Reprodução autorizada de artigo publicado na Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982
INTRODUÇÃOEsta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
.
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Forarn necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
No poema «As pessoas sensíveis» (pp. 39-40) denunciando quem come com o trabalho dos escravos, Sophia Iembra o versículo do Génesis
.
«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»
.
4.2. A traição e a podridão moral
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Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam (pp. 39-40)
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Ó cheios de de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
.
Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios
O mal compra o mal e ambos se entendem
Compram e vendem
.
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas (p. 41)
.
5. A Procura de Justiça e de Verdade
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A procura de Justiça é um combate permanente para quem ousa enfrentar as forças destrutivas instaladas no interior do homem, na sociedade e no poder. A positividade de Sophia manifesta-se no incentivo de lutar sem violência, com força interior, traduzida em actos, para intervir na vida do seu país. Vejamos o que nos diz o poema Esta Gente (pp. 57-58) .
.
Faz renascer meu gosto
de Iuta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
E em frente desta gente...
Meu canto se renova
e recomeço a busca
dum pais liberto
Duma vida limpa
e dum tempo justo
Os valores liberdade, nitidez/limpidez e justiça pertencem à esfera da luta num «país ocupado» «cheio de mágoa», na «vida suja, hostil inutilmente gasta» da cidade impregnada de injustiças. País, vida e tempo são convergentes para se deixarem transformar positivamente através da luta e do combate pela justiça. Os inimigos estão simbolizados nos animais portadores de morte e podridão - o abutre e o milhafre -, de viscosidade traiçoeira e mortífera - a cobra - e de sujidade.
O risco que envolve a aventura deste combate, de quem «vive e canta no mau tempo», está presente na alegoria da procelária que
«não busca a rocha o cabo o cais Mas faz da insegurança sua força E do risco de morrer seu alimento» (Procelária, pp. 53.54) «voa firm e certa como bala» (Ibidem) |
A própria autora, no final do mesmo poema, considera a procelária como a imagem justa de quem ousa lutar arriscando-se permanentemente a ser destruído
«Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo»
(Ibidem)
A justiça como tema de reflexão, como prática realizada por uma heroína popular do Alentejo e como busca contínua, está admiravelmente sintetizada no poema Catarina Eufémia (vide também in Dual, p. 75) cujo primeiro verso tem um carácter didáctico e imediatamente introduz o discurso dirigido a Catarina
«O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta...
estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente»
Todo o poema desenvolve a sua lição de intrepidez, de superioridade de espírito em relação ao comum das mulheres ( «não ficaste em casa a cozinhar intrigas»), a recusa da manipulação, da calúnia no momento da luta, a sua «inocência frontal que não recua». A figura e a lição de Catarina insere-se na escassa tradição dos que lutam sem violência, para restabelecerem a justiça; é incentivo para continuar a procurar a justiça. Daí a seguinte conclusão do poema
«Antígona poisa a sua mão sobre o teu ombro no instante [em que morreste
E a busca da justiça continua» .
Intrepidez envolve tarnbém a eliminação do abuso, da mentira e, implicitamente, a procura de verdade, não revelada, mas adquirida lentamente através da luta pela justiça. Encontramos referências em fragmentos do poema Catilina (p. 11), por exemplo:
Caminho sem medo e sem mentira
6. A coerência marginalizada
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque ou outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não |
Utilizando paralelismo de construção, estabelece a oposição entre o comportamento colectivo («os outros» ) e o comportamento raro de quem procura coerência entre palavras e actos.
O espaço mais vasto do poema é, logicamente, o do comportamento da maioria, sendo a minoria («tu» ) a dizer não ao culto da aparência, à falsa virtude (20) , ao medo, à podridão moral disfarçada, à submissão injusta, ao aviltamento de se comprar e de se vender, ao artifício hábil, à excessiva autoprotecção, ao abuso do cálculo nos actos.
Todo o poema está impregnado de valores morais, que analisámos, por exemplo, na figura de «Crsto», e também de Catarina Eufémia; esses valores postos em prática por uma escassa minoria, por vezes uma pessoa isolada, que põe na base da sua luta a crucial procura da eliminação progressiva da violência no contexto social e culturral em que vive. Esta parece-nos também ser o centro da procura de Sophia de Mello Breyner.
A introdução e o conteúdo deste artigo confirmam a afirmação de Sophia que «toda a poesia é uma moral».
A poesia de Sophia é duplamente formativa porque ajuda o leitor a tomar consciência da realidade social e política, e a procurar formas de luta que procuram não redobrar as cadeias da violência mas eliminá-la progressivamente.
O ponto de partida é a frontalidade de ser, a coragem de ser, a integridade moral que irá Iprojoctar-se na vida social. Sendo a poesia, para Sophia de Mello Breyner, a expressão da «inteireza, do ser, o de estar na terra» (21), são possíveis outras dimensões de leitura diferentes da envolvência moral, no plano individual e social.
«Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é revolucionária» (22) .
NOTAS
(1) Publicações D. Quixote, edição proibida pela censura.
(2) 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-235.
(3) Sophia, Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-234.
(4) lbid., Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, p. 234.
(5) lbid., Antologia, 3.. ed., Moraes, Lisboa, p. 234.
(6) In «Cantar», Grades, pp. 45-46.
(7) In «Esta gente», ibid., p. 58.
(8) In Livro Sexto, 4ª ed., Moraes, Lisboa, p. 25.
(9) Cfr. o poema «Marinheiro sem Mar», em O Tempo Dividido.
(10) Grades, p.13.
(11) Ibid., p. 35.
(12) Sophia traduziu O Purgatório de Dante.
(13) Grades, p. 25.
(14) lbid., p. 19.
(15) lbid., p. 15.
(16) lbid., pp. 71-72.
(17) Cfr. finais do Canto.
(18) «Nestes últimos tempos», in O Nome das Coisas, p. 71.
(19) Cfr. por exemplo, «Marinheiro Sem Mar» in Mar Novo.
(20) Cfr. «As vestes dos Fariseus», Grades.
(21) In O Nome das Coisas, p. 78.
(22) Ibid., p. 79.
http://www.triplov.com/sophia/grades.html
http://catedral.weblog.com.pt/arquivo/2005_05
1 comentário:
E de cada vez que releio Sofia, mais gosto!
Maria Mamede
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