Ela animou a nossa infância com as aventuras de Os Cinco. É talvez a mais famosa autora de livros infantis e juvenis mas também a mais criticada. Descobrimos que Enid Blyton não é heroína nem vilã. O seu maior sucesso - e maior pecado - foi ter construído um mundo para onde se quer escapar. Era uma vez quatro crianças e um cão...
A escritora no seu jardim no Buckinghamshire, em Maio de 1949
(Hulton-Deutsch Collection/Corbis/VMI)
Se fizessem de Enid Blyton uma personagem de fantasia ou um desenho animado, ela seria uma mulher-máquina-de-escrever, com teclas em vez de dedos e uma cabeça onde corria tinta.
Por dia, produzia seis mil palavras - no seu melhor, 10 mil palavras. Noddy, Os Cinco, Os Sete, a colecção Aventura, a colecção Mistério, As Gémeas, As Quatro Torres, em 71 anos de vida, 43 anos de carreira, publicou mais de 700 livros - muitos traduzidos em português e outras 90 línguas, fazendo dela a quinta autora mais traduzida do mundo -, e é quase impossível ser criança sem ler Enid Blyton. Assim como é quase impossível ser adulto sem se lembrar de momentos a ler Enid Blyton.
Até hoje, Enid Blyton já vendeu 500 milhões de livros. Quando sai uma notícia sobre Enid Blyton, não é simplesmente mais uma informação sobre a biografia de uma autora, é pôr em causa a infância de milhões. É assim que Enid Blyton - uma assinatura quase adolescente com dois traços por baixo do "d" e com um aspecto tão inofensivo numa capa de livro - atrai polémicas.
A última foi a acusação de que Blyton talvez não antipatizasse totalmente com Hitler. Aos 101 anos, Ida Pollock, viúva de Hugh Pollock, o primeiro marido de Blyton, disse ao jornal britânico The Independent que, segundo Pollock, ele e Blyton estiveram juntos num jantar, no final dos anos 30, e ouviram simpatias sobre Hitler. Ele levantou-se furioso e saiu. Ela não.
A história é só isto, mas os jornais capricharam nos títulos, e novamente, perguntaram se Enid Blyton é própria para consumo das crianças.
Dela já foi dito que é racista - e já se modificaram personagens negras e tirou-se a palavra nigger das reedições - e xenófoba. Os livros estão cheios de más mães que trabalham e boas mães que fazem bolos. E porque é que as personagens dela são sempre de classe média, tão educadas e a tanta distância do comum dos trabalhadores? Blyton chegou a estar banida de bibliotecas públicas, embora a razão não fosse nenhum dos seus preconceitos, mas aparentemente um problema de pobreza de vocabulário.
E enquanto os adultos discutiam, as crianças liam. E liam e liam e liam, geração após geração, e só isso explica que quando em 2008 o Prémio Literário Costa organizou uma votação para escolher o autor mais querido do Reino Unido, não tenha ganho Shakespeare ou Jane Austen e nem sequer J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter. Os britânicos escolheram Enid Blyton.
Em 2009, a BBC mostrava Enid e Helena Bonham-Carter era uma Enid fria, manipuladora e até cruel, mas simultaneamente um outro canal ressuscitava Os Cinco - a par de Noddy, as criações mais populares de Blyton - e estreava uma série de animação com Os Cinco filhos de Os Cinco originais.
Na última década de vida de Blyton - os anos 60, a década que parecia irreversível -, os críticos diziam que Blyton passaria de moda. Mas depois de ela morrer em 1968, o que aconteceu foi que se tornou num clássico. E um clássico continua a precisar do seu tempo e o dela é a Segunda Guerra Mundial, o período do pós-guerra e os anos 50, quando se sabia distinguir os heróis dos vilões, e numa Inglaterra mais homogénea do que hoje não havia dúvidas sobre o que era ser inglês, a que horas tomar o chá e como deve agir um gentleman ou uma lady.
1. Como Blyton "viu" "Os Cinco"
Em 1942, Enid Blyton tinha um abrigo no jardim para onde corria com as filhas quando soavam os alarmes a avisar que se aproximava um bombardeamento.
No mesmo jardim, tinha demarcado uma horta para "cavar para a vitória" como tantas outras mulheres e crianças e velhos, todos aqueles que não podiam combater, para que durante a guerra não faltassem pelo menos batatas e couves.
