dizer da “autonomização” que realiza o capital financeiro enquanto formas distintas: a) de capital portador de juros; b) de capital fictício. Por que, como assim?


“Da totalidade do capital destaca-se e se torna autônoma determinada parte, na forma de capital-dinheiro [capital portador de juros], tendo a função capitalista de efetuar com exclusividade essas operações para toda a classe dos capitalistas industriais e comerciais” (Marx, idem, p. 363).


E notadamente porque, hoje - analisa Robert Guttmann -,
“(...) o capitalismo dirigido pelas finanças tem dado prioridade ao capital fictício, cujos novos condutos, com derivativos ou valores mobiliários lastreados em ativos, estão a vários níveis de distância e qualquer atividade econômica real de criação de valor. Nessa esfera, o objetivo principal é negociara ativos de forma lucrativa para obter ganhos de capital, uma atividade bem mais definida como especulação” [2].


Financeirização, crises e tipologias


Com a grande crise capitalista atual [3], não à toa a categoria “financeirização” da riqueza capitalista, assim como sua mediatizada relação com as crises financeiras mais recorrentes vêm assumindo um nível mais elevado de teorização.


Num artigo do economista brasileiro – e pioneiro na utilização do conceito – José Carlos Braga, as ideias centrais que sustentam sua nova formulação - “Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças” [4] -, enfatizam não só ser a crise da natureza do capital e do capitalismo desregulado. Para Braga não há “nenhuma deformação, nenhum desvio da essência do processo de acumulação”, seja pela via da acumulação produtiva, seja pela “articulação daquela com a acumulação financeira e da autonomização dessa última”. Isto porque, em palavras mais diretas,


“A dinâmica da valorização imobiliária e seu fenecimento que está na origem da crise atual expressou a extensão da globalização financeira e a intensificação da financeirização das economias” (idem)


Sob ângulo similar, temática que comparece em entrevista com o destacado economista cubano Oswaldo Martínez. Em sua opinião, uma das principais características da economia capitalista contemporânea diz respeito a

“um nível de financeirização da economia mundial enormemente superior também. (…) Hoje a especulação financeira alcança uma sofisticação imensa, e essa sofisticação é por sua vez um dos pontos débeis, quer dizer, fazem operações especulativas tão sofisticadas, arriscadas, irreais, e tão fraudulentas, que se encontra na base da explosão financeira que tem ocorrido” [5].


O que significa que as formulações de Braga e Martínez convergem, essencialmente, para uma outra conclusão de Guttmann, no ensaio acima referido:


“Mas agora este sistema está em crise. É verdade, o capitalismo dirigido pelas finanças sempre teve uma propensão a crises financeiras em momentos fundamentais de sua expansão territorial ao trazer economias até então dirigidas pelo Estado para a órbita da regulamentação do mercado...” [6].


É fundamental, no entanto, perceber que as características da dinâmica capitalista, previstas na teoria de Marx, apontam a relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e do moderno sistema de crédito com as formas assumidas pelas crises. Por exemplo, a crise atual, de excepcionais dimensões e ainda em seu desenrolar de grandes perplexidades, chama a atenção de Guttmann exatamente porque,


“(...) como sempre acontece com crises financeiras importantes, esta também tem características únicas. Particularmente surpreendentes têm sido a velocidade, o alcance e a ferocidade das rupturas... (...) Uma crise de tais dimensões acontece muito raramente...” – prossegue ele ao acrescentar a destruição do sistema bancário dos EUA, de atuação global (Guttmann, idem).


Altvater, Hobsbawm e Marramo: críticas das crises e da “teoria del derrumbe”


A esse respeito, análise da rigidez – e dogmatismo, afirmaria - de uma certa tipologias das crises do capitalismo foi examinado num célebre ensaio do alemão Elmar Altvater [7]. Assim, para ele, as “teorias das crises” existentes não seriam capazes de reproduzir conceitualmente a complexidade dos processos de crise, tampouco servirem para dar conseqüência a “projetos políticos adequados”. A teoria do “desequilíbrio ou desproporção” dos departamentos não captaria a “contraditoriedade social expressa na valorização do capital”; as teorias do “subconsumo” seriam a representação de um modelo do ciclo capitalista “bastante simplificado”, constituindo uma variante da “teoria do colapso ou da impossibilidade” sistêmica de uma nova fase de acumulação; a do colapso de H. Grossmann incapaz “absolutamente, de compreender o capitalismo como sistema social”; a do russo E. Varga, uma teoria subconsumista “aperfeiçoada com elementos extraídos da teoria da superacumulação”, que impossibilitaria – imagina Altvater – igualmente “uma regeneração temporária com o auxílio da crise”.


