domingo, 11 de novembro de 2007

Lénine e a Revolução


Entrevista com Jean Salem

feita por Carlos Nabais
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Fotos Inês Seixas

Filósofo francês, professor na Universidade de Sorbonne, em Paris, Jean Salem questiona a «história feita pelos vencedores», recusa a criminalização da militância comunista e da história do comunismo, realçando que ao longo de todo o século XX gerações de revolucionários dedicaram as suas vidas aos ideais do progresso da humanidade. No seu mais recente livro, Lénine e a Revolução, que será lançado no próximo dia 26, em Lisboa, pelas edições Avante!, o autor expõe seis teses que sintetizam e demonstram com clareza a actualidade do pensamento do grande revolucionário russo. Com este trabalho em pano de fundo, Jean Salem fala-nos da convicção de que «um dia tudo voltará a acontecer, as explosões sociais, a revolução».

No final do seu livro afirma que «uma reabilitação muito mais do que parcial dos 70 anos de socialismo real acompanhará como condição necessária o ascenso do próximo movimento revolucionário». Peço-lhe que explique esta afirmação.

Quando me refiro à necessidade de «uma reabilitação muito mais do que parcial» não pretendo dizer que a revolução não será retomada enquanto não fizermos novas estátuas a Stáline, pois para isso seria preciso esperar muito tempo.
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Mas, como num sistema de vasos comunicantes, se considerarmos que o stalinismo é algo de quase tão horrível, tão horrível ou muito mais horrível que o nazismo é obvio que isto constitui um extraordinário obstáculo, intransponível para o movimento revolucionário que desejaria apoiar-se na história moderna.
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Se Robespierre é o diabo, se a revolução é uma violência insuportável por definição (estou a falar, sem o mencionar, de um romance que acaba de sair em França, que fala da desgraça de Louis XVII, herdeiro do trono, morto durante a insurreição revolucionária), se Belzebu é Stáline, se toda a história soviética é feita de crimes, se enfim acumulamos números totalmente grotescos que oscilam entre 60 e 140 milhões de vítimas do stalinismo – são números que têm circulado massivamente...

Dir-se-ia que os soviéticos estiveram à beira da extinção!...

Mas, no entanto, Soljenitsin afirma-o no seu livro Arquipélago de Gulag, de cujo primeiro volume foram vendidos em França mais de 900 mil exemplares.
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Isto mostra que estamos confrontados com uma intensa propaganda mundial que, se não for sujeita a uma crítica, à nossa crítica, julgo que o desenvolvimento do pensamento revolucionário, não a sua retomada, seria contrariado, obliterado pela ausência de reacção, designadamente da nossa parte, perante tais mentiras.
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Apesar de tudo, a retomada do pensamento revolucionário está aí e tenho consciência de que para os jovens, rapazes e raparigas de hoje, a questão crucial não é a que se coloca aos da minha geração: será que fomos demasiado complacentes com Stáline, com Khruchov, com Brejnev, com a União Soviética?
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De um certo modo são pontos da história extremamente importantes de esclarecer; de outro, isso não interessará aos jovens ou interessar-lhes-á tão pouco como as querelas em torno da revolução francesa: pertencem ao passado.
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Por isso não transformo numa condição absoluta do movimento progressista ou revolucionário a clarificação da história do século XX, mas penso que, se não travarmos a vaga ridícula e escandalosa de criminalização da militância comunista e da história do comunismo, o movimento social irá perder muito tempo.

Mesmo derrotada «a revolução continuaria invencível». Esta citação de Lénine pode aplicar-se aos 70 anos de socialismo real? É uma experiência que irá permanecer como referência inspiradora para a luta dos povos?

