Luiz Felipe Baeta Neves
Os objetivos deste trabalho de índole ensaística, residem no desejo de discutir a constituição de alguns pontos de convergência de autores que se diferenciam fortemente no campo intelectual do século XVIII. A possibilidade de cotejo nos é dada por fenômeno que observaram e constituíram cada um a seu modo. Assim, o terremoto de Lisboa de 1755 é visto por três estrangeiros que ocupam posições desiguais na história do pensamento. Os dois primeiros de que trato, Voltaire e Rousseau, são mais do que conhecidos e estudados e, deles, apenas sublinharei alguns traços. O terceiro é um, até agora, pouco observado jesuíta italiano que teve intensa e variadíssima atuação em Portugal e no Brasil e que tem obra escrita escassa e de acesso difícil. Dele me ocuparei com mais vagar.
Iluministas e "iluminado" que nos deixaram explicações causais para a catástrofe de 1755 e, delas, nos serviremos como um tênue fio condutor.
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O Poema sobre o desastre de Lisboa (1756) – François Marie Arouet, dito, Voltaire (1694-1778) tem como "subtítulo" ou "título alternativo" as palavras que se seguem: Ou exame deste axioma: "tudo está bem".
O axioma a que ele refere, "tudo está bem", sintetizaria se assim podemos dizer, as posições centrais de determinado otimismo filosófico contra as quais o escritor francês se volta. As teses otimistas firmam que o mundo, criado por Deus, é organizado pela Providência de tal modo que, um "mal necessário" seja sempre compensado por um Bem sempre maior. Voltaire critica fortemente esta posição notadamente pelos perigos maiores que acarretaria: o fatalismo e a inação. No caso, toma como instrumento de ataque o terremoto de Lisboa de 1755, que apresenta como exemplo notável do que aquela expressão otimista teria de obstáculo à racional compreensão da realidade.
O alvo principal das críticas é Gottfried Wilhem Leibniz (1646-1716), e em ponto menor, Alexander Pope (1688-1744) Postulam que o mundo que conhecemos é o melhor dos mundos possíveis. Ele é a melhor das alternativas possíveis, escolhido por Deus — e criado por Deus. Voltaire, em seu poema, indaga, com veemência e indignação, como a bondade de Deus permitiu tragédia tão lancinante. Ou: como compatibilizar a existência do mal com a idéia de um Deus permanentemente benfazejo e benevolente em sua Onipotência.
Diz Voltaire: "Je ne conçois plus comment tout serait bien: je suis comme un docteur ; hélas ! Je ne sais rien !"
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Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em 18 de agosto de 1756, na "Lettre sur la Providence", assume posição oposta à de Voltaire. Afirma que a culpa estaria, portanto, não em desígnio divino, nem em "causa natural"; Deus e natureza preservam sua "bondade inata". As causas estão na própria corrupção da "integralidade humana" pela sociedade e por sua irracionalidade, por sua incapacidade de manter o caráter originalmente bom dos filhos do Senhor.
As consequências do fenômeno seriam de outra amplitude se não houvesse um despropositado número de casas "amontoadas" (segundo ele, vinte mil e de seis a sete andares) e com uma população mal distribuída. Chega o pensador genebrino a dizer que, talvez, nenhum estrago teria ocorrido se fossem observadas as regras que a Razão determina
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Uma palavra sobre o padre Malagrida, de obra e vida pouco conhecidas e, assim, creio que valha uma notícia breve sobre ele.
O padre jesuíta Gabriel Malagrida, missionário e pregador, nasceu em Menaggio, na Itália, a 5 de dezembro de 1689. Em 1721, embarca rumo às missões do Maranhão e Pará. Empreende, durante doze anos, uma excursão missionária, que partindo da cidade de São Luís vai atingir Salvador, retornando pelos atuais estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará. Durante esse tempo, pregou, confessou, construiu e reformou igrejas, fundou conventos e criou seminários para a formação do clero. Em 1750, vai à Corte e retornando à missão, viaja com o novo governador do Grão-Pará, irmão do futuro marquês de Pombal e grande inimigo das missões. Ao chegar aqui, não se demora muito tempo na Colônia, embarcando outra vez para Portugal. Lá, depois do terremoto que abalou Lisboa em 1755, escreveu um opúsculo sobre as causas da catástrofe, que acabou servindo de pretexto ao marquês de Pombal para desterrá-lo. No cárcere, o velho missionário teria escrito uma série de afirmações tidas como heréticas pela Inquisição. Os inquisitores, escolhidos e instigados pelo ministro, condenaram-no ao estrangulamento em praça pública, sendo o seu corpo queimado e as cinzas jogadas no Tejo. Morreu a 21 de setembro de 1761.
