quinta-feira, 4 de março de 2010

história oral angolana em A Casa Velha das Margens de Arnaldo Santos

 
Congresso de Literaturas Africanas
Língua Portuguesa

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Alberto Oliveira Pinto
(CEA/FLUL – Universidade de Lisboa)
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história oral angolana em A Casa Velha das Margens de Arnaldo Santos
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Resumo
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A leitura de A Casa Velha das Margens de Arnaldo Santos permite-nos entrever uma história de Angola alternativa à que emerge do discurso escrito colonial, ainda presente na memória dos angolanos, e que vai ao encontro da que o registo oral, desaparecido ou silenciado, procurava preservar. Este romance mostra-nos como só o povo angolano pode hoje reabilitar a sua memória histórica silenciada, guardada nas suas tradições, e a partir dela construir uma nação cultural e política que tenha por referência os heróis como Domingos, que se embrenha na mata para lutar pela independência. Esse povo angolano é constituído pelos excluídos, cujo testemunho silencioso, de par com a enunciação no súngui dos provérbios, das adivinhas, dos muimbos e das makas, assim como as mucandas dos ambaquistas e os poemas de Kuxixima kia Muxima, parecem ser a única via para que Angola se liberte da letargia a que o colonialismo e o neocolonialismo a condenaram e os angolanos se conheçam, finalmente, a si próprios.
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Abordaremos neste estudo os modos como os processos tradicionais de narração oral da história de Angola interferem no discurso do romance histórico angolano contemporâneo em três perspectivas: a das adivinhas, das makas e dos provérbios, “géneros” narrativos emergentes da conversa ao serão, o súngui, a das mucandas dos ambaquistas e a da narrativa épica.
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Arnaldo Santos e as Margens da Casa Velha
Por: Aline VAN DER SCHMIDT

As margens
Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem.
BRECHTii
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O romance A casa velha das margens do escritor angolano Arnaldo Santos, publicado pela primeira vez em 1999, em Portugal, é um dos 24 livros que integram a Coleção Biblioteca de Literatura Angolana, sendo reeditada em Luanda em 2004, organizada pela Maianga Produções Culturais, União de Escritores Angolanos e Organização Odebrecht, tendo seu lançamento realizado no Brasil em maio de 2005. Com a Angola do século XIX como pano de fundo, o romance conta a história de Emídio Mendonça, "filho de duas margens", de um lado a portuguesa e de outro a angolana. A personagem, por conta da morte do pai, retorna de seus estudos em Portugal para a sua terra natal, Massangano, com expectativas de herança. Em lugar de receber bens materiais, encontra "morte, abandono, ruína"ii: a queima da casa de sua infância e a descoberta da morte de sua mãe, acontecimentos envoltos em mistérios. Ao mesmo tempo em que Emídio é visto pelos portugueses como apenas mais "um saloio pardo do Reino?!"iii, ele já não tem mais o sentimento de pertencimento àquela terra, Não conseguia esconder a irritação, momentos antes tinham andado a calcorrear os antigos caminhos da fazenda, e aquela visita deixara-lhe ainda mais acabrunhado. Tantas vezes na infância lhes percorrera, correndo à compita com Domingos, mas, dessa vez, caminhara distraído, não tinha conseguido reencontrar o antigo sentimento de também pertencer à floresta, apalpava como um estranho o chão coberto de folhas, pisando devagar, desviando com a ponta da catana o capim que começava a invadir as picadas da fazenda.iv pois as pesadas botas de conquistador, que recebera em sua partida para o Reino, deralhe um estatuto de "menino Emídio"v, no entanto "os sapatos não permitiam correr [livremente] pela fazenda"vi, eles já não mais permitiam reconhecer os antigos caminhos. 