De facto Lénine dizia que uma Revolução mesmo vencida conserva uma espécie de invencibilidade porque permanece na memória dos povos, como um assalto heróico, comparável ao «assalto dos céus», que é a expressão que Marx utiliza a propósito dos comunards da Comuna de Paris que foi derrotada ao fim de três meses.
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Marx utiliza esta expressão porque era um grande conhecedor da filosofia epicurista. A sua tese de licenciatura foi sobre Demócrito e Epicuro. É Lucrécio, discípulo latino de Epicuro, que nos diz que este saiu em imaginação para além dos limites do nosso mundo, percorreu o universo imenso através do seu pensamento e trouxe-nos a verdade dessa viagem, explicando-nos que há um Deus que não se interessa absolutamente nada pelos nossos assuntos, que não intervém na nossa vida, e nessa passagem do poema Da Natureza das Coisas afirma-se que a vitória de Epicuro sobre a religião «nos elevou aos céus». Marx evoca recordações dos seus estudos de juventude quando diz que os communards se elevaram ao «assalto dos céus».
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É óbvio que as épocas heróicas, as épocas de revoluções sociais, deixam na memória colectiva recordações galvanizadoras, mais capazes de nos tornar optimistas em relação à natureza humana do que épocas como a que atravessamos presentemente – ou aquela em que igualmente viveu Epicuro, a época de decadência da Grécia – em que tudo se compra, tudo se vende. As pessoas descrêem nos políticos, vêem-nos como demagogos, impostores e gente corrupta…
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As épocas de crise, de decadência não são particularmente entusiasmantes e tendem a deprimir os que nelas vivem. Por isso a nostalgia de um país que derrotou o nazismo, que mostrou que a planificação permite evitar a anarquia da produção capitalista (que apenas visa a obtenção de ganhos para certas camadas privilegiadas e não a satisfação propriamente das necessidades da população) é um sentimento que não pode ir muito longe mas tem o seu papel político.
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Os jornais falam de um sentimento massivo de nostalgia pela ordem antiga na antiga República Democrática Alemã que parece aumentar cada vez mais. Ninguém duvida de que, se se realizasse um referendo na Rússia, as pessoas responderiam que estavam melhor antes do que agora.

Pelo menos assim o dizem algumas sondagens…

Mas até em recentes eleições podemos ver esse reflexo da época soviética, que tem permitido alguns sucessos eleitorais incontestáveis, talvez indesejáveis para os ocidentais, talvez até indesejáveis em si mesmo, já que têm catapultado figuras que não são militantes comunistas convictos, isentos de qualquer suspeita de corrupção.
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Aquilo que até agora mais marcas deixou na minha vida foi o facto de ter convivido durante a época soviética e comunista com massas de gente maravilhosa, e de ver, neste período de amargura, que muitos daqueles que eram de esquerda em Maio de 68 (les soixante-huitards), em Paris ou em noutros lados do mundo, se tornaram criados ou ideólogos da direita.

Pessoas como Cohn-Bendit?...

Sim, como Cohn-Bendit ou Bernard-Henry Lévy, gente que não me deixa grandes recordações. É preciso rir, tal como de certas personagens da época de Epicuro, rir…
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A nostalgia não nos fará avançar, mas há uma verdade política neste sentimento, que resulta, pelo menos no Ocidente, da ausência de ideais. As pessoas acreditam que deve ser possível ter uma classe política não corrompida, menos ridícula, menos show bisness. A prova é que os jovens adoptaram o Che como um produto de marketing; todos eles admiram Mandela - sabem que ele é de uma estatura diferente dos chefes ocidentais.

A revolução continuará invencível

Este livro Lénine e a Revolução, para além de reafirmar de forma contundente a actualidade do pensamento do grande revolucionário russo é também uma contribuição para a reabilitação da história do socialismo. Por que decidiu começar com Lénine?

Na Universidade de Sorbonne, onde lecciono, o meu predecessor, Olivier Bloch, um filósofo, que é um homem muito activo apesar de estar reformado, quis organizar um colóquio intitulado «A Ideia de Revolução: Qual o seu Futuro no Século XXI?».
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Como ninguém pensou em falar de Lénine, disse-lhe que seria importante que alguém se ocupasse desse tema. Foi aí que tive a ideia de fazer este livro. Como a intervenção que preparei para esse colóquio acabou por ter uma dimensão considerável, decidi viver seis meses com as Obras Completas de Lénine em francês a meus pés, que frequentemente alternava com a consulta da edição russa na Biblioteca Nacional de França, em Paris.
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Ocorreu-me instantaneamente que se há um «cão morto» na história das ideias – para utilizar a expressão de Marx que dizia que Engels era tratado na sua época como um cão morto –, ele é sem dúvida Lénine.
Fala-se de um regresso a Marx, o Che é utilizado como produto de marketing como já disse, mas muito poucas pessoas falam de Lénine. Considera-se, hipocritamente ou não, que não tem qualquer interesse, que se trata de ideologia, ou que é o Belzebu, o anticristo, o irmão mais velho de Stáline, por um fio apenas mais recomendável que este.
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Decidi-me dar amplidão a este estudo sobre a ideia de revolução em Lénine, pensando que seria útil para corrigir alguns hábitos que adquirimos nos partidos comunistas ocidentais, entre os anos 65 a 80, quando ainda estavam de plena saúde.
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Por exemplo, começou-se a falar da possibilidade de passagem pacífica para o socialismo e, pouco a pouco, a ilusão de que a revolução consistia em obter 51 por cento dos votos para a esquerda tornou-se num hábito de pensamento quase religioso face aos resultados eleitorais, que gerou a incapacidade de compreender que o famoso sufrágio universal nos países ocidentais há muito se tornara numa concha vazia.

