terça-feira, 13 de novembro de 2007

Poesia de José Saramago





Poemas de José Saramago



[Veja outros poemas do livro OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. (3ª edição)] - página anterior

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Estes são do livro PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª edição:

POEMA PARA LUÍS DE CAMÕES


Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.


Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.



NA ILHA POR VEZES HABITADA



Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não
precisamos de

morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se
as

palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno,
a

vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à
roda do

mundo infatigável, porque mordeu a alma
até aos

ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.



PROTOPOEMA



Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece
solto.

Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem
de mim, ou para

mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas
o

próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos
choupos que

vagarosamente deslizam sobre a película
luminosa

dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície
das águas.

Aí se fundem numa só verdade as lembranças
confusas

da memória e o vulto subitamente anunciado
do

futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e
que

as aves digam nos ramos por que são altos
os

choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até
à pedra

viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos
se

juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.


EU LUMINOSO NÃO SOU


Eu luminoso não sou. Nem sei que haja
Um poço mais remoto, e habitado
De cegas criaturas, de histórias e assombros.
Se, no fundo poço, que é o mundo
Secreto e intratável das águas interiores,
Uma roda de céu ondulando se alarga,
Digamos que é o mar: como o rápido canto
Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas. O musgo é um silêncio,
E as cobras-d'água dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar, as aves se recolhem.


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