AGORA
que já temos o Ventura no Conselho de Estado e garantidos o holandês Mark Rutte
e a alemã Ursula von der l´Leyen ao leme, respetivamente, da NATO e da Comissão
Europeia, só posso dormir completamente atordoado e acordar, como esta manhã,
comprometido com a missão de dobrar mais uma vez o Cabo das Tormentas neste mar
de dias infaustos que é o mundo percetível no primeiro quarto do século XXI.
De
facto, acordei hoje encostado a duas palavras antigas – alfobre e alforria –,
sem qualquer motivação destrinçável e, obviamente, sem a mínima culpa dos
calendários em uso ou dos vários gramáticos da nossa praça, ainda aflitos neste
pós-Acordo Ortográfico 98.
Encostei-me,
logo que pude, aos dicionários e às enciclopédias disponíveis, incluindo as
digitais, porque se trata de substantivos herdados de idiomas ancestrais que
petrificaram no árabe e se mantêm firmes, sólidos e inter-relacionados, como as
ombreiras de uma porta para a alfurja dos armários mentais.
Desprezei
a alfurja, porque é demasiado misteriosa neste momento, tal como fiz com o
verbo encostar agora usado, porque sei – e sei-o bem – que as costas tanto
podem ser as pendências das omoplatas de um simples cristão como as bordaduras
de uma ilha ou até de um continente.
Mas
não recuso, entretanto, que é quase impossível distinguir acostar de encostar,
sendo que, neste último caso, o que está na mesa é arrimar, ou pôr de lado algo
ou alguém contra um objeto que não cai nem deixa cair, ou pedir dinheiro a
outrem, ou procurar a proteção de algum poderoso, ou tentar escapar a um
trabalho ou tarefa, ou marcar um golo facilmente, empurrando a bola para dentro
da baliza com o adversário sem condições para tal impedir, enfim, são muitas as
questões contidas nestes conceitos, mas o que agora me move é o amplo leque de
significados com que podemos abanar-nos nestas e noutras situações.
Começando
pelo alfobre, apetece-me registar que, para uns, tanto pode ser o nome que se
dá a um viveiro de plantas hortenses destinadas a transplantação, como a um
simples canteiro por entre regos onde corre um rego de água, ou um lugar onde
se cria, produz ou desenvolve grande quantidade de coisas ou seres de certo
tipo.
Para
outros, é sinónimo de respeito variável para pepineira, sementeira, seminário
que até pode ser eclesiástico, viveiro, criadouro, tabuleiro de horta e, se
formos à etimologia, ainda podemos ficar mais desarmados, porque estaremos
perante o termo árabe al-hufar que significa buraco, fossa, e que, no plural, é
hufra.
Já
com alforria, a coisa fia mais fino. Trata-se de uma palavra que recebemos do
árabe (الحرية, al-ḥurrííâ), ou manumissão, e que é o ato pelo qual um
proprietário de escravos dá liberdade a algum, ação que assume diferentes
formas consoante o tempo e o local da sociedade escravagista. Significando
liberdade, veio do sumério Ama-gi, que corresponde, no Brasil e noutros locais
americanos, à alforria da escravidão por dívida.
A
carta de alforria era um documento pelo qual se atestava que o proprietário de
um escravo rescindia dos seus direitos de propriedade sobre a vítima, sendo que
no Brasil, escravo liberto por esse dispositivo era habitualmente chamado negro
forro.
Exemplo:
"Digo
eu Manoel de Souza Magalhães que entre os bens livres e desembargados de que
sou legítimo senhor e possuidor, é uma escrava mestiça de nome Joanna filha de
minha escrava Helena criola, que agoconta alias tem de idade treze annos, a
qual escrava Joanna, deve acompanhar-me atte o dia em que eu a cazar ou
fallecer, e sendo que a mesma descre [?] e tenha filhos, tanto ella como seus
filhos gozarão da mesma liberdade, cuja liberdade é do dia de minha morte por
diante como si de ventre livre nascesse; e não não poderão meus herdeiros
prezentes e esta liberda de que a faço de minha livre vontade sem
constrangimento algum, e sim pelo muito amor que lhe tenho pela ter creado como
filha, e alem disso me ter servido completamente; e havendo duvida sobre o
ponderado recebo a dita escra va em minha terça pela quantia de cento e vinte
mil reis, e declaro que presentemente o posso fazer por possuir bens aundantes
que bem chegão para esta liberdade: e para título mandei passar a presente que
pedi ao Senhor Jose Thomaz de Aquino "[...]
O
direito de propriedade do senhor em relação ao seu escravo passava para este -
processo que culmina numa maior autonomia do cativo. Todavia, devido ao
estatuto jurídico de reescravização, que perduraria até 1871, o escravo poderia
ter sua liberdade revogada. O domínio do senhor, antes real, tornava-se
virtual.
Essa
cultura da manumissão demarca a inferioridade intrínseca do negro, até quando
liberto. A liberdade concedida pela manumissão, devido seu caráter movediço -
mesmo que raríssimas fossem as revogações das promessas de alforria -,
estabelece novos mecanismos de produção de patronagem, reiterando, assim, o
status quo esclavagista.
Vejamos
o depoimento de Mahommah Gardo Baquaqua:
"Depois
de algumas semanas, ele me despachou de navio para o Rio de Janeiro onde
permaneci duas semanas até ser vendido novamente. Havia lá um homem de cor que
queria me comprar mas, por uma ou outra razão, não fechou o negócio. Menciono
esse fato apenas para ilustrar que a posse de escravos se origina no poder, e
qualquer um que dispõe dos meios para comprar seu semelhante com o vil metal
pode se tornar um senhor de escravos, não importa qual seja sua cor, seu credo,
ou sua nacionalidade; e que o homem negro escravizaria seu semelhante tão
prontamente quanto o homem branco, tivesse ele o poder."
Por
estas e por outras, é que eu nunca levei muito a sério o nome de Almoçageme.
Descarado nome de uma localidade no concelho de Sintra, onde nunca houve
mesquita alguma e que nem por isso deixaram de a batizar com o topónimo
resultante de al-masjid ou al-mesijide, que em árabe significa precisamente “a
mesquita”.
2024 06 22
Gravura - Book cover of Baquaqua's memoirs, published in 1854
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