No entanto, no seu livro, não se limita a fazer a síntese do pensamento de Lenine, debruça-se igualmente sobre o socialismo na URSS e critica severamente a historiografia mais divulgada.

Sim. O livro é composto por três partes. A terceira parte que é uma espécie de panfleto sintético «Dez minutos para acabar com o capitalismo», resultou de uma conferência «muito digna» do Partido Comunista Francês dos nossos dias, em que pediram a vários especialistas em marxismo, incluindo-me a mim que sou só meio especialistas nesta área, para falar sobre a actualidade do marxismo em dez minutos. Isto é a fotografia de uma época. Fiz então um pequeno panfleto para cumprir aquela norma um pouco rígida.
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A segunda parte responde ao título do livro. Trata as teses de Lénine sobre a revolução. Na primeira parte tomei de facto a liberdade de dizer algumas verdades a meu gosto e explico como Lénine entrou na minha vida.
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Aí recordo que os meus pais «escolheram a liberdade», depois de terem sido alvos da repressão na Argélia e mais tarde em França, sobretudo o meu pai que «escolheu a liberdade» evadindo-se das prisões francesas onde foi torturado pelos pára-quedistas franceses.
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Atravessaram a «cortina de ferro» na direcção de que nunca se fala e eu encontrei-me em criança em escolas soviéticas, primeiro na Checoslováquia, na escola da Embaixada da URSS, e depois, já na Rússia, na Casa Internacional da Infância, em Ivánovo.
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Éramos centenas de crianças, filhos de gregos, de iranianos, martirizados pelos defensores do «mundo livre», torturados, assassinados em prisões do Xá ou durante a liquidação da resistência grega pelos britânicos.
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Esta experiência algo particular deu-me o conhecimento da língua russa e despertou-me o interesse pelo marxismo e por Lénine.
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Depois visei quatro pontos essenciais: As asneiras que se dizem sobre 70 anos de sovietismo, como se tivéssemos o direito de stalinizar todo o período; as asneiras a propósito do totalitarismo, conceito que é utilizado para os mais variados fins (quando se pretende atacar um regime, norte-coreano ou iraniano, fala-se de totalitarismo); as asneiras em relação ao fim da União Soviética e, finalmente, as que se dizem sobre a política soviética nas vésperas e após a II Guerra Mundial.
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O cineasta norte-americano Kens Burns explicou a um jornal que se decidiu a fazer o documentário «A Guerra» (The War), porque 40 por cento dos jovens americanos entre os 15 e os 18 anos pensam que a II Guerra Mundial opôs os Estados Unidos e a União Soviética. Outra sondagem em França indica que a maioria dos jovens franceses pensa que a União Soviética foi aliada da Alemanha nazi.

Na primeira parte desta obra denuncia com alguma insistência a tentativa por parte da historiografia burguesa de stalinizar inteiramente o período soviético. E contrapõe defendendo que se deveria falar «não de um regime mas antes de regimes soviéticos», tendo em vista as «diferentes fases» da sua história. Que fases são estas?