No imaginário Racionalista ou, antes, "Unitarista" contemporâneo, a figura do jesuíta italiano Gabriele Malagrida (1689-1761) soa contraditória, incongruente; ou seja, o que assemelha à "convivência de características incompatíveis entre si" é visto não como (possível) articulação complexa mas o sinal — ou a certeza — de "algo" disparatado. Continuamos muitas vezes, prisioneiros do "bom senso" ao acreditar que o que "não faz sentido" hoje jamais o fez. O que assim fazemos é construir, ao invés de conceitos e/ou interpretações históricas, figuras do anacrônico ao tomarmos a nós próprios como paradigmas mais ou menos conscientes do que a singularidade histórica diferenciaria.
Nosso jesuíta nada tem de "previsível" para uma "expectativa sensata", entre outras razões (sem trocadilho) por seu caráter de visionário, místico, desmedido ...
Observemos mais de perto, entretanto, o que ele diz em livro, publicado sob louvores do Santo Ofício, denominado Juízo da verdadeira causa do terremoto que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755.
Malagrida atribui o terremoto a castigo divino:
"Sabe Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas e palácios, assoladores de tantos templos e conventos, homicidas de tantos habitantes, os incêndios devoradores de tantos tesouros não são cometas, não são estrelas, não são vapores ou exalações, não são fenômenos, não são contingências ou causas naturais, mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados. (apud. Mury, 1992, p. 8-12).
Pode-se — o que é tão "evidente" quanto já sabido — dizer que tais causas nada tinham a ver com as que certa tradição ilustrada do século XVIII afirmava e que atribuía a forças da natureza a origem de tais fenômenos.
Creio, contudo, que é simplificador atribuir-se a uma posição "mística" o discurso do inaciano. A não ser que definamos o que chamamos "mística" — e o que seria considerado "mistico", naquela conjuntura, no campo católico e nas diferentes tendências que integravam a Companhia de Jesus. Na falta desta "vida histórica", da "experiência" daquele misticismo, o nosso próprio conceitual claudica. Como 'restringi-lo' sem a presença do século XVIII, cotejando-o com o nosso século XXI, e suas conjunturas semânticas e suas teorias da religião e da história?
Na verdade, a intenção divina a que se referem exegetas do texto em questão é mística ... mas esta palavra (ou qualquer outra) não é uma chave que abre as portas do conhecimento imediato e de modo absoluto
A não ser que a reifiquemos e a transformemos em objeto sem dobras históricas, consensual, a-temporal. Como estamos em uma "situação" histórico-cultural conhecida, no século XVIII em Portugal, datada, singular, podemos "fazer jogar" a palavra "mística", de então, com o vocabulário de nossos dias. E, em especial, com o vocabulário conceitual que a opção teórica feita impõe.
Assim, podemos considerar mística a citada intervenção divina porque advinda de um Poder externo à história humana. Mas, tal intervenção, é causada por situações ocorridas nesta mesma história ... humana.
É significativo ressaltar pelo menos dois aspectos. O primeiro é que a intervenção divina tem uma causa; não é aleatória, indeterminada ou incompreensível pela razão mesma (e não apenas por uma intuição, acatamento incondicional canônico e assim por diante). E esta causa é terrena, o que permite diversas considerações; escolho uma, que suponho tão óbvia quanto pouco ressaltada: há uma ligação entre céus e terras tão forte que pode, aquilo que aqui é feito, ter origem em uma ação divina sobre a terra e fazer variar a intensidade de tal ação de acordo com a ordem de malfeitos aqui cometidos. Não é, pois, uma ação inopinada de uma força divina; no caso é uma reação que, tem as cores da correção e, mesmo, talvez, da vingança ...
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Em outro âmbito, atribui-se a intenções estritamente políticas a publicação do opúsculo de Malagrida. A imputação de uma destinação exclusivamente política — resumidamente um ataque a Pombal e seus aliados — é apenas uma inversão da situação ainda agora referida. Atribui-se a um alvo terreno um campo que necessariamente inclui o divino. As ações humanas são, em última instância, ao menos admitidas pelo divino mas todas as ações humanas são passíveis de sanção por transgressão a normas de comportamento — face aos semelhantes e a Deus — conhecidas e proclamadas.