Nas cartas que escrevia às crianças que liam os seus livros, uma a uma, Enid Blyton ensinava-lhes segredos de plantas e animais e dizia-lhes que quando voltassem a Londres, depois da guerra, iriam lembrar-se por muitos anos de coisas boas do tempo em que estiveram evacuados no campo.
Nesse ano, livros com a assinatura de Enid Blyton continuaram a ser impressos em grandes tiragens, ainda que faltasse papel. Ela tinha dito aos seus editores que não podia parar: escrever era o seu esforço de guerra; as crianças já tinham perdido tantas coisas, não deveriam ainda perder os seus livros.
Em 1942, Hugh Pollock, major em tempo de guerra, editor em tempo de paz (chegou a ser editor de Churchill), já não vivia na mansão de Green Hedges, em Buckinghamshire, perto de Londres, e quase não via as duas filhas, que Enid Blyton mantinha afastadas do pai. Em Green Hedges, ela visitava muitas vezes o cirurgião Kenneth Darrell Waters. Ele e Enid aguardaram todo o ano que os respectivos divórcios se resolvessem e o de Enid ficou tratado antes do fim do ano. No ano seguinte, ela passou a ser Mrs. Darrell Waters.
Foi um dia em 1942 que Enid Blyton se sentou numa cadeira confortável com uma tábua ao colo e a máquina de escrever por cima e fechou os olhos. Quando os abriu, tinha as mãos em cima do teclado e os dois dedos indicadores escreviam o que "via" no "cinema da sua mente":
"As crianças começaram a ficar muito entusiasmadas. Ia ser divertido ir para um lugar que nunca tinham ido antes e ficarem em casa de uma prima que nunca tinham conhecido."
"Via" cinco personagens: quatro crianças e um cão, que ainda hoje partilham as suas aventuras com um milhão de crianças por ano. E, como não podia deixar de ser, cada um dos cinco foi criado um pouco à sua imagem.
Gostava mais de Anne (Ana) do que da mãe, mas Anne lembrava-lhe a mãe. Anne era tudo o que Enid não tinha sido e a mãe desejaria: uma criança que aprenderia a cozinhar, a limpar, a costurar e cresceria para ser uma jovem sensata e preparada para a vida.
Julian (Júlio), o mais velho, o líder do grupo, era a personagem mais próxima de um adulto (os adultos são figuras quase sempre ausentes durante as aventuras). E Enid adulta, ou o mais perto que chegaria de ser adulta, era mandona e não admitia que a sua liderança fosse contestada.
Dick (David), o bonacheirão, era o único que trazia livros para a aventura das férias e fazia todos rir mesmo nas alturas mais difíceis, uma espécie de palhaço querido do grupo, como teria sido Enid a uma dada altura, capaz de ver em qualquer coisa uma pequena anedota.
Georgina - George, porque se lhe chamarem Georgina não responde (Maria José ou Zé, na versão portuguesa) - era a sua criação favorita, disse várias vezes. Ao contrário de outras personagens, explicou numa entrevista à BBC, George era inspirada numa pessoa real. A outra jornalista, Blyton descreveu George como uma miúda ruiva e sardenta que tinha um dia conhecido e admirado. Para Barbara Stoney, que escreveu a primeira biografia de Enid Blyton, essa descrição era para despistar. Enid tinha sido George. George era simplesmente Enid. Uma rapariga que queria acompanhar o pai em passeios no campo, aprender os nomes de todos os bichos e de todas as plantas, que queria ler, escrever, representar, cantar para o pai, aprender como se expressar, fazer tudo como se tivesse um futuro à sua frente, como os rapazes tinham um futuro. Como George, revoltava-se contra o seu destino de mulher.
E Timmy (Tim) era o cão que nunca teve: seria o mais inteligente do mundo e poderia desabafar com ele.
"Os nossos livros", escreveu numa carta a um psicólogo que pesquisava o processo criativo de escritores, "são facetas de nós próprios".
Mas a verdade é que os livros tanto podem ser uma maneira de olhar para nós próprios como uma maneira de evitar olhar para nós próprios. E talvez não haja nenhum exemplo como o de Enid Blyton. Os seus mais de 700 livros foram a forma que encontrou de parar o tempo. De ficar sempre naquele momento em que se abre um livro, e página após página, nada nem ninguém nos podia magoar: nem bombas nem pais que discutem.