Fiz estudos em história de arte, mas não sou um historiador profissional, sou um estudante. Sou profissinal de filosofia, escrevo livros de filosofia, hoje há quem se diga filósofo por muito menos, mas a minha disciplina é de facto a filosofia.
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Todavia, acho impensável que depois de se ler a história da URSS, mesmo que superficialmente, de se ouvir falar de destalinização, do famoso relatório de Khruchov ao XX Congresso do PCUS, se insista em enfiar no mesmo pacote os 70 anos de socialismo soviético.
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Não podemos afirmar que Khruchov e Stáline são idênticos, que o são Andropov e Stáline ou Brejnev e Stáline.
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As discussões sobre o exercício despótico do poder, iniciadas durante o período soviético na própria União Soviética, são um sinal evidente de que não se tratou de um cancro associado à essência do sistema mas de um problema que merece ser debatido e estudado e que terá sido condicionado também por determinadas circunstâncias históricas.
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De resto é um problema localizável. Até Hannah Arendt [autora alemã que tenta assemelhar o nazismo e o comunismo como ideologias totalitárias] situa esses períodos nos anos 32, 36, 37 e 38.
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Temos de estudar a história seriamente, não como muitos sovietólogos que se dedicam a criar slogans. Um deles até já ousou escrever (cito Alain Besançon, membro da Academia das Ciências Morais e Políticas de Paris), que em matéria de soviétologia «nem sequer vale a pena mantermo-nos actualizados. O que é preciso é aprender a crer no inacreditável». Eis pois uma afirmação extraordinária de alguém que passa por um sábio.
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Uma das questões que temos de abordar com seriedade é a aritmética macabra que nos foi imposta. Eu peço que nos expliquem esta história digna de um conto de fadas, que recorre a categorias do tipo Branca de Neve e os Sete Anões.
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Em 1956 tinha apenas quatro anos de idade. Só mais tarde, naturalmente, ouvi falar do XX Congresso do PCUS. Nos anos 70, era eu membro das juventudes comunistas em França, começou-se a falar cada vez com mais frequência de um milhão, dois milhões, de três ou quatro milhões de vítimas da repressão stalinista, pressupondo-se evidentemente que numa revolução nem todos os mortos são vítimas inocentes executadas por erro.
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Entre os anos 70 a 85, ou seja 30 anos depois do XX Congresso, assistiu-se ao inflacionamento demencial dos números (40 milhões, 60 milhões, etc.), a uma assimilação grotesca do stalinismo ao nazismo, e logo do sovietismo e do socialismo em geral ao nazismo.
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O que penso é que esta aritmética macabra tem de ser verificada e, evidentemente, desmentida já que é demasiado extraordinária para poder ser verdade.

