domingo, 11 de outubro de 2009

Poesia de Natália Correia

In DIMENSÃO ENCONTRADA

  • A Mágica dos Movimentos Perpétuos
  • Para aquela que morreu inexplicavelmente porque era amada
  • Queixa das almas censuradas
  • A Recusa das Imagens Evidentes

A Mágica dos Movimentos Perpétuos


Diego Rivera

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Quando sobe o Teu instante ao meu olhar

Numa centelha da Tua permanência

Há um som que fica por vibrar

Nos instrumentos naturais da consciênicia.

Puxam-se os membros fios irreais

Manejados por mãos sem aparência;

E se volto a cabeça para trás

Ouço o rumor de estranhas confidências.

Assim regresso à era que pressinto

Encerrada e latente no meu pulso.

Pois que o presente não é mais que impulso

Da eternidade onde entro por instinto.

In Dimensão Encontrada,
Poesia Completa

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para aquela que morreu inexplicavelmente porque era amada

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Craig Mullins Craig Mullins

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Chegaste e eras o ar. Agora sei
que era já ar o rosto que tiveste,
Pois no oráculo do vento decifrei
Que não és rosa nem ave nem cipreste.

Talvez que a tua aragem no meu braço
Seja o amor que agora eu te mereça.
Mas se adormeço é sempre em teu regaço
Que os anjos me coroam a cabeça.

Talvez seja eu a morta. E tu ao lado
Não tenhas mãos para me abrir a porta
Nem haja porta se te sinto ao lado.

Talvez nem sejas tu nem eu nem nada
Enrolada no rasto desta estrela
Que me arrastou na sua queda errada.

Talvez outras areias sem areias;
Talvez um outro Abril sem rosas bravas;
Talvez a direcção das tuas veias
Para a esfinge que não te suspeitavas.

Talvez a que já era antes de ti
Agora nos meus limos afogada.
Mas só porque te olhei e não te vi
Tu vens ao cimo e não me dizes nada.

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in Dimensão Encontrada
Poesia Completa

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queixa das almas censuradas

Francesco Clemente Francesco Clemente

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Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

in Dimensão Encontrada,
Antologia Poética

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A recusa das imagens evidentes


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Collection:Ger Stallenberg, Mystic Garden II

I

Rosa que só tens nexo
Fora da tua imagem:
Aqui és só reflexo
Do universo unido
No instante florido
Que ofereces aos que te olham,
Sem te ver, de passagem.

II

Girassol que na retina
Da planície se dissolve.
És a cor mais repentina
Da aragem que te envolve.

Girassol que só te viras
Ao que não te fica perto
E só giras porque giras
Sobre o teu eixo secreto.

Girassol que sem volume
Volume que sem contorno
No despegar-se resume
Só a pressa do retorno.

III

É um outono que não é outono.
Tampouco a estação por que se espera
Na dor de nos deixarern ao abandono
As ninfas que são flores na primavera.

No entanto nas coisas o segredo
De uma só alma põe a sabedoria
Dando à terra repouso no arvoredo
De que o cedro é a sagrada biografia.

IV

Há noites que são feitas dos rneus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca forarn feitas.

Há noites que levarnos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
A mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nos fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.

V

Há um cipreste que se dissimula
No dia que nos leva pela mão.
E entre brasas de sol que ardem na rua
Uma pomba que faz de coração.

Voa: uma linha recta para a lua
Em sonhos que nos levam de balão.
Perversidade de uma paz futura
Onde só chegaremos de caixão?

E nada nos recorda esse futuro
Escondido atrás das nuvens que trouxeram
Ao nosso rosto os olhos prematuros
Das órbitas reais que nos esperam.

In Dimensão Encontrada,
Poesia Completa

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