domingo, 23 de junho de 2024

Carlos Coutinho - Cartas de alforria (الحرية, al-ḥurrííâ)



  Carlos Coutinho

AGORA que já temos o Ventura no Conselho de Estado e garantidos o holandês Mark Rutte e a alemã Ursula von der l´Leyen ao leme, respetivamente, da NATO e da Comissão Europeia, só posso dormir completamente atordoado e acordar, como esta manhã, comprometido com a missão de dobrar mais uma vez o Cabo das Tormentas neste mar de dias infaustos que é o mundo percetível no primeiro quarto do século XXI.

De facto, acordei hoje encostado a duas palavras antigas – alfobre e alforria –, sem qualquer motivação destrinçável e, obviamente, sem a mínima culpa dos calendários em uso ou dos vários gramáticos da nossa praça, ainda aflitos neste pós-Acordo Ortográfico 98.

Encostei-me, logo que pude, aos dicionários e às enciclopédias disponíveis, incluindo as digitais, porque se trata de substantivos herdados de idiomas ancestrais que petrificaram no árabe e se mantêm firmes, sólidos e inter-relacionados, como as ombreiras de uma porta para a alfurja dos armários mentais.

Desprezei a alfurja, porque é demasiado misteriosa neste momento, tal como fiz com o verbo encostar agora usado, porque sei – e sei-o bem – que as costas tanto podem ser as pendências das omoplatas de um simples cristão como as bordaduras de uma ilha ou até de um continente.

Mas não recuso, entretanto, que é quase impossível distinguir acostar de encostar, sendo que, neste último caso, o que está na mesa é arrimar, ou pôr de lado algo ou alguém contra um objeto que não cai nem deixa cair, ou pedir dinheiro a outrem, ou procurar a proteção de algum poderoso, ou tentar escapar a um trabalho ou tarefa, ou marcar um golo facilmente, empurrando a bola para dentro da baliza com o adversário sem condições para tal impedir, enfim, são muitas as questões contidas nestes conceitos, mas o que agora me move é o amplo leque de significados com que podemos abanar-nos nestas e noutras situações.

Começando pelo alfobre, apetece-me registar que, para uns, tanto pode ser o nome que se dá a um viveiro de plantas hortenses destinadas a transplantação, como a um simples canteiro por entre regos onde corre um rego de água, ou um lugar onde se cria, produz ou desenvolve grande quantidade de coisas ou seres de certo tipo.

Para outros, é sinónimo de respeito variável para pepineira, sementeira, seminário que até pode ser eclesiástico, viveiro, criadouro, tabuleiro de horta e, se formos à etimologia, ainda podemos ficar mais desarmados, porque estaremos perante o termo árabe al-hufar que significa buraco, fossa, e que, no plural, é hufra.

Já com alforria, a coisa fia mais fino. Trata-se de uma palavra que recebemos do árabe (الحرية, al-ḥurrííâ), ou manumissão, e que é o ato pelo qual um proprietário de escravos dá liberdade a algum, ação que assume diferentes formas consoante o tempo e o local da sociedade escravagista. Significando liberdade, veio do sumério Ama-gi, que corresponde, no Brasil e noutros locais americanos, à alforria da escravidão por dívida.

A carta de alforria era um documento pelo qual se atestava que o proprietário de um escravo rescindia dos seus direitos de propriedade sobre a vítima, sendo que no Brasil, escravo liberto por esse dispositivo era habitualmente chamado negro forro.

Exemplo:

"Digo eu Manoel de Souza Magalhães que entre os bens livres e desembargados de que sou legítimo senhor e possuidor, é uma escrava mestiça de nome Joanna filha de minha escrava Helena criola, que agoconta alias tem de idade treze annos, a qual escrava Joanna, deve acompanhar-me atte o dia em que eu a cazar ou fallecer, e sendo que a mesma descre [?] e tenha filhos, tanto ella como seus filhos gozarão da mesma liberdade, cuja liberdade é do dia de minha morte por diante como si de ventre livre nascesse; e não não poderão meus herdeiros prezentes e esta liberda de que a faço de minha livre vontade sem constrangimento algum, e sim pelo muito amor que lhe tenho pela ter creado como filha, e alem disso me ter servido completamente; e havendo duvida sobre o ponderado recebo a dita escra va em minha terça pela quantia de cento e vinte mil reis, e declaro que presentemente o posso fazer por possuir bens aundantes que bem chegão para esta liberdade: e para título mandei passar a presente que pedi ao Senhor Jose Thomaz de Aquino "[...]

O direito de propriedade do senhor em relação ao seu escravo passava para este - processo que culmina numa maior autonomia do cativo. Todavia, devido ao estatuto jurídico de reescravização, que perduraria até 1871, o escravo poderia ter sua liberdade revogada. O domínio do senhor, antes real, tornava-se virtual.

Essa cultura da manumissão demarca a inferioridade intrínseca do negro, até quando liberto. A liberdade concedida pela manumissão, devido seu caráter movediço - mesmo que raríssimas fossem as revogações das promessas de alforria -, estabelece novos mecanismos de produção de patronagem, reiterando, assim, o status quo esclavagista.

Vejamos o depoimento de Mahommah Gardo Baquaqua:

"Depois de algumas semanas, ele me despachou de navio para o Rio de Janeiro onde permaneci duas semanas até ser vendido novamente. Havia lá um homem de cor que queria me comprar mas, por uma ou outra razão, não fechou o negócio. Menciono esse fato apenas para ilustrar que a posse de escravos se origina no poder, e qualquer um que dispõe dos meios para comprar seu semelhante com o vil metal pode se tornar um senhor de escravos, não importa qual seja sua cor, seu credo, ou sua nacionalidade; e que o homem negro escravizaria seu semelhante tão prontamente quanto o homem branco, tivesse ele o poder."

Por estas e por outras, é que eu nunca levei muito a sério o nome de Almoçageme. Descarado nome de uma localidade no concelho de Sintra, onde nunca houve mesquita alguma e que nem por isso deixaram de a batizar com o topónimo resultante de al-masjid ou al-mesijide, que em árabe significa precisamente “a mesquita”.

 2024 06  22

Gravura - Book cover of Baquaqua's memoirs, published in 1854

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