Escrever poemas em Monsanto mudou-lhes a vida
Há uma casa de pedra e silêncio que, entre Janeiro e Março, é de poetas de todo o mundo. Eles andam a escrever sobre nós em Monsanto, Idanha-a-Nova. Por Maria João Lopes (texto) e Sérgio Azenha (fotografia)Em Monsanto, o silêncio faz parte da paisagem. Todos os poetas que durante uns meses vivem numa daquelas casas de pedra o ouvem. Entra-lhes pela janela de vidro enorme, que cobre uma das paredes. Muitos, que nunca viram nem ouviram nada assim, escrevem sobre essa experiência. Em três anos, o Programa Poetas em Residência, criado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com o apoio da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, já levou àquela aldeia seis poetas estrangeiros. Para o ano, vai ser publicada uma antologia que reúne o que eles escreveram sobre Portugal.
Haverá muito silêncio nesse livro. Um cenário bucólico que pode, para alguns, ser uma experiência "exótica". Pelo menos para John Mateer, um dos poetas em residência este ano. Sul-africano a viver na Austrália, garante que nunca viu nada como Monsanto.
John Mateer e Anna Reckin são os poetas escolhidos para a residência deste ano, que começou em Janeiro e termina este mês. Os dois habitam a casa de pedra que a autarquia de Idanha-a-Nova recuperou e disponibilizou para o programa. É uma casa dividida em duas: cada uma com um quarto, casa de banho, kitchnette, uma sala com salamandra e uma janela enorme sobre Monsanto. Na secretária, o computador de Anna Reckin está aberto sobre a paisagem. "O espaço da página é como uma paisagem, com umas palavras contra as outras", diz.
Já escreveu mais nos três meses da residência do que no resto do ano em Norwich, Inglaterra, onde vive. "Num cenário diferente, tenho tempo para pensar, sem deadlines, sem interrupções. Aqui a poesia vem primeiro, de manhã. Em Inglaterra não. Escrevo, mas entre outras actividades e é importante quebrar a rotina."
Em Monsanto, tem tempo para passeios, para se distanciar das letras, voltar a elas, ler. Nas caminhadas, ouve um pássaro, cães a ladrarem, depois vê uma cobra: três dimensões que tem que criar de forma artificial na página.
Anna Reckin e John Mateer estão sentados lado a lado no sofá. Anna vai falando sobre a portuguesa Ana Hatherly e como lhe interessa a sua poesia visual e experimental. "Ela põe as coisas duma forma que não vi mais ninguém pôr", diz Anna, que ensina escrita criativa na Universidade de East Anglia, Inglaterra. É autora de Broder, livro que ganhou o Minnesota Book Award. Tem 51 anos.
John não revela a idade, mas é mais novo. Abre-se um parêntese na conversa para falar sobre as teorias de não-discriminação pela idade. Anna Reckin até conta que em Inglaterra é proibido perguntar a idade numa entrevista de trabalho e já não se usa colocá-la no currículo. Agora é que John Mateer não diz mesmo quantos anos tem.
O poeta, que vive em Perth, é um viajante incessante. Como Camões, o seu poeta preferido e de quem tem andado a seguir os passos no mundo. Há muitos poetas portugueses que despertam o interesse de John Mateer, mas a trilogia por excelência é Camões, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. "Os três tiveram a experiência do mundo."
Vai lançar brevemente em Portugal, pela editora Tea For One, Namban, poemas sobre o império português, e ainda, em Abril, The Azanians, poemas sobre Lisboa. Já tinha estado antes em Portugal. Mas Monsanto é diferente. "É um sítio muito remoto", diz. As ruelas mexem-lhe com a imaginação. Aliás, acha que "um sítio pequeno tende a aumentar a imaginação".
Som da névoa
Seja em Monsanto, em Coimbra ou em Lisboa, o que John Mateer nota é que as cidades portuguesas têm "uma vida social" que na Austrália não existe. "Em Coimbra, uma pessoa senta-se no Tropical [café da praça central], encontra um amigo e outro e fica quatro ou cinco horas à conversa. Essa experiência é típica. E o café é um sítio onde as pessoas falam, o que tem a ver com a forma como usam a língua, e isso tem a ver com poesia", diz o poeta que já esteve noutras residências, em Nova Iorque e em Pequim. Também Anna Reckin já teve uma "experiência semelhante" na Bulgária, igualmente "numa vila remota". Mas foram "só umas semanas".
