sexta-feira, 12 de março de 2010

Depois do jantar - Carlos Drummond de Andrade

Assunto: DEPOIS DO JANTAR
Data: 9/Mar 12:15
Bom Dia!

Vamos quebrar a rotina....hoje é dia de Prosa!


Espero que gostem!...em anexo um beijo!!!
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Distribuído por Moranguinho Pereira (hi5)
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DEPOIS DO JANTAR

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Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
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O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
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— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
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— Não fumo, respondeu o outro.
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Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:

— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.

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— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
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— Como?
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— Já disse. Vai passando o relógio.
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— Mas ...
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— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
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— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
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O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
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— Agora posso continuar?
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— Continuar o quê?
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— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
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— Vi, sim. Espera um pouco.
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— Esperar o quê?
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— Passa a carteira.
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— Mas...

— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?

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— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
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— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
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— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
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— Diga.
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— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
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— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
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— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
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— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
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— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
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— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
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— Não precisa, não precisa.
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— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
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— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
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— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
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— Claro.
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— Você, o assaltado. Certo?
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— Confere.
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— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.

— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.

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— Tá bom, não se discute.
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— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
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— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
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— Deixe ao menos tirar os documentos?
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— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
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— Nem uma de quinhentos? Uma só.
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— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
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— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
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— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
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Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 
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