quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O Poema sobre o Desastre de Lisboa - Voltaire



:: O Poema sobre o Desastre de Lisboa - Voltaire (2005)

Volto agora atrás no que disse, como começa a acontecer-me com alguma frequência. Suponho que seja sinal da passagem do tempo, mudarmos mais vezes de ideias. Ou então não. Depois de uma primeira tentativa de ler – há tanto tempo… – Voltaire em poesia, com a gesta de Henrique IV, reincido, com o poema que o escritor e filósofo francês dedicou ao terramoto de Lisboa de 1755 – O Poema sobre o Desastre de Lisboa. Ao contrário de muitos, eu engano-me, hesito, mudo de ideias.
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Voltaire (François-Marie Arouet adoptou este anagrama quando de uma das suas encarcerações na Bastilha) nasceu em 1694 e morreu em 1778. De certa forma, até pela provecta idade com que morreu, o autor simboliza o espírito do seu tempo, o século dezoito: atravessou os seus mais importantes acontecimentos e ergueu uma obra portentosa, em que cumpre destacar a ficção – Zadig, Nicromegas, Cândido – e a filosofia – Elementos da Filosofia de Newton, Cartas Filosóficas –, embora a poesia tenha sido, na verdade, o seu primeiro apelo – épica, como o pediam os modos do século – Édipo e Henriada.
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Traduzido por V. Graça Moura, o poema de Voltaire, publicado em edição bilingue (sempre um ponto a favor, na minha opinião) pela Alêtheia, começa por ser um objecto apelativo (passe o assomo de estética valorativa), na sua elegante sobriedade (no que se inclui o bom gosto demonstrado na escolha do papel da capa e do interior do pequeno livro), nos seus tipos bem seleccionados, nas gravuras que enriquecem o opúsculo, nas notas que o tradutor disponibiliza (de Voltaire e de anteriores editores do francês), na disposição, enfim, das matérias da leitura. Prossegue com a qualidade da tradução (que não da revisão, que, essa, deixa muito a desejar e dá muito que criticar), na mão hábil de Graça Moura, num trabalho que faz jus à nobreza do seu percurso (como mero exemplo, atente-se no modo como o tradutor verteu o trecho voltairiano «Tous les peuples, tremblant sous une main divine/ Du mal que vous niez ont cherché l'origine.»: «Cada povo, a tremer, sob uma mão divina,/ na origem para o mal que vós negais se obstina.» [pp. 40-41]) V.G.M. manteve o artifício da rima, logrando, com efeitos francamente notáveis, equilibrar-se, com firmeza e elegância, na dura camisa-de-forças do poema rimado de Voltaire.
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É Graça Moura, ele próprio, quem nos confidencia «a questionável qualidade literária do texto» (p.14), preferindo pôr em evidência, por um lado, a genealogia histórico-literária da obra de Voltaire, e, por outro, as forças pelo autor medidas com nomes como Pope, Leibnitz, ou Bayle. Mediante o fundo temático do poema voltairiano (e não «voltaireano», como mais de uma vez se lê; nem «por que é que»; nem «vou-o consultar» – por todas as entidades celestes, ó senhores revisores do meu país!), V.G.M. passa em revista obras de autores portugueses que, de certo modo, poderiam operar prenúncios ao poema de Voltaire. Assim se alinham nomes como Gil Vicente, ou João Xavier de Matos. Parece-me particularmente profícua a análise que G. Moura leva a cabo, em torno dessa espécie de «batalha dos livros» travada entre Voltaire, por um lado, e Leibnitz e Pope (e não esqueçamos que Voltaire esteve exilado em Inglaterra e que conviveu com Pope, Swift e Locke), do outro – muito simplificando, opondo, do lado destes últimos, a perspectiva de que tudo está bem (que os leitores do Rascunho reconhecerão de outro trabalho de Voltaire), e, do lado do francês, a perspectiva de que, nos seus versos (p.45), «o mal está na terra».
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Poème sur le Desastre de Lisbonne é uma composição una – cujos versos correm com um só fôlego, ao modo de uma pequena épica – de teor especulativo e tom reflexivo, em que o autor discorre sobre a desgraça que impressionou a Europa setecentista (Kant escreveria sobre o terramoto de 1755), assim como a persona do poema voltairiano. Pathos encenado, por certo, mas em que, ainda assim (paradoxalmente), pelo clássico rigor da sua linguagem, assoma o vigor da vida, uma emoção que, de tão sabiamente elaborada em escrita, quase nos parece sincera, sangrada (e não será?) – «vós procurais em paz a causa às trovoadas» (p.37), nos diz a voz segura, pétrea do inviável poeta.
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Perante a desolação de Lisboa, figurada nas páginas de Voltaire (que, em fins de 1755, compôs o seu poema, o qual viria a lume logo no princípio do ano seguinte, em contrafacção [o mal não é de agora], para ser publicado, já com o beneplácito do autor e com os seus acrescentos, nesse mesmo ano), o autor increpa os que crêem ter o melhor dos mundos diante dos seus olhos, clamando contra a sua autocomplacência «Vinde pois, contemplai ruínas desoladas,/ restos, farrapos só, cinzas desventutradas» (p.35). De resto, poderíamos ler no seu poema um edifício retórico em que se pretende, desde os alicerces, erguer a persuasão, mover a virtual audiência, provar um ponto de vista – «Eu respeito o meu Deus, porém amo o universo [quer dizer, «Universo»].» (p.39) Nesse sentido, O Poema sobre o Desastre é uma composição filosófica – «Nada sabido é, nada há que não se tema. À natureza muda as questões pôr não vale» (p.47) – e religiosa – «Deus segura a cadeia e não é encadeado;/ seu benfazejo ser tudo há determinado;/ é livre e justo, e não cruel nem vingativo.» (p.41) –, servida por um rigoroso linguajar: rígido mas preciso, carregado mas vibrátil, o ínvio fulgor de um (neo-)clássico.

Hugo Santos 2007

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