A sanção não se dá, aos homens, nesta concepção, por erros estritamente humanos mas porque, estes seriam, se assim considerados, estritamente/estreitamente humanos ao desconsiderar (por 'falta' ou 'afronta') sua dimensão transcendente de filhos de Deus na terra — e em vida, aqui, passageira.
O que acaba de ser dito não desconsidera, de modo algum, a relação conflituosa entre a Companhia de Jesus e o marques de Pombal. Relação — no que diz respeito ao ponto que abordamos — que se acirra pela importância fundamental para os jesuítas da construção de uma terrena cidade celeste. Construção que, desde os princípios da Companhia, foi marcada por um imaginário que faz da ação (missionária, política, moral) na vida dos homens vetor decisivo para que esta terra fosse, também, feita à semelhança da Celeste.
Em seu pequeno livro, Malagrida não apenas acusa o danoso comportamento dos então senhores do poder como causador da catástrofe mas prega a "reforma dos costumes" como meio de recuperação da cidade e de seu povo. Estes instrumentos de possível re-edificação não tocam apenas ao futuro. Tem peculiar contraponto na premonição que, alegadamente, tivera do desastre (e da repetição, deste, um ano depois) e das profecias do Bandarra que continuavam a circular — em uma espantosa demostração de durabilidade —e que anunciavam que "na era que tem dois cincos [...] grandes gritos de gentes despedaçadas" se ouviriam.
É bom notar que profecias (e premonições de "homens santos") nada tinham, em si, de "erro" ou magia. Eram o anúncio de adventos registrados na própria Bíblia e que demandavam correta tradução por uma autoridade reconhecida institucionalmente pela Igreja. Ou, mesmo, tinham vigência social apesar da não aprovação ou, mesmo, reprovação de Roma ou de algumas de suas instâncias próprias.
Observamos a "acusação" de irracionalidade endereçada aos escritos proféticos de Malagrida (ou de Vieira). Ou, dito de outro modo, tais textos seriam prova da irracionalidade — não somente de sua própria irracionalidade, mas da "irracionalidade" de sua co-existência com o "conjunto" da obra de ambos.
Vejamos estes grandes arquipélagos ideológicos mais de perto. Penso que não seria demais insistir no caráter resolutamente anti-histórico da primeira "acusação", aquela da irracionalidade dos textos proféticos da irracionalidade intrínseca, constitutiva de sua própria "essência". Acredito que a acusação seja anti-histórica por diversas razões, das quais destaco duas. A primeira apontaria para o anacronismo evidente da "acusação"; a posição do acusador estabelece que o profetismo jesuítico dos séculos XVII / XVIII não estaria "de acordo" com o racionalismo que preside seu pragmatismo. Ora, o pragmatismo e o racionalismo dos inacianos — não são infensos a isto que agora reconhecemos como irracionalismo. Ou, admitamos didaticamente, o irracionalismo vieiriano se articula com o racionalismo pragmatista de Vieira de modo que merece ser, prazerosamente, investigado em sua complexidade, e não apressadamente culpabilizado e condenado.
Digo que a análise da articulação deste racionalismo com este irracionalismo é instigante e prazerosa porque respeitaria a complexidade efetiva de cada um dos ítens deste par e procuraria mostrar a singularidade de sua relação: de suas aproximações, alianças, conflitos e afastamentos.
A questão central desta exploração inicial é quem é que decide — e a partir de que lugar-de-conhecimento — o que é "razão" ou "racional". Exijo, se assim posso dizer, conhecer quais são os títulos de 'cidadania do conhecimento' — conhecimento tão poderoso que sequer precisa dizer que é racional — que não só conhece como julga a Razão. Esta imperial Razão parece falar em nome da história — e de um conhecimento histórico que, entretanto, não consegue distinguir que, o racionalismo, ele mesmo tem uma história. Ou seja, aquilo a que hoje chamamos razão pode — e deve — reconhecer que, em outros momentos, apesar da "identidade" da palavra "razão", o racionalismo se constituía diferentemente. Assim, penso que é um exercício teoricamente equivocado procurar reconhecer de modo imediato a razão — tal como julgamos conhecê-la hoje — em situações históricas outras.