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Nas ruínas da Casa Velha, Emídio Mendonça reconstrói, através das lembranças das relações de seus pais, as suas duas margens. De um lado, temos a figura paterna, o tenente da Conquista António Mendonça ou Ngana Makanda, português e chefe do conselho da região de Massangano, que revela uma postura mais flexível que outros portugueses, como, por exemplo, a mistura dos códigos: [...] ele fora amenizando a sua linguagem numa outra fala de puxar amizade e o sentimento livre das coisas, as palavras ocorriam no quimbundo e no português consoantes, se comunicando indistintamente.vii 
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Ao mesmo tempo, mantém uma postura extremamente colonizada ou mesmo colonialista, como quando ele envia seu filho para estudar em Portugal com o objetivo de aprender a falar o português corretamente e ser "civilizado": 
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-Por estas e por outras, é que ele tem que embarcar o mais depressa que puder,... está a ficar um selvagem... - falara seu pai no compadre, explicando depois, mais detalhadamente, a razão.viii 
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A razão será declinada imediatamente, apontando para a outra margem da situação de Emídio. Desse outro lado, temos Kissama, sua mãe, "filha da terra", uma mulher livre que fora "tomada" por António Mendonça, para co-habitar. Ela, como forma de resistência, se recusa a falar português e a obedecer aos costumes lusitanos. As palavras do pai definem sua posição, apontando os preconceitos de ambas as partes: 
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-Lá na fazenda ainda é pior no meio da pretalhada... A Kissama, a mãe dele... é obstinada e não diz palavra em português... Faz perder a paciência ao mais santo....ix Apesar de saber a língua do colonizador, Kissama usa a sua língua e ao mesmo tempo o seu silêncio como uma forma de resistência, desdém e distanciamento: -Kika ki atuxila kuku’etu... - dissera-lhe uma vez, sorrindo, como pretendendo introduzir-lhe no mistério do seu desdém. E, nesse dia, confessar-lhe-ia sem que ele lhe entendesse que os brancos não lhes podiam dar nomes; só mesmo quem herdara os espíritos dos seus antepassados é que tinham o poder para fazer.x 
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Nesse trecho, Kissama questiona esse seu nome que recebeu do outro - o companheiro português, europeu e branco. Ela remete a tradições africanas, segundo as quais o nome define a essência do individuo. O branco não lhe podia nomear, pois isso era sagrado. Seu filho, Emídio, se indaga que nome teria sua mãe antes de seu pai lhe dar o nome da terra em que ela vivia: Quissama, a "terra do Brandão Aceso". Nesse romance, a imagem da terra e da mulher se misturam, se confundem e ambas resistem, não se entregam. Para mostrar o quanto há de diferença cultural e de enfrentamento na relação entre os pais de Emídio, retomo o jogo entre ação do homem e silêncio da mulher numa cena de alcova, vista pela personagem não como uma cena de prazer, mas como uma luta: 
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Um desejo qualquer, outro mais intenso que a simples posse, agitava seu pai entre as pernas entreabertas da Kissama. Ele procurava cumprir naquele acto algo que só agora conseguia descortinar. Não era pois simples vontade de mulher, o seu desfrute no gozo pacífico do umbundo, que ele experimentava naquela descontrolada ânsia de penetração cada vez mais funda; ele tentava a sujeição daquele corpo, submeter, domesticar, e era firme a maneira como Kissama resistia, consentindo passivamente. Espantava-lhe recordar como era possível tamanho silêncio, num acto praticado com tanto furor, e nem sequer a ideia da sua presença próxima era aceitável.xi 
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O narrador reafirma o abismo existente entre os dois através do uso de nomenclaturas específicas para o homem. A imagem do europeu, quando associada a Kissama, é referenciada através do nome português António Mendonça, ou da marca de sua posição social, "chefe Mendonça", em contrapartida à alternância com o nome africano Ngana Makanda, presente em todo o restante do romance, e usado para transmitir uma postura mais flexível da personagem. A distância entre Kissama e António Mendonça, realçada pelo vocativo desse, não poderia ser transposta, pois as posturas colonialistas permeavam o seu relacionamento: António Mendonça olharia sempre como chefe mundele na Conquista; olhar de chefe intimida, mas olhar de mundele na Conquista esmaga. 