É sabido que o XX Congresso do PCUS pouco mais guardou de Stáline que o seu papel na derrota do nazi-fascismo. No entanto, não haverá que reconhecer a Stáline um papel proeminente em todo o período da construção do socialismo?
Refiro-me designadamente aos enormes avanços da revolução nos anos 30 que se revelaram decisivos para o desfecho da guerra e permitiram a afirmação vitoriosa do socialismo como sistema mundial
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No meu livro refiro a cidade de Volgogrado, antes chamada Stalinegrado, onde se produziu a viragem da guerra. É uma espécie de Hiroxima onde as pessoas andam sobre dois milhões de mortos.
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Pierre Roederer [político francês que participou no golpe bonapartista de 1798] dizia que não recusava nenhum período da história de França, incluindo o período da revolução.
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Se não quisermos limitar-nos a fazer discursos de moral – como os «filósofos» mediáticos, os think faster que vemos nas televisões sempre do lado do bem e contra o mal – então temos de tomar a revolução como um todo.
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Numa revolução não se pára ao primeiro morto que se encontra, sobretudo, como dizia Robespierre, se esse morto é um general que massacrou dois mil patriotas: «Queríeis uma revolução sem revolução?», perguntou ele.
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Lénine e muitos outros contavam com a revolução mundial. Desde Marx que se pensava que a revolução começaria nos países mais industrializados, onde o proletariado era mais forte e onde as tradições democráticas burguesas já estavam bem enraizados nas massas, tais como a Inglaterra, a Alemanha, a França.
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Durante três ou quatro anos após a revolução de Outubro, Lenine pensou que o enorme clarão revolucionário na Rússia e nas colónias do império czarista iria rapidamente alastrar a países verdadeiramente «amadurecidos» para a revolução proletária.
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No entanto, com o fracasso do Exército Vermelho na Polónia [1920], para o qual contribuiu a ajuda militar dos franceses; com a derrota da revolução dos sovietes na Hungria [1919] e sobretudo após o massacre dos espartaquistas na Alemanha [1919] a história tomou um rumo diferente, levando Lénine a concluir que seria necessário construir o socialismo num só país.
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Uma revolução, como Marx e Engels não se cansaram de dizer, é sobretudo uma confrontação de forças, ou seja, ela não se faz se não pela força. Isso não significa que seja necessário provocar torrentes de sangue.
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De qualquer modo, Marx observa que a teoria só se torna uma força material quando está amparada nas massas. Ou seja, se milhões de pessoas se manifestarem nas ruas por uma ideia, por uma vontade, se fizerem greve durante um certo tempo podem, em determinadas circunstâncias, provocar a queda do poder. Isto é, pode não ser necessário pegar em armas.
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Tal não significa que os marxistas façam uma religião do pacifismo ou recusem toda a violência, uma vez que se trata de pôr fim a uma violência permanente que é exercida pelo sistema sobre os oprimidos.
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A propaganda dos privilegiados escolhe sempre os seus alvos de forma selectiva. Há quilómetros de páginas impressas sobre determinados acontecimentos enquanto outros, com consequências semelhantes ou muito piores, são silenciados.
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Por exemplo, os famosos horrores cometidos pelo regime de Saddam Hussein nas aldeias curdas são pouco significativos quando comparados com os crimes de guerra perpetrados pelos norte-americanos no Vietname. Não peço que canonizem Saddam Hussein, mas será que os norte-americanos alguma vez foram julgados ou apresentaram desculpas pelo que fizeram? Pelo contrário, alegam que os vietnamitas exageram o que se passou… o «agente laranja», a utilização generalizada de armas químicas, etc.
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Aliás, antes da revolução de 1917, Lénine escreveu que os dez milhões de mortos e vinte milhões de estropiados da I Guerra Mundial, que apenas favoreceu os interesses dos negociantes de canhões, serão vistos pela burguesia como algo de perfeitamente normal e como um sacrifício inteiramente legítimo, mas se se registarem algumas centenas de mortos durante uma revolução, dir-se-á que foi um massacre bárbaro provocado por bárbaros.
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Para responder à sua pergunta, é óbvio que a inacreditável resistência oferecida pelos povos da URSS, que fez virar o rumo da guerra, é uma fotografia, um referendo perfeito sobre o que pensavam dessa época soviética os que nela viviam.
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O povo de que falamos não se sentia apenas como uma vítima aterrorizada – era parte envolvida numa dinâmica revolucionária, com os seus desvios, os seus erros, os seus crimes.
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Alguns historiados não comunistas britânicos e americanos, quer logo a seguir à guerra, quando o prestígio da URSS era enorme, quer hoje, como um certo Michael Coney, que cito no meu livro, consideram como um facto evidente que o anticomunismo foi, a cada passo, um dos elementos, se não mesmo o principal elemento, que permitiu a corrida à guerra.
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As potências ocidentais fizeram tudo para deixar as mãos livres a Hitler na sua cruzada a Leste. E o facto de a maioria dos jovens em França acreditar que a URSS era aliada da Alemanha na Guerra é o resultado da intensa propaganda em torno do pacto germano-soviético.
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Quantos sabem que o pacto germano-soviético [Agosto 1939] teve lugar um ano depois do acordo de Munique [Setembro 1938], que foi uma espécie de conselho de guerra de Hitler, no qual a Inglaterra e a França, entregando-lhe a Checoslováquia e abandonando os seus aliados, o convidaram a voltar-se para Leste?
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Quem sabe que após o discurso contra a guerra pronunciado por Maurice Thorez, então secretário-geral do PCF, em Estrasburgo, o governo francês apresentou à Alemanha um pedido formal de desculpas por «esta provocação dos comunistas»?
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Não digo que tudo tenha sido bem feito, mas é preciso lembrar que a URSS, que tinha sofrido a intervenção de 20 potências coligadas para derrotar a revolução em apoio dos brancos na guerra civil, tinha de utilizar todas as possibilidades para evitar uma nova guerra. Não vejo que pudesse ter agido de forma diferente.

No seu livro recusa o termo «queda da União Soviética» notando que «ela não caiu sozinha». Que causas, em sua opinião, terão levado ao desaparecimento da URSS?