Pais firmes mas carinhosos, às vezes um pouco distraídos, corrigindo-se sempre; mães que nunca se zangam quando chegamos tarde a casa depois de uma aventura e dão-nos um abraço e uma fatia de bolo delicioso; homens bons ou maus e vê-se logo pelas caras.
Havia um mundo onde se podia ir e tudo funcionava como um relógio a que Deus nunca se esquecia de dar corda.
Se as crianças crescessem nesse mundo - com valores morais fortes e saudáveis, acreditava Blyton -, seriam melhor adultos.
"O meu amor pelas crianças é a fundação de todo o meu trabalho. Eu amo-os e quero que cresçam para serem seres humanos decentes", disse em 1963, numa entrevista à rádio. "Isto soa, claro, muito pomposo, mas não é de todo pomposo. É simplesmente o que cada mãe quer para o seu filho. Eu quero-o para todas as crianças."
Não percebia quando diziam que era paternalista e ficava muito surpreendida quando havia quem não gostasse desse mundo e preferisse o outro, o real. Mas todos esses eram adultos e ela não aceitava críticas de ninguém com mais de 12 anos.
Os que tinham menos de 12 anos escreviam-lhe, davam opiniões sobre o que tinham lido, diziam o que gostariam ainda de ler, e com ela construíam esse mundo ideal, para onde - ela primeiro enquanto escrevesse, e eles depois quando lessem - pudessem escapar.
Até que um dia ela deixou de conseguir responder a essas cartas. E um dia não sabia quem eram Julian, Dick, Anne, George and Timmy (Júlio, David, Ana, Zé e Tim). Tinha regressado inteiramente a esse tempo em que ainda que não houvesse certezas, pelo menos não havia dúvidas. Estava em Hampstead, em Londres, numa casa de repouso, as duas filhas a viver fora da capital e poucos amigos que a visitassem, mas julgava estar em Beckenham, um subúrbio de Londres.
O pai ainda a levava a dar longos passeios e ouvia as suas histórias. A mãe ainda achava que as histórias não tinham utilidade.
No fim da vida tinha-se esquecido de que o pai e a mãe tinham morrido e que ela não tinha ido ao funeral de nenhum dos dois, e terá esquecido até que um dia o pai se tinha ido embora de casa, ela tinha 12 anos e tinha - como iria fazer o resto da vida, acontecessem guerras, divórcios, doenças, morte - fingido que tudo estava bem.
2. Como era ler "Os Cinco"
Por causa de Enid Blyton, ia-me saltando a retina. Pelo menos era o que os meus pais me diziam: "Olha que te vai saltar a retina." Saltar-me a retina parecia-me uma coisa grave, mas não terminar o livro que estava a ler parecia-me ainda mais grave. E, para saber o que acontecia a seguir, era preciso ler em andamento ou ler toda torcida ou ler com pouca luz (tudo coisas, diziam-me, que faziam saltar a retina) ou, pior ainda, ler em andamento toda torcida e com pouca luz. Ainda me lembro dos efeitos de luz sobre a página, dentro do carro à noite, "vuumm-vumm", o livro quase encostado à janela e cada vez que o carro passava por mais um candeeiro de rua eu lia - muito rápido - mais uma frase.
Por causa de Enid Blyton, podia ter-me metido seriamente em apuros quando decidia seguir alguém na rua porque tinha um aspecto "suspeito" ou entrava em casas em ruínas à procura de contrabandistas.
Por causa de Enid Blyton, escondi no compartimento com chave da minha secretária de madeira uma fechadura ideal para a minha futura cabana secreta, e descobri-a muitos anos mais tarde quando já só via uma fechadura partida e enferrujada. Escondi tesouros em caixas de Nesquik, que por sua vez eram escondidas em sítios que só eu e a minha prima conhecíamos e não desvendávamos nem que as nossas irmãs nos arrancassem os cabelos.
Por causa de Enid Blyton, fugi com a minha prima da quinta da minha avó e ficámos o resto das férias de castigo a fazer trabalhos de casa. Fugimos dos pais numa praia do Algarve para ir explorar grutas; e, quando éramos adolescentes e era já uma questão de nostalgia, desaparecemos na serra da Estrela.