Concordando com as “teses” de Altvater, acrescento, essencialmente, que, seguindo a interpretação marxiana, Lênin (1897), após implacável rechaço da visão “subconsumista” como produtora de crises capitalistas, sentencia acerca da configuração contraditória da produção capitalista:


“Pelo contrário, se explicamos as crises pela contradição entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação, reconhecemos com isso a realidade e o caráter progressivo do caminho capitalista (...)”. [8] Isto significa dizer – afirma a seguir Lênin – que a versão subconsumista das crises “vê a raiz do fenômeno fora da produção”; a teoria de Marx “a vê precisamente nas condições da produção” (idem, p. 98).


De outra parte, não é à toa que o historiador marxista Hobsbawm foi buscar na grande contribuição de Lênin a ideia de que é uma farsa a “teoria el derrumbe del capitalismo”, a partir da correlação finalística “crise-catástrofe-colapso”, imputada à sua teoria. Dissertou ele:


“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o imperialismo, não foi, evidentemente, “a etapa final” do capitalismo; mas, à época, Lênin nunca afirmou realmente que fosse. Simplesmente a denominou, na primeira versão de seu influente escrito, “a última etapa” do capitalismo” [9]. Até porque – enfatiza o historiador – todas as tentativas de isolar a explicação do imperialismo do “desenvolvimento específico do capitalismo no fim do século 19” não passam de “exercícios ideológicos” (idem, p. 110).


Sob ângulo similar, o marxista italiano Giacomo Marramo quando do vasto exame do debate marxista, dos anos 1920-30, sobre as “vicissitudes da ‘teoria do colapso’”, destaca o erro grosseiro dos que não distinguiam e faziam “referências indevidas entre o ‘plano lógico’ e o ‘plano histórico’ (exposição científica das leis tendenciais e movimento real), tanto na defesa como na crítica da análise marxiana do capitalismo” [10].

A única “catástrofe”: degradação ou destruição do trabalho

À guisa de conclusão desta parte: na grande e grave crise capitalista que vivenciamos nestes dias, a única “catástrofe” que se apresenta até agora - diferentemente do que o próprio Hobsbawm denominou com absoluto acerto de “Era da Catástrofe”, ao analisar a época que vai da Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial, passando pela desgraça da ascensão do nazismo -, é o desemprego em massa que se espraia sobre as massa trabalhadoras, em escala mundial. De resto, uma gigantesca queima de capital (Marx) que, esperemos, jogue na falência e na bancarrota completa quantos burgueses seja possível. Reafirmemos então:

“a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o trabalhador” [11].
E, de novo estejamos completamente de acordo com o grande Lênin contra os dogmáticos:

“Pelo momento, é necessário assimilar a verdade indiscutível de que um marxista deve tomar conhecimento da vida real, dos fatos exatos da realidade, e não aferrar-se a uma teoria de antigamente, que, como todas as teorias, em seu sumo só esboça o fundamental e o geral, só se aproxima a abarcar a vida em sua complexidade” [12].

Trata-se, portanto, de não recusar a luta de idéias contra “um certo marxismo”, que desinforma quando simplifica grosseiramente a interpretação da crise capitalista atual com sendo “crise de superprodução e do crédito”; ou considerar que “uma crise da ‘financeirização’” é “unilateralismo”, pois a crise não é só financeira, “apesar da relevância dos problemas nesta esfera”; ou, pior ainda, creditar a Marx a ideia de que a crise do capitalismo ocorre quando “a interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da venda de mercadorias...”.


Isso aí é marxismo fossilizado e incapaz, que, além, nos remete a recordar a sátira de Engels, exposta a dado passo no “Anti-Dühring”, certeiramente, contra o dogmatismo: ignorância não é argumento!


No próximo artigo veremos a discussão da evolução da crise e seus enfrentamentos táticos e estratégicos pelos comunistas.


Notas


[1] Volume 5, p. 510, Civilização Brasileira, s/data.