De facto toda a gente utiliza termos como queda, desmoronamento, desintegração implosão e outros no mesmo sentido para caracterizar os acontecimentos na URSS entre 1989 e 1991.
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Mas sabemos que não houve nenhuma deflagração termonuclear, nem temos notícia de que a União Soviética se tenha «desintegrado» na sequência de um conflito militar.
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Os manuais de história também falam de «queda» da monarquia, mas Albert Soboul [historiador francês] dizia sempre que «ela não caiu sozinha», por isso deve dizer-se derrubamento da monarquia.
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Eu digo o mesmo em relação ao fim da União Soviética. Aqui partilho a análise do meu colega italiano Domenico Losurdo, quando observa que a multiplicidade de factores internos, vivida num «contexto de autofobia» dos antigos comunistas, que parecem falar de uma história da qual se deveria ter vergonha, faz com que nos esqueçamos de alguns «detalhes».
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Por exemplo, que todo o período desde 1945 até ao fim da União Soviética foi enquadrado por avisos extraordinariamente precisos do ponto de vista militar dados por parte do imperialismo norte-americano.
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Embora tentem reduzir o século XX ao gulag e aos campos nazis, a verdade é que, em apenas alguns dias, as bombas termonucleares de Nagasaki e Hiroxima mataram cerca de 300 mil pessoas. Mais grave do que o chamado totalitalismo, assistimos no século XX ao surgimento de um novo conceito que designo por «exterminismo». Os campos de extermínio nazis e o lançamento das bombas nucleares são os dois fenómenos do século passado que permitiram massacrar num tempo mínimo um máximo de pessoas. Mas isto é esquecido…
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Praticamente ninguém contesta que o lançamento das bombas sobre as duas cidades japonesas constituiu sobretudo um aviso à União Soviética. Não creio também enganar-me se disser que o governo de Ronald Reagan esteve na origem de um agravamento generalizado do clima internacional com o programa de defesa estratégica, conhecido como «guerra das estrelas», que foi lançado apenas alguns anos antes do fim da União Soviética.
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Segundo disse o próprio Reagan, o objectivo da «Iniciativa de Defesa Estratégica» era colocar de joelhos a União Soviética.
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Ouvi milhões de vezes que a União Soviética gostaria de se desenvolver para fornecer mais produtos e de melhor qualidade ao seu povo, mas que infelizmente tinha de canalizar enormes recursos para as despesas militares devido à corrida aos armamentos imposta pelo Ocidente.
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Ora, é extraordinário que praticamente não se fale desta questão. Não posso determinar o seu peso, mas parece-me óbvio que teve alguma influência nessa «queda».

Apesar da inegável influência dos factores externos, fortíssima desde o início e condicionadora de todo o percurso da URSS, que importância atribui aos factores internos que, em especial no período de 1985-1991, determinaram a dissolução do país e a instauração do capitalismo?

Ninguém pode afirmar que uma equipa de pessoas tenha, por si só, sido capaz de provocar o desaparecimento de um Estado. Contudo, sem dúvida que o período da «perestróika» foi marcado por uma política de capitulação e acomodação ao Ocidente que ajudou e acelerou o trabalho intenso com vista a destruir militarmente e por outros meios a existência do campo socialista.
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Não deixa de ser curioso observar que o facto de um grupo de pessoas, que conseguiu içar-se à cabeça do Estado, ter podido criticar o stalinismo e todos aqueles que lá tinham estado antes, fazendo crer que tudo o que havia naquele país estava errado, prova que afinal o «terror» nesse país não era assim tão grande como se diz.
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Ao contrário de muitos comunistas que conheci – autênticos heróis que passaram pelas prisões, resistiram à tortura e que quando chegaram ao fim das suas vidas a única coisa que tinham ganho para si era a estima dos seus vizinhos, comunistas e não comunistas - Mikhail Gorbatchov terminou a sua carreira a fazer publicidade de pizas e malas de marca.
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De resto, as confissões da sra. Thatcher e dos seus ministros são bem reveladoras a propósito da figura de Gorbatchov. Foi ela que disse que encontrar um soviético assim era «um sonho que jamais tinha ousado sonhar».
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Mas até comunistas convictos se interrogaram porque não mais democracia? Mais comunicação e transparência? Porque não um líder moderno, diferente daqueles que tínhamos visto, demasiado velhos e antiquados?
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Estávamos ainda no começo quando Gorbatchov fazia os seus primeiros sorrisos ao Ocidente. Tinha então começado a dizer que havia valores bem mais importantes que o socialismo, que havia valores universais como o da paz.
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Toda a gente é a favor da paz, sobretudo os comunistas. Mas trata-se de saber se é a paz que permite ao socialismo sobreviver ou se é o socialismo, com a sua força, que impõe a paz ao campo capitalista que é sempre agressivo?
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Basta olharmos para a história do imperialismo ocidental para vermos que praticamente ela se resume a guerras de conquista e de rapina... O mundo continua a ser hoje devastado pelas guerras do imperialismo americano.
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A minha interrogação não é sobre a possibilidade de tudo voltar a acontecer. Estou certo de que um dia tudo voltará a acontecer, as explosões sociais, a revolução. A minha única angústia é recear que voltemos a cair na burocracia, na corrupção, noutra Catastróica, para citar o livro de Alexandr Zinoviev, o único deste autor que não teve êxito no Ocidente, não só porque é pró-soviético mas sobretudo porque é uma denúncia muito forte da corrupção que cobriu todo o período da «perestróika».