O Programa Poetas em Residência foi criado pela comissão organizadora dos Encontros Internacionais de Poetas - que se realiza em Coimbra de três em três anos. Tirando os meses em que é para os poetas, durante o resto do ano, a casa de Monsanto continua a ser ocupada por artistas - já lá estiveram 22. É outro programa da Câmara de Idanha-a-Nova que se destina a criadores portugueses e estrangeiros de todas as áreas.
Em Portugal, há outros projectos parecidos, por exemplo, na Madeira, onde o Solar de São Cristóvão, em Machico, foi transformado em Casa do Artista. Ali, artistas portugueses ou estrangeiros podem ficar até dois meses, a convite do Governo da Região Autónoma da Madeira ou por proposta de instituições culturais.
Também em Montemor-o-Novo há residências para artistas nacionais e estrangeiros em locais como as Oficinas do Convento e ainda o Espaço do Tempo, estrutura também apoiada pela câmara local e pelo Ministério da Cultura, que acolhe artistas de diversas áreas por períodos que podem ir até quatro meses.
Por Monsanto, e no Programa Poetas em Residência, já passaram John Taggart e Cristina Babino, na primeira edição, em 2008. No ano passado, foi a vez do poeta brasileiro Márcio-André e do galego Miro Villar.
Nascida em Ancona, Itália, em Julho de 1976, Cristina Babino já recebeu diversos prémios. Recorda-se de Monsanto como uma "aldeia muito peculiar", onde o "silêncio" e "tranquilidade" a ajudaram a escrever. Inspirou-se na "paisagem" e nos "elementos naturais" que a compõem, como as "rochas típicas de Monsanto", explica por e-mail.
Também ao poeta Márcio-André, nascido no Rio de Janeiro em 1978, o silêncio falou. "Como sou um poeta também sonoro, não só a escrita sofreu influência, mas também a minha percepção dos sons. Ali eu pude explorar aquilo que está para além do som: o silêncio. O sentido de contemplação e quietude em Monsanto foi muito forte e eu pude pesquisar todas a mínimas particularidades dos timbres que a natureza rochosa e enevoada à volta me ofereciam. Pois ali até a névoa tinha som e isso foi realmente tocante", diz por e-mail.
"Para quem sempre foi acostumado a viver num grande ambiente urbano como o Rio de Janeiro e que havia tido interesse somente em cidades caóticas ou abandonadas, viver na aldeia foi um choque monstruoso", explica o também editor da revista Confraria do Vento.
"Lidar com a paisagem bucólica, um castelo medieval, templos romanos, caminhos na floresta, longas distâncias entre pequenas aldeias, rebanhos de ovelhas e seus pastores e mesmo a reclusão e isolamento marcaram profundamente a minha maneira de ser e de compreender a vida."
Com Márcio-André esteve o poeta Miro Villar. Nascido em 1965, faz parte da organização de escritores Batallón Literario da Costa da Morte. Por e-mail, a partir de Santiago de Compostela, conta que, durante o mês que esteve em Portugal, participou em leituras públicas com outros poetas da Oficina de Poesia de Coimbra e que "desse convívio" surgiram "diálogos e intercâmbios".
De todos os poetas que passaram pela casa, haverá poemas sobre Portugal na antologia bilingue que será publicada para o ano - edição financiada pela Câmara de Idanha-a-Nova. A ideia é publicar um livro semelhante de três em três anos.
Poesia viva
Para além dos momentos de escrita em Monsanto, todos os poetas participam em seminários, conferências e sessões de leitura de poemas na Universidade de Coimbra.
Para a docente responsável por este programa, Graça Capinha, "é muito importante que os alunos tenham uma relação com a poesia viva e possam participar nos processos de criação literária".
"Os alunos mantêm-se em contacto com estes poetas, participam muito activamente, e para mim isso é o fundamental. Como diziam os modernistas, "expandir as consciências" através da arte", diz Graça Carapinha.