[2] Antes, argumentara em seu importante ensaio “Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças”: “As finanças foram profundamente transformadas por uma combinação de desregulamentação, globalização e informatização. Este impulso triplo transformou um sistema financeiro estritamente controlado, organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto-regulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de investimento (corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição pública com intermediário] de valores mobiliários). A preferência por mercados financeiros em vez de finanças indiretas utilizando bancos comerciais foi em grande parte facilitada pelo surgimento de fundos (fundos de pensão, fundos mútuos e, mais recentemente, fundos de hedge e de participações) como compradores chave nesses mercados (in: Revista Novos Estudos, CEBRAP, nov. 2008).


[3] Em nossa opinião sincroniza-se forte movimento para uma Depressão Global, a partir da débâcle financeira dos EUA, da União Européia e do Japão, com agravamento da desaceleração nos países “em desenvolvimento” que ainda mantém perspectivas de crescimento econômico - que ameaça “arrombar a porta” e se espraiar mundo afora. Nos últimos dias, 1) seguidas revisões pioradas do crescimento econômico negativo, cada vez mais profundamente, pelo FMI (agora negativo entre 0,5% e 1%); 2) o anúncio da (inédita) compra de US$ 1,2 trilhão de seus próprios títulos do Tesouro pelo Fed (Banco Central dos EUA), refletindo a reação a uma outra tendência: desvalorização do dólar e retroalimentação da crise nos EUA. Há tensões geopolíticas em agravamento.

[4] Artigo inédito, a ser publicado na “Revista Estudos Avançados da USP”, março de 2009.


[5] Ver: “La crisis no es una anormalidad en el capitalismo”, entrevista de O. Martínez a Luisa María González García, de “CubaDebate”,14-03-2009, em: rebelión.org). O economista refere-se também à existência de processos de “superprodução” e de “sub-produção” (??).


[6] Completa adiante o raciocínio Guttmann: “Em outros termos, estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros”.


[7] Ver: “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise”, de E. Altvater, in: “História do marxismo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, Paz e Terra, 1987, 2ª edição, especialmente pp. 95-133.


[8] Ver: “Para una caraterización del romanticismo econômico. (Sismondi y nuestros sismondistas nacionales”), de V. I. Lênin, p. 104, in: “Sobre el problema de los mercados”, Escritos económicos, vol 3, Madrid, Siglo Veinteuno editores s.a., 1974.


[9] Ver: “A era dos impérios – 1871-1914”, de E. Hobsbawm, p. 27, Paz e Terra, 2003, 8ª edição

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[10] Ver: ''O político e as transformações. Crítica do capitalismo e ideologias da crise entre os anos vinte e trinta'', de G. Marramao, p. 102, Oficina de livros, 1990.


[11] Em: “Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção imediato”, Marx, p. 20, Porto, Escorpião, 1975.


[12] Em: “Cartas sobre tática”, [Petrogrado, 27 de abril de 1917, 1ª edição], in: Obras completas, Tomo XXIV, Akal Editor, 1977).




*Sérgio Barroso, Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB.



* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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In Vermelho 2009.03.21
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Marx, teorias das crises do capitalismo e a posição dos comunistas (2)



7 DE MARÇO DE 2009 - 10h32

Marx, teorias das crises do capitalismo e a posição dos comunistas (2)


por Sérgio Barroso*

“Essa mudança é chamada de financeirização. A crescente integração dos mercados financeiros em cada país e a interligação global entre as praças financeiras são necessárias às operações da gigantesca riqueza financeira atual. (...) Aumentaram os episódios das crises financeiras, como os anos de 1990 e 2000 demonstraram (Renildo Souza, “Dominação global, neoliberal e financeira”, 2008) [1].


Touro abatido em Wall Street

Algo mais teórica, esta segunda parte da série trabalha confluências da formulação do economista e professor Renildo Souza, trazendo à luz das passagens citadas três fenômenos centrais da dinâmica do regime do capital do nosso tempo: a) a fixação da categoria “financeirização” da riqueza capitalista; b) a idéia de uma imperiosidade sistêmica de interligação dos “mercados financeiros “nacionais e internacionais [2]; c) o visível aumento da frequência das crises financeiras, tipificando assim uma particularidade dessa dinâmica.