A social-democracia foi a bóia de salvação do capitalismo

- Depois da II Guerra Mundial, gerações de revolucionários, como a de seu pai Henry Alleg, acreditaram firmemente que a vitória do socialismo a nível mundial estaria próxima. Pensa que se tratou de um sonho ou de uma convicção fundada em razões sólidas?

Para muitas pessoas que viveram nos anos 30 e assistiram ao enfraquecimento das forças de esquerda – período que infelizmente nos faz pensar nos tempos actuais –, as alterações verificadas no pós-guerra foram muito mais do que simples sinais de que o mundo está à beira de uma mudança.
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Na Europa uma dezena de países tinha passado para o campo do socialismo; o movimento de libertação nacional em rápida ascensão transformava as ex-colónias em estados e os seus dirigentes falavam quase todos em socialismo; somava-se ainda um sólido movimento operário nos países ocidentais, com grandes partidos comunistas.
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Embora na década de 70 já se falasse muito da crise do marxismo e do comunismo, a verdade é que, todos os anos, um ou mais países passava para o campo anti-imperialista.
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Lembremo-nos da Nicarágua, do Afeganistão (país onde houve uma revolução antes da chegada da ajuda militar soviética), de Moçambique e Angola, da revolução do 25 de Abril em Portugal ou mesmo do processo de democratização em Espanha.
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Era uma evidência que o movimento progressista continuamente se reforçava. O capitalismo estava em franco recuo. De tal forma que um editorialista do Le Fígaro, um jornal francês de direita, chegou a escrever que, até 1983, ele próprio pensava que a vitória do comunismo era irreversível.
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E se isto era assim neste período, quando eu já era uma espécie de «último dos moicanos» em Paris, no pós-guerra a perspectiva de que o mundo seguiria nessa direcção era segura e parecia inevitável.
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Neste quadro, a social-democracia constituiu para o capitalismo uma extraordinária bóia de salvação. Mais uma vez no século XX, a partir de 1981, políticos pró-capitalistas tomaram a dianteira não só de partidos de direita mas também de partidos que tinham raízes operárias e eram reputados como de esquerda.
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Dançou-se nas ruas de Paris quando Miterrand foi eleito em 1981, dançou-se nas ruas na Grécia quando os socialistas ganharam… Sabemos que tudo isto terminou num desespero generalizado perante duros planos de austeridade e medidas neoliberais.

A sexta tese que formula do pensamento de Lenine assinala o «deslocamento tendencial dos focos da revolução para os países dominados». Considera que os processos actualmente em curso, designadamente na América Latina, confirmam esta tese leninista?