Reinhard Koselleck (1997) critica a transferência descuidada para o passado de expressões modernas, contextualmente determinadas e a prática da história das idéias de tratá-las como constantes, articuladas em figuras históricas diferentes mas elas mesmas fundamentalmente
imutáveis. Como em um bizarro casamento entre Essências que, em se deslocando no tempo, ligam-se a diferentes quadros históricos.
A leitura daqueles textos proféticos permitiria, de diferentes maneiras, apontar para seu caráter compósito, mestiço de razão e irrazão, de sabor estranho, inusitado para nosso paladar saturado de objetividade e homogeneidade.
Os escritos proféticos, ao contrário do que poderia supor uma postulação ideológica e apressada do profetismo, de qualquer profetismo, não significam necessariamente uma manifestação de repúdio absoluto à história. Os exemplos em questão ilustram bem o que quero apontar; seu profetismo é uma reflexão sobre a história humana. E não apenas de como esta humana história deveria se constituir — ou se reconstituir, se pensarmos em sua primeira cena biblicamente relatada. Na verdade, mais do que isto, suas análises proféticas tem compromisso evidente com formas políticas de construção do Divino na terra, não sendo apenas, tais análises, proposições sobre etéreas questões atinentes à vida espiritual ou individual.
Os jesuítas, como o padre Antonio Vieira, acreditavam que o mundo dispunha cenas que já tinham se passado, sob outra forma, na Bíblia. As cenas do mundo terreno re-encenam passagens verídicas registradas pelo Livro Sagrado ; é preciso "apenas" compatibilizar umas e outras; traduzir corretamente o que se dá na terra para que a Bíblia possa explicá-la.
O que poderíamos chamar de causa profética — ou profetizada — não é uma causa "natural" ou uma causa "social". Confrontada com as duas últimas, ela é uma paradoxal "terceira causa" ou "causa neutra"; ela é o resultado de uma correta ou incorreta compreensão do anúncio bíblico daquilo que é — ou deveria ser — a história. A leitura pode, igualmente, ser correta mas gerar situações adversas ao Designo Divino por ser conduzida, tal leitura correta, por agentes históricos que não compatibilizem o conhecimento do certo com a ação cristã adequada.
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Catástrofe — ou sucessão de catástrofes — como o terremoto de Lisboa apresenta um feixe de questões que, no imaginário social, multiplicam seu caráter dramático. Apontaremos algumas sem qualquer intuito de maior verticalização. Há, desde logo, uma intensificação do problema da descoberta de uma causa, de uma razão que consiga 'dar conta' de um "fenômeno extraordinário". A busca de causas para "fenômenos extraordinários" já é, por si, um exercício notável. Além do que, tal acontecimento é inopinado é multifacetado : atinge a natureza, a cidade, os indivíduos, a 'ordem pública' (nas muitas acepções que podemos dar ao termo).
Mas por que na cristandade, em um reino cristão, em um país que imaginou a si, em cores diversas, como o centro (do mundo cristão) agora e mesmo no futuro, e atinge justo a capital deste centro, Lisboa? A resposta a tudo isto estaria, para Malagrida, em outro lugar que não na "irrazão da religião", ou na constatação de que o que acontece na vida é inexplicável, impossível de se dar de outro modo ou na explicação de caráter rousseaniano que hoje poderíamos chamar de "sócio-cultural" e que apontaria para os "absurdos arquitetônicos de Lisboa", fruto, por sua vez, da corrupção que a cultura (a sociedade) acarretaria ao homem.
Nosso jesuíta vê a causa como residindo, notadamente no coração daqueles que tinham, além do poder político, econômico etc, o poder decisivo do exemplo, da pedagogia do exemplo — tão cara aos inacianos — que poderiam exercer de modo superlativo pelo valor simbólico de suas posições e de seus atos.
A causa, ou melhor, as causas estão, pois, no cerne mesmo da cristandade portuguesa; suas raízes não estão nos que abjuraram a Fé ou naqueles que jamais a conheceram. O que torna a imputação da(s) causa(s) aludida(s) mais doloroso, mais estigmatizante, mais grave. Foi o comportamento social moral de cristãos tão continuada e agudamente pecaminoso que o castigo corretivo teve que assumir proporções raríssimamente conhecidas. Ainda que a correlação entre erro e castigo fosse 'desigual', a Ira Divina não conhece os limites das leis humanas e, pois, não parece ter sido, esta Ira, questão de mensuração posta em relevo.