Como assinalamos no artigo anterior, encontra-se no centro das perspectivas do capitalismo, - por conseguinte para uma justa interpretação dos caminhos para os combates táticos e estratégicos dos comunistas -, a problemática da financeirização, quer dizer, da predominância avassaladora da valorização financeira no atual padrão contemporâneo de acumulação capitalista mundial, impulsionado pela liberalização e desregulamentação financeiras expandidas desde os anos 1980. Singularidades que se explicitam na marcha da grande crise atual [3], incidindo inevitavelmente nos caminhos apontados pela grande burguesia global, ainda em pânico a procura da “saída de emergência” [4].

Como veremos, contestar a financeirização (sob caprichos radicalóides), procurar desqualificá-la – análise “unilateral” - é um desserviço à ciência social [5], um saudosismo dogmático inaceitável. Simplesmente porque justifica determinações rígidas, estáticas das leis de movimento do capital, recusando o movimento do real; petrifica a teoria marxista - nunca um dogma, mas um guia para a ação, sendo a economia política uma ciência social e histórica, nas formulações de Engels.

E “revoltar-se” contra a financeirização - escrever que o que existe é uma “suposta” financeirização; ou “apesar dos problemas relevantes nesta esfera”, infelizmente é coisa pior: significa “esquartejar”, “amputar” aspectos multilaterais da teoria marxiana, pretendendo-se que passemos a andar em círculos e sufocados na crise do marxismo.
Não se trata de artificializar discrepâncias intelectuais, muito menos transformá-las em rivalidades. A obra de economia política de Karl Marx não só é complexa como necessita de uma visão do conjunto de suas teses essenciais. Aqui, o voluntarismo é letal!


Num exemplo teórico notável e obviamente contrário à “amputação” das formulações centrais do estatuto científico do marxismo, escreve o brilhante epistemólogo, português Armando Castro:


“A totalidade teórica organiza e enuncia um sistema de relações entre representações (cujo centro são as leis), permitindo chegar á explicação de um conjunto de relações com propriedades próprias e diferentes das que se reconhecem nos seus elementos interligados” [6].


Mas expliquemos isso com vagar.

O histórico e o lógico. Desconhecimento e negação da teoria de Marx

1. Numa dimensão histórica, consistem em fatos reconhecidos e fartamente analisados a regulamentação do comércio e das finanças internacionais, institucionalizada pelo sistema de Bretton Woods (1944), através das limitações aduaneiras protetivas na periferia e no centro capitalista e também por restrições ao livre movimento de capitais. O que foi sucedido pelo móvel da globalização neoliberal: essencialmente desregulamentação da produção e da circulação de mercadorias em nível internacional e dos mercados financeiros internacionais. No que se seguiu uma forte valorização da riqueza financeira, impulsionada pelos novos instrumentos (inovações financeiras) e seus mercados. A propósito, recorde-se aqui: em 2007-8 completaram-se dez anos da crise iniciada na Ásia, especificamente na Tailândia, detonada por uma onda de sucessivos ataques especulativos a várias moedas da região, fazendo desabar países (produto e emprego) que particularmente desregulamentaram liberalizaram a configuração de seus mercados financeiros.

2. Noutra, do ponto de vista teórico, as ideias de Marx, ainda do final do século XIX, sobre o caráter das crises do capitalismo, demonstraram não só ser de uma força histórica tremenda. Elas abrigam duas questões cruciais à compreensão da dinâmica sistêmica do capitalismo: a) assinalam a ruptura do ciclo ascensional, por “parada” ou bloqueio dos investimentos, com “queima de capital”; b) afirmam o imperativo da sua própria estrutura e funcionamento no movimento constitutivo e contraditório de expansão-instabilidade-crise.

Dito de outra maneira, não se trata de “problemas relevantes” na esfera financeira. Para Marx, o próprio desenvolvimento do capital e do sistema de crédito sofre, nas crises, interrupção em:

“inúmeros pontos da cadeia de obrigações de pagamento em prazos determinados, e se agravam com o consequente desmoronamento do sistema de crédito que se desenvolve junto com o capital. Assim redundam em crises violentas, agudas, em depreciações bruscas, brutais, estagnação e perturbação física do processo de reprodução e, por conseguinte em decréscimo real da produção” (Marx, “O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 292, Civilização Brasileira, s/ data).