Penso que essa tese foi plenamente confirmada no II Encontro de Serpa, «Civilização ou Barbárie», onde passei três dias extraordinários com camaradas, universitários ou não, vindos de muitos países do mundo.
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Todos os que se interessam pelo marxismo e são fiéis ao ideal comunista concentram-se largamente nos processos que decorrem na América Latina, o que não exclui o resto do mundo dominado e o mundo em geral.
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Não serei eu a fazer prognósticos sobre o que se irá passar, mas temos assistido a transformações importantes nestes últimos anos na Argentina, Brasil, e sobretudo na Venezuela e na Bolívia. Penso que nada disto se teria passado sem a presença de Cuba, país que o imperialismo não conseguiu anular apesar de todos os esforços.
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Na Universidade francesa tornou-se uma moda manter contactos com países da América Latina. Muitos professores seguem com atenção os acontecimentos que lhes recordam a sua própria juventude, o que é algo de novo. Deixou de haver entre os intelectuais de Paris apenas um clima de histeria e hostilidade em relação a tudo o que evoca a juventude da minha geração.
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Lénine recorda-nos que em países capitalistas desenvolvidos é muito possível que haja todas as aparências da democracia do ponto de vista da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, e evidentemente do ponto de vista económico. É muito possível que nestes países a classe operária possa recolher algumas migalhas da pilhagem das nações colonizadas e que a atmosfera social seja inteiramente agradável.
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Isto é com muita frequência esquecido pelos comunistas de antigos países coloniais, designadamente em França. Mas foi o que se passou durante a «gloriosa trintena», o período de crescimento que se seguiu à II Guerra Mundial.
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Os bens de consumo tornaram-se acessíveis a imensas camadas da população, em particular às camadas médias mas também ao proletariado até um certo nível. As pessoas estavam então seguras de que os seus filhos viveriam ainda melhor do que elas.
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A partir dos anos 1910-1915 Lénine assinala que será provavelmente nos países pilhados, nos países dominados (Marx e Engels já se tinham interessado pela luta dos irlandeses, pelos acontecimentos na Índia, na Argélia), que os grandes cataclismos deste século poderão acontecer.
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Isto não nos impede de continuarmos a lutar nos nossos países, como de resto tem acontecido e continuará a acontecer à medida do agravamento dos problemas sociais. Hoje há pessoas que vivem em Paris em condições idênticas ou piores às dos países do terceiro mundo… há 30 mil sem abrigo nas ruas de Paris!
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Poderemos contar com novas obras suas de estudo e reflexão sobre a experiência socialista que marcou o século XX e toda a história da humanidade?
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Nos últimos doze anos trabalhei essencialmente sobre assuntos mais técnicos do que políticos, o que aliás terá correspondido à própria época, talvez tenha sido um recuo táctico, uma vez que quando pronunciávamos o nome de Marx os estudantes em Paris largavam a caneta da mão. Isso e outras razões levaram a que me consagrasse ao estudo de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, materialistas da antiguidade grego-latina.
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Depois de pequenas «guerras» indignas na Universidade (que não tiveram grande importância, mas mostram que também em França, país onde o marxismo teve grande importância, houve, como por todo o lado no mundo, uma verdadeira caça às pessoas suspeitas de serem marxistas) tornei-me finalmente professor de História da Filosofia.
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Tive a sorte de suceder a colegas que se reformaram, antigos comunistas, que conduziam seminários de história do materialismo com uma vertente de investigação consagrada à história das ideias dos séculos XVII-XX.
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Embora tenha continuado a fazer trabalhos sobre história da filosofia, pude então dedicar-me a outros temas, como à obra de Guy de Maupassant, romancista francês de que gosto muito, ou de Feuerbach [filósofo alemão]. Fiz até um livro de carácter mais pessoal sobre o prazer específico que provém da luta, onde cito autores como Amado, Neruda e outros.
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Actualmente, na universidade de Sorbonne organizamos um seminário designado «Marx no XXI século», que reúne quinzenalmente cerca de uma centena de pessoas e este ano esperamos duzentas pessoas. Convidamos normalmente oradores conhecidos, como Domenico Losurdo, Slavoj Žižek, George Labica.
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Não é o jornal Iskra, mas quase. É um local de reunião de todos os solitários que não suportam mais o manto de chumbo de censura que cobre os estudos marxistas.
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Mas, para responder à pergunta, há muito que tenho a intenção de escrever qualquer coisa sobre a robotização das massas, a manipulação dos espíritos, numa palavra sobre os media. É uma ideia que já tenho há 25 anos.
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Desde então muito se escreveu sobre o assunto, mas não está tudo dito, sobretudo no que diz respeito ao delírio da propaganda anticomunista, assunto que cheguei a abordar num pequeno trabalho publicado em 1985 som o título, «Cortina de Ferro no Bulevard Saint Michel, notas sobre a representação dos países ditos de Leste na elite cultivada do povo mais espiritual do mundo».
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Penso seriamente num novo trabalho sobre a uniformização das consciências e, em primeiro lugar, do inconsciente humano, do embrutecimento das massas, retomando a obra dos fundadores do marxismo-leninismo nos aspectos que podem ser utilizados na luta de hoje. Não posso ser mais preciso.
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in Avante 2007.11.08

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