Genericamente: acusação feita pela Igreja, ainda que tenhamos em conta a 'situação política' e a especificidade de um de seus braços, a Companhia de Jesus, é, por muitos séculos, sempre de se temer. Deixemos de lado nosso "anacronismo auto-centrado" e imaginemos outros "mundos culturais" em que religião é sinônimo de saber, expressão da Vontade Divina, moral, ética e também arte e tanto mais. É, sempre, ocupação de muitas frentes que, hoje, distinguimos, "autonomizamos".
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Malagrida é levado pelo Marques de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Mello) à Inquisição onde é julgado e condenado à morte por heresia. A condenação à morte do jesuíta é fato excepcional e execuções em meio a autos-de-fé não existiam há muito tempo em Portugal.
A cena, complexa e extensa, do sacrifício do jesuíta no Rocio é de notável efeito positivo para a "simbologia da excepcionalidade" com que seus promotores quiseram marcar o ato — ato que é preciso ainda reestudar em sua complexa totalidade. De todo modo, a "visibilidade", o caráter público — e cercado de uma "efervescência" popular de amplo espectro — faz do auto-de-fé a "forma" ideal para a reafirmação daquela conjuntura do imaginário do poder.
Há uma apresentação superlativa da vitória pombalina, que pode ser vista na "personagem" imposta ao inaciano. Este "(....) segue para o Rocio com um barrete de palhaço na cabeça e uma espécie de batina enfeitada com demônios de papel colorido, no meio de cinqüenta e dois outros sentenciados, os figurantes de um drama onde somente Malagrida foi morto". (Hazin, E. A. L., 2002, p. 84-98)
Todo esse conjunto simbólico merece ser visto em quadro mais abrangente de que sublinho alguns pontos possíveis de investigação (ou de mera reflexão) que poderiam fazer contrastar verdades bem ancoradas com novas formas de constituição teórica.
A "cena", para resumirmos em uma palavra, a realização da mesma e suas fontes, da execução do padre Gabriele Malagrida em 1761 é, vista em grandes traços, como paradoxal vitória do que, de costume, é chamado de "racionalismo", despotismo esclarecido", "luta contra a supertição e o clericalismo sufocante" e assim por diante. De fato, tanto para Voltaire quanto para Rousseau, para citar figuras emblemáticas, o espetáculo é alvo de crítica cabal.
Crítica que, creio, pode ser aprofundada se pensarmos que Pombal acaba por utilizar instituições e práticas contra as quais o Iluminismo começara a se voltar há tempo significativo. Parece ter ficado, o marques, prisioneiro do que julgava dominar. Oferece, deste modo, para nós, outra linha de perquirição que poria em questão a macro explicação mesma de "universalidade da razão" do século XVIII. Razão que aparece, aqui, exposta às forças das particularidades sócio-culturais — portuguesas, no caso — e da transgressão que representam face aos universalismos de caráter totalitário.
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A irrupção virulenta e dramática do "excesso ibérico" — de tons hierárquicos e autoritários, de um contra-reformismo vincado por uma religiosidade católica enraizada e por um barroco exuberante — não só contrapontua, ou mesmo contradiz, ideais uniformizadores. Irrupção inesperada para uma "lógica da história" que é infensa ao que julga "ultrapassado". "Ultrapassado" que, quer se queira ou não, é real. Ao recuperar normas e práticas julgadas superadas também é útil para não nos deixarmos seduzir pelo imaginário que aspira à continuidade e à linearidade históricas absolutas.
É também, aquele evento, sinal de que a memória social é, sempre, uma articulação complexa de "tempos" diferenciados, que se rearticulam de forma a serem observadas, também ... com os cuidados de um etnógrafo clássico. E não com olhares empiricistas e detetivescos à cata de "exemplos", "ilustrações" ou "aplicações" de verdades já estabelecidas. E, ainda nos faz pensar que explicações unívocas — como as que atribuiriam a uma excludente "Razão política" o processo de Malagrida — abrem mão de explicações mais compreensivas (no sentido sociológico do termo) que incluiriam "razões irracionais" que, tantas vezes marcam o imaginário social.
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