Hodiernamente, na medida em que o “capital portador de juros” (Marx) passou a ser o motor das operações financeiras na ascensão do neoliberalismo, assim como foi promotor de uma época crônica de instabilidade e crises financeiras mais frequentes, importa acentuar que:

“Sob o aspecto qualitativo, o juro é mais-valia, proporcionada pela nua propriedade do capital, pelo capital em si, embora o proprietário esteja fora do processo de reprodução; é mais-valia que o capital rende, dissociado de seu processo” (Marx, Livro 3, v. 5, Cap. XXIII, p. 434) [7].

Como assim, “dissociado”? É que, no processo de valorização do capital portador de juros,

“O ciclo D...D’ entrelaça-se com a circulação geral de mercadorias, sai dela e nela entra e é parte dela. Entretanto, constitui, para o capitalista individual, movimento próprio autônomo do valor-capital, movimento que se efetua parte na esfera da circulação geral de mercadorias e parte fora dela, mas conservando sempre seu caráter autônomo” (Marx, “O Capital”, Livro 2, v. 3, p. 57).

Para que não deixar qualquer dúvida, mais enfaticamente diz ele ainda sobre a especificidade do capital portador de juros e sua relação com a tendência à superacumulação capitalista:

“Assim, o ciclo do capital-dinheiro é a forma mais exclusiva, mais contundente e mais característica de manifestar-se o ciclo do capital industrial. O objetivo e o motivo propulsor deste nele saltam aos olhos: expandir o valor, fazer dinheiro e acumular (comprar, para vender mais caro)”. (Marx, idem, p. 60).

No entanto - recordando a poderosa interpretação dialética de Marx (“As três figuras do ciclo”) do movimento do capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital produtivo, referidas no artigo anterior -, é absolutamente imprescindível que assim compreendamos a totalidade desse movimento:

“Mas, cada parte ininterrupta e sucessivamente de uma fase, [pode passar] de uma forma funcional para outra. As formas são portanto fluidas e sua simultaneidade decorre de sua sucessão”. “(...) Só na unidade dos três ciclos se realiza a continuidade do processo global... O capital global da sociedade possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a unidade dos três ciclos” (Marx, idem, p. 107).

3. E numa dimensão conceitual: a) François Chesnais [8], insistindo, diz que o “predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do “capital-dinheiro concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema capitalista mundial, “acentuou o processo de financeirização crescente dos grupos industriais”; b) aliás, segundo Peter Gowan, a estratégia original do grande capital financeiro norte-americano e britânico, impunha a inflação baixa para manter a função da moeda “como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses do capital-dinheiro”, tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do neoliberalismo do Atlântico” [9]; c) porém, em sua dinâmica concreta, ou seja, na macroestrutura financeira desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se operações monetário-financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições (bancos centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas); operando em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas, dos ativos, gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando “as transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional, direcionando a ‘poupança financeira’ e a liquidez internacional” – descreveu esclarecedoramente o professor Braga [10]; d) ou seja, trata-se de “um padrão sistêmico – “poder da riqueza financeirizada”, destaca Renato Rabelo -, que impõe a sua lógica a tudo, na distribuição de renda, na própria definição da política salarial e dos direitos trabalhistas” [11]; e) padrão sistêmico esse neoliberal que, por sua feita, determinou as últimas décadas “como as mais tumultuosas da história monetária internacional, em termos de número, escopo e gravidade das crises financeiras” – enfatizam Kindlerberger e Aliber, [12]

Superacumulação e crises financeiras

Vê-se que a globalização financeira adveio da liberalização do movimento de capitais e transposição de fronteiras econômicas. Cada vez mais intensa, a instabilidade do sistema tende a ser permanente, obstando a taxa de investimento, o que pode reduzir o ritmo da acumulação e do crescimento econômico no centro capitalista e em parte da periferia do sistema.

Assim, as crises financeiras desse estágio do capitalismo monopolista - e fortemente oligopolizado do ponto de vista do poder financeiro -, mantêm a mesma lógica - numa vertente fortemente influenciada pelo caráter fictício da acumulação financeira - da crise de superprodução, refletindo o excesso de valorização do capital em relação à determinada taxa de juros. Mas se exacerbam alguns traços típicos da crise capitalista, como a rapidez da propagação e a recorrência. O que significa dizer: as crises se tornam mais frequentes, por conta do aumento da especulação e do volume na acumulação fictícia; o que, por sua vez é decorrente da quantidade das transações com ativos financeiros, cada vez mais abrangentes, se propagando mais rapidamente pelos mercados nacionais e alcançando facilmente regiões inteiras ou mesmo o mundo.