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E ele não teria outro olhar para Kissama, como se ela mesma fosse um mungolongolo, cucurbitando sua natureza na terra, e que não pudesse se elevar do chão.xii 
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Kissama só rompe com o silêncio intransponível entre os dois quando percebe a partida inevitável de seu filho para o Reino, visto por ela como um mau presságio. 
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António Mendonça decidira sobre a partida do filho sem consultá-la. Kissama, tentando dominar as palavras em português, tece então a corda da quihamba, "como se a corda que ela estava a fazer fosse menos de kikónda que de palavras"xiii. Para demover o "chefe Mendonça"xiv dessa posição, Kissama, como uma "enchente das palavras represadas"xv, irá tentar dissuadi-lo usado o português, no entanto sem sucesso. Com a partida de Emídio, Kissama "não mais saiu da [sua] margem"xvi, e como um ato de 
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resistência e insubordinação faz cumprir o destino, talvez inconsciente, da "corda da Kihamba"xvii: 
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No dia em que, por sua livre vontade, usou pela primeira vez a mesa quadrada de mupanga-panga, não foi para se sentar nela. Calcou-lhe raivosamente sob seus pés e ergueu-se muito para além dela, ao enforcar-se numa das traves do tecto. Dessa vez, seria ela a lhe olhar por cima.xviii 
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Kissama escolheu a mesa de mupanga-panga como local para um último confronto. A mesa simbolizava mais do que o simples comer com talheres, mas o enquadramento e submissão a uma série de condutas e posturas lusitanas ditas civilizadas. Por cedo compreendê-las, Kissama recusou-se a se sentar nela, "mas trepara com ela a um lugar onde, enfim, também poderia julgar"xix. 
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Ao escolher a mesa de mupanga como local para sua morte, Kissama elevara-se não só sobre a mesa mas sobre toda a simbologia que ela representava, e assim, nas palavras do narrador, "Ela se desafrontara por si mesma e, nesse enfrentamento, derrubara inapelavelmente a mesa de mupanga-panga"xx. 
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Emídio Mendonça, já adulto, e diante da Casa Velha destruída pelo incêndio criminoso que causou a morte de seu pai, percebe, através da memória, suas margens paternas bem delimitadas. Compreendendo ser "filho de dois mundos", portanto plural, Emídio Mendonça, irá assumir uma postura que vai além da do sujeito transculturado, que segundo Alberto Moreiras "está consciente ou inconscientemente situado entre pelo menos dois mundos, duas culturas, duas línguas, e que realiza constantemente a mediação entre ambas”xxi uma vez que a personagem não ficará restrita a mera mediação. Desprovido de herança material e sem os pilares paternos, Emídio, não se sentirá pertencente a nenhuma das suas margens, mas situar-se-á em uma terceira. As palavras da personagem revelam os sentimentos e a situação: 
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Emído Mendonça sentia-se mergulhado num pesado aturdimento, estava sozinho nas margens, qual delas seria a sua? A lembrança tumultuosa de todos aqueles acontecimentos enigmáticos excomungavam-lhe qualquer coisa. Sentia-se subitamente enlevado para uma outra margem que não era essa do terreiro onde ele balançava as pernas sobre um tronco oco, sentia-se enlevado para uma outra margem que também não era a do outro lado do rio cujas árvores e quissassas ele lhes via dali; era a mesma margem do terreiro, ao mesmo tempo que era a outra, uma terceira-margem do rio na qual ele se queria refugiar em pensamento.xxii 
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Essa perda simbólica de raízes coloca-o em conflito com vertentes de pertencimento, levando-o a percorrer as margens de um rio relacionado com os rios Lucala e Quanza, incidindo na configuração e reconfiguração de identidades, vistas a princípio como una e única. Conforme a personagem se posiciona, ela não estaria em nenhum dos lados convencionais do rio, mas em uma "terceira margem", um "entrelugar" que ao mesmo tempo engloba e ultrapassa o binarismo: não a simples escolha de uma das margens, mas o estar no rio, a ocupá-lo, a percorrê-lo. Diferentemente da visão de Guimarães Rosa em "A terceira margem do rio"xxiii, que aponta para a morte, Marli Fantini Scarpelli, no ensaio "Heterogeneidade, transculturação, hibridismo: a terceira margem da cultura latino-americana", apesar de referir-se à América Latina, dialoga com o texto angolano, ao ver no "estar entre margens" uma forma de sair da imposição colonialista. Para a ensaísta, Situar-se entre duas margens, deslizar-se entre duas águas, conviver produtivamente com a diversidade cultural, diferentemente da interpretação pessimista [...], são opções pelas quais a América Latina pode sair da imposição colonizadora e do autoritário processo modernizador, que a tomaram de assalto nos momentos mais decisivos de sua formação.xxiv 
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Postura similar parece assumida pela personagem de Arnaldo Santos no decorrer da narrativa, ao se assumir como um "filho do país"xxv em diferença para com o africano, "filho da terra"xxvi, ou ao europeu, estrangeiro e invasor daquelas terras. 