O meu dia da semana preferido era a sexta-feira, quando ficava em casa dos meus avós. Por baixo do prédio deles havia um pequeno centro comercial e, no centro comercial, uma papelaria que vendia livros.
Cada sexta-feira comprava um novo livro de aventuras, sentava-me no sofá dos meus avós e já não me levantava mais. Que criança sossegada, diziam os avós, os pais, os tios. Enganava-os a todos.
Por causa de Enid Blyton, quando finalmente saía para a rua, ia determinada a que me acontecesse uma história. E de certa forma, até hoje desconfio que coisas extraordinárias acontecem, exactamente como nos livros, eu é que não procurei o suficiente.
3. Cinco razões para não reler "Os Cinco"
Realmente não consigo pensar em cinco razões para não reler Os Cinco. Não é pior do que muitos livros para adultos que se lêem no mesmo período de tempo que uma aventura de Os Cinco.
No primeiro livro, Os Cinco na Ilha do Tesouro, é um prazer conhecer as personagens, sobretudo a Georgina, perdão, George, que não é uma simples maria-rapaz, mas uma verdadeira rebelde a estabelecer as suas próprias regras. Na versão portuguesa chama-se Zé, mas qualquer Maria José é uma Zé. No original, ela muda de nome, constrói a sua própria identidade. Além disso, George tem uma ilha, e alguém já imaginou algo mais fixe do que ter uma ilha (não, ter um iPhone não é mais fixe do que ter uma ilha)?
Os ingredientes estão lá todos desde o número 1: Os Cinco ficam sozinhos durante algum tempo e vão ter de se desenvencilhar sozinhos. Os maus são bastante maus, mas não muito inteligentes. As crianças, de certeza, vão conseguir vencê-los, apanhá-los, fazer uma boa acção e uma acção importante, ser heróis. Há lingotes de ouro, fechaduras que não abrem para chegar aos lingotes e caminhos subterrâneos para portas fechadas, para os quais é preciso encontrar mapas muito velhos. O problema, depois, é que os ingredientes repetem-se de livro para livro e por mais que se esforce não vai conseguir entender como é que conseguiu, um dia, ler 21 aventuras destas, e todas de seguida.
Uma razão bastante sensata para não reler Os Cinco é, no caso de ter sido um verdadeiro fã em criança, o risco de se desiludir. Mas só há uma razão verdadeiramente importante para não reler Os Cinco: no dia em que desempoeirar os livros na garagem como se encontrasse um tesouro e os abrir, vai perceber que deixou de ser criança.
(Texto publicado na edição da revista Pública de 28 de Março de 2010)
. Por dia, produzia seis mil palavras - no seu melhor, 10 mil palavras. Noddy, Os Cinco, Os Sete, a colecção Aventura, a colecção Mistério, As Gémeas, As Quatro Torres, em 71 anos de vida, 43 anos de carreira, publicou mais de 700 livros - muitos traduzidos em português e outras 90 línguas, fazendo dela a quinta autora mais traduzida do mundo -, e é quase impossível ser criança sem ler Enid Blyton. Assim como é quase impossível ser adulto sem se lembrar de momentos a ler Enid Blyton.
Até hoje, Enid Blyton já vendeu 500 milhões de livros. Quando sai uma notícia sobre Enid Blyton, não é simplesmente mais uma informação sobre a biografia de uma autora, é pôr em causa a infância de milhões. É assim que Enid Blyton - uma assinatura quase adolescente com dois traços por baixo do "d" e com um aspecto tão inofensivo numa capa de livro - atrai polémicas.
A última foi a acusação de que Blyton talvez não antipatizasse totalmente com Hitler. Aos 101 anos, Ida Pollock, viúva de Hugh Pollock, o primeiro marido de Blyton, disse ao jornal britânico The Independent que, segundo Pollock, ele e Blyton estiveram juntos num jantar, no final dos anos 30, e ouviram simpatias sobre Hitler. Ele levantou-se furioso e saiu. Ela não.
A história é só isto, mas os jornais capricharam nos títulos, e novamente, perguntaram se Enid Blyton é própria para consumo das crianças.
Dela já foi dito que é racista - e já se modificaram personagens negras e tirou-se a palavra nigger das reedições - e xenófoba. Os livros estão cheios de más mães que trabalham e boas mães que fazem bolos. E porque é que as personagens dela são sempre de classe média, tão educadas e a tanta distância do comum dos trabalhadores? Blyton chegou a estar banida de bibliotecas públicas, embora a razão não fosse nenhum dos seus preconceitos, mas aparentemente um problema de pobreza de vocabulário.