Observe-se: divulgou-se em 2008 que a relação entre a riqueza (fictícia) nocional financeira (aquela que é alavancada e derivativa; pode chegar a valer de acordo como que valha no futuro câmbio ou juros) seria de US$ 350 trilhões, enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) dos países do planeta alcançaria US$ 56 trilhões [números redondos e aproximados].

De outra parte, na direção oposta dos que ainda insistem na tese da “estagnação” como produtora de “financeirização”, escreve Marx, desvelando já então um aspecto estrutural (e contemporâneo!) que integra as crises financeiras:

“Esse capital fictício reduz-se enormemente nas crises, e em conseqüência o poder dos respectivos aos proprietários de obter com ele no mercado. A baixa nominal desses valores mobiliários no boletim da Bolsa não tem relação com o capital real que representam, mas tem muito que ver com a solvência do proprietário” [13]. Em definições mais precisas, (i) Marx alude a dois tipos de capital financeiro: o portador de juros e o fictício; (ii) o capital fictício consistindo em títulos negociáveis no futuro (para ele composto por ações ordinárias das Bolsas, títulos públicos e a própria moeda de crédito (bancária) [14].

Um parêntesis pertinente. Trata-se de um nítido exemplo recente de que não é a estagnação que produz a financeirização, quando examinamos a experiência da longa estagnação japonesa (1990-2002). 1) Conforme o especialista Ernani Torres Filho, entre 1983 e 1991 - exatamente o período que antecede a grande crise do país -, o crescimento médio da economia japonesa foi de 4,4%, bem maior que o dos EUA (3,0%) ou da Alemanha (3,1%). O período que vai de 1992 a 1995 – exatamente no período que o Japão afundava na estagnação -, esse crescimento foi de 0,7%, o dos EUA 3,2%, o da Alemanha 1,1% [15]. 2) Para se ter ideia do custo fiscal do Japão para enfrentar a estagnação, deflagrada com a desvalorização de riqueza e a deflação, posteriores à especulação da bolsa de valores e de imóveis, ele foi estimado em 20% do PIB, contando apenas a partir dos anos 1992 a 1995 [16].

Estamos afirmando então que, para Marx – e não para mutiladores de sua obra disfarçados de radicais -, simultaneamente se processa: a) a acumulação de capital à base da apropriação do trabalho excedente; b) a taxa de lucro induzindo a taxa de juros; c) o capital portador de juros gestando capital fictício. Isso conduza a um vetor que se relaciona com a busca incessante de valorização do valor, para a qual a especulação passa a ser intrínseca ao desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Especulação, que, de acordo com uma formulação (impressionante) de Marx é conseqüência do desenvolvimento do sistema de crédito e lucro a partir dos juros, e:

“Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema completo de especulação e embuste no tocante à incorporação das sociedades, lançamento e comércio de ações” [17].

Ademais, um processo especulativo (e cíclico) que se vincula também claramente à deflagração de crises:

“Quem precisa de uma casa nova escolhe-a entre as construídas para especular... Levantam-se recursos por meio de hipotecas, e o empresário vai recebendo dinheiro na medida em que anda a construção das diversas casas. Sobrevindo uma crise que paralise o recebimento das cotas devidas..., na pior [das hipóteses], são penhoradas e vendidas pela metade do preço” [18].

Superacumulação e Lei da Tendência de Queda da Taxa de Lucro

Pensamos ter ficado (razoavelmente) compreensível a correlação anunciada ainda na primeira parte, entre valorização do valor e superacumulação - desdobrando-se em valorização financeira. A guisa de introdução, passemos então a outra correlação (inversa): entre a superacumulação e a Lei de Tendência de Queda da Taxa de Lucro.

Não “apenas” porque, a) a tendência à queda da taxa de lucro é efetivamente, segundo Marx, uma expressão típica desse modo de produção, na medida em que o processo de acumulação capitalista necessita, obrigatoriamente, continuar a expansão da produtividade social do trabalho. Mas notadamente porque, b) a partir da segunda metade do século 20, a enorme expansão do sistema internacional de crédito potencializa a superacumulação de capital.

