segunda-feira, 26 de novembro de 2007

SOPHIA DE MELLO BREYNER: UMA LEITURA DE GRADES

* - HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA

Reprodução autorizada de artigo publicado na Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982

INTRODUÇÃO

O flagelo da escravidão social é referido em alguns poemas de Sophia, com uma certa amliguidade, porque a gente que é escrava sabe também por vezes mostrar força e dignidade no rosto e nas atitudes. Assim no poema «Esta gente»:
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Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco


Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

No poema intitulado Retrato de uma Princesa Desconhecida o tema da escravidão não é ambíguo porque há uma nítida oposição entre o esplendor da princesa retratada e a paciência da mão de obra escrava. Além de oposição, há uma relação de necessidade, porque nunca uma princesa pode ser tão bela e tão isenta de sofrimento e de desgaste se não se realiza o trabalho exaustivo e repetido dos escravos que sustentam uma sociedade hierarquizada, na qual as classes privilegiadas vivem de ócio e de requinte.
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Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Forarn necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
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No poema «As pessoas sensíveis» (pp. 39-40) denunciando quem come com o trabalho dos escravos, Sophia Iembra o versículo do Génesis

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«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»
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4.2. A traição e a podridão moral
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A traição é aludida no poema A Veste dos Fariseus, a propósito do comportamento de Pilatos e dos Fariseus no juIgamento de Cristo. Trata-se de uma denúncia subtil da engrenagem do «poder que lava as mãos» e que, escondendo as suas responsabilidades, quer sempre manter uma aparência de impecabilidade e de não-comprometimento na violência que prepara. Os Fariseus em cuja veste «nem uma nódoa se via» pela sua isenção traidora são também aqueles que guiam a polícia («a polícia o perseguia / guiada pelos fariseus») e manipulam o povo («Crucificai-o depressa / lhe pedia toda a gente I guiada por Fariseus»).
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Sophia aproveita a alusão bíblica para fazer uma alegoria do poder que procura destruir quem recusa a violência e acaba também por ser atraiçoado pelos amigos
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Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam (pp. 39-40)
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A autora recorre com frequência à Bíblia para introduzir alegorias e símbolos que remetam para valores permanentes, como a justiça e a procura de autenticidade. Por isso, no mesmo poema dirige uma invectiva aos «vendihões do templo» que na sua falta de autenticidade, constroem «grandes estátuas balofas e pesadas» e vivem da ciência dualista que mistura devoção e procura consciente de proveito:
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Ó cheios de de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
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Sophia enumera veladamente alguns artifícios humanos que ocorrem na cidade, no mundo moderno e que começam a invadir-nos:
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Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios
O mal compra o mal e ambos se entendem
Compram e vendem
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A podridão e a degradação são detectadas frequentes vezes pela sua atenção, ao longo da sua obra (19). O símbolo do abutre associa implicitamente o artifício, o gosto da podridão e a degradação
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O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas (p. 41)
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5. A Procura de Justiça e de Verdade
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A Justiça e a Verdade não são, no pensamento de Sophia, um ponto de chegada, mas um percurso permanente de quem procura eliminar a injustiça e a mentira do comportamento humano, cujos valores estão sempre a mudar, inserido na engrenagem da violência que vai perpetrando ao longo dos séculos.

A procura de Justiça é um combate permanente para quem ousa enfrentar as forças destrutivas instaladas no interior do homem, na sociedade e no poder. A positividade de Sophia manifesta-se no incentivo de lutar sem violência, com força interior, traduzida em actos, para intervir na vida do seu país. Vejamos o que nos diz o poema Esta Gente (pp. 57-58) .
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Esta gente...
Faz renascer meu gosto
de Iuta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
E em frente desta gente...
Meu canto se renova
e recomeço a busca
dum pais liberto
Duma vida limpa
e dum tempo justo















Os valores liberdade, nitidez/limpidez e justiça pertencem à esfera da luta num «país ocupado» «cheio de mágoa», na «vida suja, hostil inutilmente gasta» da cidade impregnada de injustiças. País, vida e tempo são convergentes para se deixarem transformar positivamente através da luta e do combate pela justiça. Os inimigos estão simbolizados nos animais portadores de morte e podridão - o abutre e o milhafre -, de viscosidade traiçoeira e mortífera - a cobra - e de sujidade.