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Emídio Mendonça irá, através dos trânsitos entre suas duas margens, defender os interesses de Angola, que passa a ser sentida como pátria. Trânsitos e viagens, reais e simbólicos, por rios, casas, terras e margens na defesa de um "entre-lugar", lugar este visto no final do romance como um ponto de encontro entre todos os homens, [...] porque talvez tivesse seguido o destino de seu pai, ou apenas porque a danação dos homens lhe tinham predestinado e atirado para esse lado incerto das Margens, onde, e ele começava sinceramente a acreditar nisso, todos, um dia, finalmente se encontrariam.xxvii 
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Como o trecho remete, há margens por todos os lados, cabe aos sujeitos a escolha de um dos lados, ou mesmo de um terceiro, um “entre-margens” na qual todos, direta ou indiretamente estão implicados. 
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Referências bibliográficas:
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MATA, Inocência. Even Crusoe needs a Friday: os limites dos sentidos da dicotomia universal/local nas literaturas africanas. Gragoatá, Niterói, n 19, 2005, pp.11-25.
ROSA, João Guimarães. "A terceira margem do rio". Primeiras estórias. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994. v.2. pp. 409-413.
SANTOS, Arnaldo. A casa velha das margens. Luanda: Maianga, 2004 (Biblioteca de Literatura Angolana).
SCARPELLI, Marli Fantini. "Heterogeneidade, transculturação, hibridismo: a terceira margem da cultura latino-americana". In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania (org.). Literaturas em movimento: hibridismo cultural e exercício crítico. São Paulo: Arte & Ciência, 2003, pp.51-65.
i BRECHT apud MATA, 2005, p. 12.
ii SANTOS, 2004, p. 109.
iii Idem, ibidem, p. 44.
iv Idem, ibidem, p. 138.
v Idem, ibidem, p. 124.
vi Idem, ibidem.
vii Idem, ibidem, p. 102.
viii Idem, ibidem, p. 101.
ix Idem, ibidem, p. 102.
x Idem, ibidem, p. 148.
xi Idem, ibidem, p. 147.
xii Idem, ibidem, p. 154.
xiii Idem, ibidem, p. 151.
xiv Idem, ibidem.
xv Idem, ibidem.
xvi Idem, ibidem, p. 141.
xvii Idem, ibidem, p. 154.
xviii Idem, ibidem, p.154.
xix Idem ibidem.
xx Idem, ibidem.
xxi MOREIRAS, 1997, apud SCARPELLI, 2003, p. 59.
xxii SANTOS, 2004, pp. 113-114.
xxiii ROSA, 1994, pp. 409-413.
xxiv SCARPELLI, 2003, p. 64.
xxv SANTOS, 2004, p. 49.
xxvi Idem, ibidem.
xxvii Idem, ibidem, p. 367. 
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http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=880
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