Expansão essa que, de acordo com interpretação algo diferenciada do professor Paulo Nakatani, acerca do que denomina “desenvolvimento da esfera financeira”, terminou se manifestando na esfera financeira em escala mundial. De uma parte – diz ele -, a expansão do sistema financeiro teria absorvido o excesso de capital monetário da esfera produtiva; de outra parte, “gerou uma remuneração que encobriu, pelo menos parcialmente e contraditoriamente, a tendência à queda na taxa de lucro, gerando os períodos de euforia com as ‘bolhas financeiras’; enfim, essa esfera passou a comandar o conjunto do sistema” [19].

Importa então aqui relembrar simplificadamente que, para Marx, assim se deve equacionar a Taxa de Lucro:

Taxa de Lucro
l= m/(c+v)

Sabemos que m é a Taxa de Mais-Valia, c o capital constante e v o valor da força de trabalho (salários). Como afirmamos no artigo anterior, para o capitalista é decisivo o investimento em c (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas), no sentido de aumentar a produtividade do trabalho (força produtiva social). Na mesma medida em que ele mesmo descarta, ou até “aniquila” (Belluzzo) a força de trabalho. Ou seja, fica evidente que a tendência da taxa de lucro é cair.

Nas palavras de Marx, cujo idêntico raciocínio crucial persiste especialmente nos Capítulos XII, XIV e XV do Livro 3, v. 4 (também no livro 1):

“Assim, ao progredir o modo capitalista de produção, o desenvolvimento da produtividade social do trabalho se configura na tendência à baixa progressiva da taxa de lucro e, além disso, no aumento absoluto da massa de mais-valia ou lucro extraído” (“O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 255).

Entretanto, há muito se discute que é o próprio Marx – e, repito, sua extraordinária profundidade intelectual - quem apresenta fatores que contrariariam esta tendência de queda, encarando-a como sendo lei de longo prazo. Diz ele que esses fatores seriam: a) o aumento do grau de exploração do trabalho; b) a redução dos salários; c) a baixa no preço dos elementos que compõem o capital constante; d) a superpopulação relativa (o exército industrial de reserva da Lei Geral da acumulação capitalista); e) o comércio exterior; f) o aumento do capital por ações (juros+rentismo).

No próximo artigo veremos mais sobre a LTQTL, revisitando o célebre ensaio de Elmar Altvater (tipologias da crise), publicado no Brasil há dez anos, e examinando aspectos da Grande Depressão. E voltaremos a questionar a relação crise-catástrofe-colapso, tendo por base teorizações recentes de Giacomo Marramao e Michael Heinrich.


Notas

[1] E imediatamente a seguir acresce com precisão Souza: “Ademais, as crises cíclicas periódicas são fomentadas pela superprodução e superacumulação, sob o acicate da globalização da concorrência”. In: “Capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo”, pp. 49 e 52, São Paulo, Anita Garibaldi, 2008. Doutor em economia, o camarada e amigo Renildo – com quem militei desde os tempos em que ele era dirigente sindical metalúrgico na Bahia – é exemplo incomum de estudo, talento e compromisso com a causa do comunismo. Atualmente no “estaleiro”, recuperando-se de uma cirurgia, ao companheiro dedico este artigo, sem qualquer compromisso dele com nossos pontos de vista.

[2] Luís Fernandes foi certamente pioneiro no Brasil a teorizar sobre uma dimensão crucial das ideias revolucionárias de Marx e Engels, quais sejam, o processo de gênese, consolidação e expansão global do capitalismo, contidas no Manifesto do Partido Comunista: “A força dessa compreensão reside na identificação de um impulso expansionista insaciável por parte do capital, que o empurra incessantemente para a busca de novos mercados em todo o globo. Em tempos da chamada ‘globalização’, a atualidade dessa leitura não poderia se mais evidente” (“O Manifesto Comunista e a dialética da globalização”, de L. Fernandes, in: “O Manifesto comunista 150 anos depois”, Reis Filho, D. A. (org.), pp. 109 e 114, Rio de janeiro, Contraponto, 1998.