E enquanto os adultos discutiam, as crianças liam. E liam e liam e liam, geração após geração, e só isso explica que quando em 2008 o Prémio Literário Costa organizou uma votação para escolher o autor mais querido do Reino Unido, não tenha ganho Shakespeare ou Jane Austen e nem sequer J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter. Os britânicos escolheram Enid Blyton.
Em 2009, a BBC mostrava Enid e Helena Bonham-Carter era uma Enid fria, manipuladora e até cruel, mas simultaneamente um outro canal ressuscitava Os Cinco - a par de Noddy, as criações mais populares de Blyton - e estreava uma série de animação com Os Cinco filhos de Os Cinco originais.
Na última década de vida de Blyton - os anos 60, a década que parecia irreversível -, os críticos diziam que Blyton passaria de moda. Mas depois de ela morrer em 1968, o que aconteceu foi que se tornou num clássico. E um clássico continua a precisar do seu tempo e o dela é a Segunda Guerra Mundial, o período do pós-guerra e os anos 50, quando se sabia distinguir os heróis dos vilões, e numa Inglaterra mais homogénea do que hoje não havia dúvidas sobre o que era ser inglês, a que horas tomar o chá e como deve agir um gentleman ou uma lady.
1. Como Blyton "viu" "Os Cinco"
Em 1942, Enid Blyton tinha um abrigo no jardim para onde corria com as filhas quando soavam os alarmes a avisar que se aproximava um bombardeamento.
No mesmo jardim, tinha demarcado uma horta para "cavar para a vitória" como tantas outras mulheres e crianças e velhos, todos aqueles que não podiam combater, para que durante a guerra não faltassem pelo menos batatas e couves.
Nas cartas que escrevia às crianças que liam os seus livros, uma a uma, Enid Blyton ensinava-lhes segredos de plantas e animais e dizia-lhes que quando voltassem a Londres, depois da guerra, iriam lembrar-se por muitos anos de coisas boas do tempo em que estiveram evacuados no campo.
Nesse ano, livros com a assinatura de Enid Blyton continuaram a ser impressos em grandes tiragens, ainda que faltasse papel. Ela tinha dito aos seus editores que não podia parar: escrever era o seu esforço de guerra; as crianças já tinham perdido tantas coisas, não deveriam ainda perder os seus livros.
Em 1942, Hugh Pollock, major em tempo de guerra, editor em tempo de paz (chegou a ser editor de Churchill), já não vivia na mansão de Green Hedges, em Buckinghamshire, perto de Londres, e quase não via as duas filhas, que Enid Blyton mantinha afastadas do pai. Em Green Hedges, ela visitava muitas vezes o cirurgião Kenneth Darrell Waters. Ele e Enid aguardaram todo o ano que os respectivos divórcios se resolvessem e o de Enid ficou tratado antes do fim do ano. No ano seguinte, ela passou a ser Mrs. Darrell Waters.
Foi um dia em 1942 que Enid Blyton se sentou numa cadeira confortável com uma tábua ao colo e a máquina de escrever por cima e fechou os olhos. Quando os abriu, tinha as mãos em cima do teclado e os dois dedos indicadores escreviam o que "via" no "cinema da sua mente":
"As crianças começaram a ficar muito entusiasmadas. Ia ser divertido ir para um lugar que nunca tinham ido antes e ficarem em casa de uma prima que nunca tinham conhecido."
"Via" cinco personagens: quatro crianças e um cão, que ainda hoje partilham as suas aventuras com um milhão de crianças por ano. E, como não podia deixar de ser, cada um dos cinco foi criado um pouco à sua imagem.
Gostava mais de Anne (Ana) do que da mãe, mas Anne lembrava-lhe a mãe. Anne era tudo o que Enid não tinha sido e a mãe desejaria: uma criança que aprenderia a cozinhar, a limpar, a costurar e cresceria para ser uma jovem sensata e preparada para a vida.
Julian (Júlio), o mais velho, o líder do grupo, era a personagem mais próxima de um adulto (os adultos são figuras quase sempre ausentes durante as aventuras). E Enid adulta, ou o mais perto que chegaria de ser adulta, era mandona e não admitia que a sua liderança fosse contestada.