O risco que envolve a aventura deste combate, de quem «vive e canta no mau tempo», está presente na alegoria da procelária que














«não busca a rocha o cabo o cais

Mas faz da insegurança sua força

E do risco de morrer seu alimento»

(Procelária, pp. 53.54)



«voa firm e certa como bala»

(Ibidem)








A própria autora, no final do mesmo poema, considera a procelária como a imagem justa de quem ousa lutar arriscando-se permanentemente a ser destruído



«Por isso me parece imagem justa

Para quem vive
e canta no mau tempo»

(Ibidem)



A justiça como tema de reflexão, como prática realizada por uma heroína popular do Alentejo e como busca contínua, está admiravelmente sintetizada no poema Catarina Eufémia (vide também in Dual, p. 75) cujo primeiro verso tem um carácter didáctico e imediatamente introduz o discurso dirigido a Catarina



«O primeiro tema da reflexão grega é a justiça

E eu penso nesse instante em que ficaste exposta...

estavas grávida porém não recuaste

Porque a tua lição é esta: fazer frente»



Todo o poema desenvolve a sua lição de intrepidez, de superioridade de espírito em relação ao comum das mulheres ( «não ficaste em casa a cozinhar intrigas»), a recusa da manipulação, da calúnia no momento da luta, a sua «inocência frontal que não recua». A figura e a lição de Catarina insere-se na escassa tradição dos que lutam sem violência, para restabelecerem a justiça; é incentivo para continuar a procurar a justiça. Daí a seguinte conclusão do poema



«Antígona poisa a sua mão sobre o teu ombro no instante [em que morreste

E a busca da justiça continua» .



Intrepidez envolve tarnbém a eliminação do abuso, da mentira e, implicitamente, a procura de verdade, não revelada, mas adquirida lentamente através da luta pela justiça. Encontramos referências em fragmentos do poema Catilina (p. 11), por exemplo:



Caminho sem medo e sem mentira









6. A coerência marginalizada













Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque ou outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo mas tu não.



Porque os outros são os túmulos caiados

Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não






Utilizando paralelismo de construção, estabelece a oposição entre o comportamento colectivo («os outros» ) e o comportamento raro de quem procura coerência entre palavras e actos.



O espaço mais vasto do poema é, logicamente, o do comportamento da maioria, sendo a minoria («tu» ) a dizer não ao culto da aparência, à falsa virtude (20) , ao medo, à podridão moral disfarçada, à submissão injusta, ao aviltamento de se comprar e de se vender, ao artifício hábil, à excessiva autoprotecção, ao abuso do cálculo nos actos.



Todo o poema está impregnado de valores morais, que analisámos, por exemplo, na figura de «Crsto», e também de Catarina Eufémia; esses valores postos em prática por uma escassa minoria, por vezes uma pessoa isolada, que põe na base da sua luta a crucial procura da eliminação progressiva da violência no contexto social e culturral em que vive. Esta parece-nos também ser o centro da procura de Sophia de Mello Breyner.



A introdução e o conteúdo deste artigo confirmam a afirmação de Sophia que «toda a poesia é uma moral».



A poesia de Sophia é duplamente formativa porque ajuda o leitor a tomar consciência da realidade social e política, e a procurar formas de luta que procuram não redobrar as cadeias da violência mas eliminá-la progressivamente.


O ponto de partida é a frontalidade de ser, a coragem de ser, a integridade moral que irá Iprojoctar-se na vida social. Sendo a poesia, para Sophia de Mello Breyner, a expressão da «inteireza, do ser, o de estar na terra» (21), são possíveis outras dimensões de leitura diferentes da envolvência moral, no plano individual e social.



«Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é revolucionária» (22) .








NOTAS







(1) Publicações D. Quixote, edição proibida pela censura.

(2) 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-235.

(3) Sophia, Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-234.

(4) lbid., Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, p. 234.

(5) lbid., Antologia, 3.. ed., Moraes, Lisboa, p. 234.

(6) In «Cantar», Grades, pp. 45-46.

(7) In «Esta gente», ibid., p. 58.

(8) In Livro Sexto, 4ª ed., Moraes, Lisboa, p. 25.

(9) Cfr. o poema «Marinheiro sem Mar», em O Tempo Dividido.

(10) Grades, p.13.

(11) Ibid., p. 35.

(12) Sophia traduziu O Purgatório de Dante.

(13) Grades, p. 25.

(14) lbid., p. 19.

(15) lbid., p. 15.

(16) lbid., pp. 71-72.

(17) Cfr. finais do Canto.

(18) «Nestes últimos tempos», in O Nome das Coisas, p. 71.

(19) Cfr. por exemplo, «Marinheiro Sem Mar» in Mar Novo.

(20) Cfr. «As vestes dos Fariseus», Grades.

(21) In O Nome das Coisas, p. 78.

(22) Ibid., p. 79.

in

http://www.triplov.com/sophia/grades.html

Fotografia em

http://catedral.weblog.com.pt/arquivo/2005_05


1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

E de cada vez que releio Sofia, mais gosto!


Maria Mamede