[3] Após anunciar-se uma queda no PIB (Produto Interno Bruto) de 6,8% no último trimestre de 2008, nos EUA, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) divulgou esperar crescimento negativo em 2009 em: Alemanha (-2,3%), Reino Unido (-2,1%), Irlanda (-5,0%), Espanha (-2,0), França (1,8%), Itália (-2,0%), Dinamarca (-1,0), Letônia (-6,9%), Hungria (1,6%) (ver: “Contágio da crise surpreende europeus”, de J. Ewing, Valor Econômico, 3/3/2009, p. A-14). Ou seja, neste ano, uma onda depressiva atingirá a economia mais desenvolvida da Europa e o EUA. Na última quarta-feira divulgou-se uma queda de 53% nas vendas de automóveis nos EUA: “depressão automotiva”, alcunhou-se. A OCDE afirmou que a crescimento da economia mundial em 2009 será “menor que 0,5%”, estimativa essa de fevereiro do FMI (“Estado de S. Paulo”, 4/3/2009).
[4] Em “Por um New Deal global”, defende Gordon Brown, o primeiro-ministro do Reino Unido: “(...) Quarto, uma reforma da regulação internacional para fechar lacunas regulatórias para que sistemas bancários paralelos não tenham onde se esconder. Quinto, uma reforma de nossas instituições financeiras internacionais e a criação de um sistema internacional de alarme antecipado. E, por último, uma ação internacional coordenada para construir o amanhã hoje - colocar a economia mundial num caminho econômico, social e ambientalmente sustentável rumo à recuperação e ao crescimento futuro” (“O Estado de São Paulo”, 3/3/2009). Brown se junta a muitos outros demagogos e apologistas da financeirização global “desde criancinhas”. Claro que não vão, nesse andar das “carruagens de fogo”, regular suas fontes de escandalosa roubalheira – e poder global.

[5] Em direção oposta a essa miopia deliberada, “A ciência visa produzir uma representação abstrata da experiência, transpondo-a em conceitos e em fatos virtuais manipuláveis em sistemas simbólicos. Semelhante representação apresenta-se como confortável a própria experiência, isto é, a conceitos e a fatos atuais” – ensina o famoso epistemólogo francês Giles Gaston Granger (“O irracional”, pp. 252-3, Unesp, 2002).

[6] Ver: ”A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências sociais”, de A. Castro, in: “Conhecer o conhecimento”, p. 95, Avante! 1989.

[7] Rio de janeiro, Civilização Brasileira, s/data; itálico do autor, negrito nosso. [Todas as referências “O Capital” neste artigo são dessa editora]

[8] Ver: “Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo: previsões da crise”, de F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa, J. (org), Salvador/São Paulo, Unesp/Edufba, 2007.

[9] Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a dominação do mundo”, p. 81, Rio de Janeiro, Record, 2003.

[10] Ver: “Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo”, de J. C. S. Braga, Campinas, Unicamp/IE, 2000.

[11] Ver: “Considerações finais”, de R. Rabelo, in: Capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo”, p. 217, Monteiro, A. (org.), São Paulo, Anita Garibaldi, 2008.

[12] Em: “A reconstrução do sistema financeiro global”, de Martin Wolf, Cap. “Crises financeiras na era da globalização”, p. 31, Rio de Janeiro, Elsevier/Campus, 2009.

[13] Antes, afirmara: “com o juro ascendente cai o preço deles [dos papéis]. O que também provoca essa queda é a escassez geral de crédito, que força os detentores a lançarem-se em massa no mercado para obter dinheiro” (Livro 3, volume 5, pp. 566-7).

[14] Ver a discussão em “A transformação do capital financeiro”, de Robert Guttmann, Campinas, Economia e Sociedade, nº 7, dez./1996.

[15] Ver: ”A crise da economia japonesa nos anos 90: impactos da bolha especulativa”, de E. T. Filho, in: Revista de Economia Política, nº 65, São Paulo, jan./mar 1997; sobre dados de Scott, B.; da OCDE, Economic Outlook, vários anos.

[16] Ver: “Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças”, do professor J. C. Braga, in: Revista da USP, março/2009, no prelo. Examinaremos noutra parte este importante e recentíssimo texto.

[17] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 3, v. 5, p. 50.

[18] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 2, v. 3, Cap. XII, pp. 245-6.

[19] Ver: “A crise atual do sistema capitalista mundial”, de P. Nakatani, mimeo, s/data. O texto foi indicação do professor Renildo Souza, como bibliografia complementar à Escola Nacional do PCdoB, Núcleo de Economia Política & Desenvolvimento.




*Sérgio Barroso, Médico, doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB.



* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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