Dick (David), o bonacheirão, era o único que trazia livros para a aventura das férias e fazia todos rir mesmo nas alturas mais difíceis, uma espécie de palhaço querido do grupo, como teria sido Enid a uma dada altura, capaz de ver em qualquer coisa uma pequena anedota.
Georgina - George, porque se lhe chamarem Georgina não responde (Maria José ou Zé, na versão portuguesa) - era a sua criação favorita, disse várias vezes. Ao contrário de outras personagens, explicou numa entrevista à BBC, George era inspirada numa pessoa real. A outra jornalista, Blyton descreveu George como uma miúda ruiva e sardenta que tinha um dia conhecido e admirado. Para Barbara Stoney, que escreveu a primeira biografia de Enid Blyton, essa descrição era para despistar. Enid tinha sido George. George era simplesmente Enid. Uma rapariga que queria acompanhar o pai em passeios no campo, aprender os nomes de todos os bichos e de todas as plantas, que queria ler, escrever, representar, cantar para o pai, aprender como se expressar, fazer tudo como se tivesse um futuro à sua frente, como os rapazes tinham um futuro. Como George, revoltava-se contra o seu destino de mulher.
E Timmy (Tim) era o cão que nunca teve: seria o mais inteligente do mundo e poderia desabafar com ele.
"Os nossos livros", escreveu numa carta a um psicólogo que pesquisava o processo criativo de escritores, "são facetas de nós próprios".
Mas a verdade é que os livros tanto podem ser uma maneira de olhar para nós próprios como uma maneira de evitar olhar para nós próprios. E talvez não haja nenhum exemplo como o de Enid Blyton. Os seus mais de 700 livros foram a forma que encontrou de parar o tempo. De ficar sempre naquele momento em que se abre um livro, e página após página, nada nem ninguém nos podia magoar: nem bombas nem pais que discutem.
Pais firmes mas carinhosos, às vezes um pouco distraídos, corrigindo-se sempre; mães que nunca se zangam quando chegamos tarde a casa depois de uma aventura e dão-nos um abraço e uma fatia de bolo delicioso; homens bons ou maus e vê-se logo pelas caras.
Havia um mundo onde se podia ir e tudo funcionava como um relógio a que Deus nunca se esquecia de dar corda.
Se as crianças crescessem nesse mundo - com valores morais fortes e saudáveis, acreditava Blyton -, seriam melhor adultos.
"O meu amor pelas crianças é a fundação de todo o meu trabalho. Eu amo-os e quero que cresçam para serem seres humanos decentes", disse em 1963, numa entrevista à rádio. "Isto soa, claro, muito pomposo, mas não é de todo pomposo. É simplesmente o que cada mãe quer para o seu filho. Eu quero-o para todas as crianças."
Não percebia quando diziam que era paternalista e ficava muito surpreendida quando havia quem não gostasse desse mundo e preferisse o outro, o real. Mas todos esses eram adultos e ela não aceitava críticas de ninguém com mais de 12 anos.
Os que tinham menos de 12 anos escreviam-lhe, davam opiniões sobre o que tinham lido, diziam o que gostariam ainda de ler, e com ela construíam esse mundo ideal, para onde - ela primeiro enquanto escrevesse, e eles depois quando lessem - pudessem escapar.
Até que um dia ela deixou de conseguir responder a essas cartas. E um dia não sabia quem eram Julian, Dick, Anne, George and Timmy (Júlio, David, Ana, Zé e Tim). Tinha regressado inteiramente a esse tempo em que ainda que não houvesse certezas, pelo menos não havia dúvidas. Estava em Hampstead, em Londres, numa casa de repouso, as duas filhas a viver fora da capital e poucos amigos que a visitassem, mas julgava estar em Beckenham, um subúrbio de Londres.
O pai ainda a levava a dar longos passeios e ouvia as suas histórias. A mãe ainda achava que as histórias não tinham utilidade.
No fim da vida tinha-se esquecido de que o pai e a mãe tinham morrido e que ela não tinha ido ao funeral de nenhum dos dois, e terá esquecido até que um dia o pai se tinha ido embora de casa, ela tinha 12 anos e tinha - como iria fazer o resto da vida, acontecessem guerras, divórcios, doenças, morte - fingido que tudo estava bem.
2. Como era ler "Os Cinco"
Por causa de Enid Blyton, ia-me saltando a retina. Pelo menos era o que os meus pais me diziam: "Olha que te vai saltar a retina." Saltar-me a retina parecia-me uma coisa grave, mas não terminar o livro que estava a ler parecia-me ainda mais grave. E, para saber o que acontecia a seguir, era preciso ler em andamento ou ler toda torcida ou ler com pouca luz (tudo coisas, diziam-me, que faziam saltar a retina) ou, pior ainda, ler em andamento toda torcida e com pouca luz. Ainda me lembro dos efeitos de luz sobre a página, dentro do carro à noite, "vuumm-vumm", o livro quase encostado à janela e cada vez que o carro passava por mais um candeeiro de rua eu lia - muito rápido - mais uma frase.
Por causa de Enid Blyton, podia ter-me metido seriamente em apuros quando decidia seguir alguém na rua porque tinha um aspecto "suspeito" ou entrava em casas em ruínas à procura de contrabandistas.
Por causa de Enid Blyton, escondi no compartimento com chave da minha secretária de madeira uma fechadura ideal para a minha futura cabana secreta, e descobri-a muitos anos mais tarde quando já só via uma fechadura partida e enferrujada. Escondi tesouros em caixas de Nesquik, que por sua vez eram escondidas em sítios que só eu e a minha prima conhecíamos e não desvendávamos nem que as nossas irmãs nos arrancassem os cabelos.
Por causa de Enid Blyton, fugi com a minha prima da quinta da minha avó e ficámos o resto das férias de castigo a fazer trabalhos de casa. Fugimos dos pais numa praia do Algarve para ir explorar grutas; e, quando éramos adolescentes e era já uma questão de nostalgia, desaparecemos na serra da Estrela.
O meu dia da semana preferido era a sexta-feira, quando ficava em casa dos meus avós. Por baixo do prédio deles havia um pequeno centro comercial e, no centro comercial, uma papelaria que vendia livros.
Cada sexta-feira comprava um novo livro de aventuras, sentava-me no sofá dos meus avós e já não me levantava mais. Que criança sossegada, diziam os avós, os pais, os tios. Enganava-os a todos.
Por causa de Enid Blyton, quando finalmente saía para a rua, ia determinada a que me acontecesse uma história. E de certa forma, até hoje desconfio que coisas extraordinárias acontecem, exactamente como nos livros, eu é que não procurei o suficiente.
3. Cinco razões para não reler "Os Cinco"
Realmente não consigo pensar em cinco razões para não reler Os Cinco. Não é pior do que muitos livros para adultos que se lêem no mesmo período de tempo que uma aventura de Os Cinco.
No primeiro livro, Os Cinco na Ilha do Tesouro, é um prazer conhecer as personagens, sobretudo a Georgina, perdão, George, que não é uma simples maria-rapaz, mas uma verdadeira rebelde a estabelecer as suas próprias regras. Na versão portuguesa chama-se Zé, mas qualquer Maria José é uma Zé. No original, ela muda de nome, constrói a sua própria identidade. Além disso, George tem uma ilha, e alguém já imaginou algo mais fixe do que ter uma ilha (não, ter um iPhone não é mais fixe do que ter uma ilha)?
Os ingredientes estão lá todos desde o número 1: Os Cinco ficam sozinhos durante algum tempo e vão ter de se desenvencilhar sozinhos. Os maus são bastante maus, mas não muito inteligentes. As crianças, de certeza, vão conseguir vencê-los, apanhá-los, fazer uma boa acção e uma acção importante, ser heróis. Há lingotes de ouro, fechaduras que não abrem para chegar aos lingotes e caminhos subterrâneos para portas fechadas, para os quais é preciso encontrar mapas muito velhos. O problema, depois, é que os ingredientes repetem-se de livro para livro e por mais que se esforce não vai conseguir entender como é que conseguiu, um dia, ler 21 aventuras destas, e todas de seguida.
Uma razão bastante sensata para não reler Os Cinco é, no caso de ter sido um verdadeiro fã em criança, o risco de se desiludir. Mas só há uma razão verdadeiramente importante para não reler Os Cinco: no dia em que desempoeirar os livros na garagem como se encontrasse um tesouro e os abrir, vai perceber que deixou de ser criança.
(Texto publicado na edição da revista Pública de 28 de Março de 2010)
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