O contacto com a poesia, com os poetas, nestes cursos tem "implicações na vida das pessoas", continua: "Altera a sua visão do mundo, transforma-as, torna-as mais universais e é isso que a universidade quer." De resto, as leituras, aulas, conferências e cursos dados por estes poetas não se destinam apenas a alunos da universidade. São para toda a gente.
Haverá muito silêncio nesse livro. Um cenário bucólico que pode, para alguns, ser uma experiência "exótica". Pelo menos para John Mateer, um dos poetas em residência este ano. Sul-africano a viver na Austrália, garante que nunca viu nada como Monsanto.
John Mateer e Anna Reckin são os poetas escolhidos para a residência deste ano, que começou em Janeiro e termina este mês. Os dois habitam a casa de pedra que a autarquia de Idanha-a-Nova recuperou e disponibilizou para o programa. É uma casa dividida em duas: cada uma com um quarto, casa de banho, kitchnette, uma sala com salamandra e uma janela enorme sobre Monsanto. Na secretária, o computador de Anna Reckin está aberto sobre a paisagem. "O espaço da página é como uma paisagem, com umas palavras contra as outras", diz.
Já escreveu mais nos três meses da residência do que no resto do ano em Norwich, Inglaterra, onde vive. "Num cenário diferente, tenho tempo para pensar, sem deadlines, sem interrupções. Aqui a poesia vem primeiro, de manhã. Em Inglaterra não. Escrevo, mas entre outras actividades e é importante quebrar a rotina."
Em Monsanto, tem tempo para passeios, para se distanciar das letras, voltar a elas, ler. Nas caminhadas, ouve um pássaro, cães a ladrarem, depois vê uma cobra: três dimensões que tem que criar de forma artificial na página.
Anna Reckin e John Mateer estão sentados lado a lado no sofá. Anna vai falando sobre a portuguesa Ana Hatherly e como lhe interessa a sua poesia visual e experimental. "Ela põe as coisas duma forma que não vi mais ninguém pôr", diz Anna, que ensina escrita criativa na Universidade de East Anglia, Inglaterra. É autora de Broder, livro que ganhou o Minnesota Book Award. Tem 51 anos.
John não revela a idade, mas é mais novo. Abre-se um parêntese na conversa para falar sobre as teorias de não-discriminação pela idade. Anna Reckin até conta que em Inglaterra é proibido perguntar a idade numa entrevista de trabalho e já não se usa colocá-la no currículo. Agora é que John Mateer não diz mesmo quantos anos tem.
O poeta, que vive em Perth, é um viajante incessante. Como Camões, o seu poeta preferido e de quem tem andado a seguir os passos no mundo. Há muitos poetas portugueses que despertam o interesse de John Mateer, mas a trilogia por excelência é Camões, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. "Os três tiveram a experiência do mundo."
Vai lançar brevemente em Portugal, pela editora Tea For One, Namban, poemas sobre o império português, e ainda, em Abril, The Azanians, poemas sobre Lisboa. Já tinha estado antes em Portugal. Mas Monsanto é diferente. "É um sítio muito remoto", diz. As ruelas mexem-lhe com a imaginação. Aliás, acha que "um sítio pequeno tende a aumentar a imaginação".
Som da névoa
Seja em Monsanto, em Coimbra ou em Lisboa, o que John Mateer nota é que as cidades portuguesas têm "uma vida social" que na Austrália não existe. "Em Coimbra, uma pessoa senta-se no Tropical [café da praça central], encontra um amigo e outro e fica quatro ou cinco horas à conversa. Essa experiência é típica. E o café é um sítio onde as pessoas falam, o que tem a ver com a forma como usam a língua, e isso tem a ver com poesia", diz o poeta que já esteve noutras residências, em Nova Iorque e em Pequim. Também Anna Reckin já teve uma "experiência semelhante" na Bulgária, igualmente "numa vila remota". Mas foram "só umas semanas".
O Programa Poetas em Residência foi criado pela comissão organizadora dos Encontros Internacionais de Poetas - que se realiza em Coimbra de três em três anos. Tirando os meses em que é para os poetas, durante o resto do ano, a casa de Monsanto continua a ser ocupada por artistas - já lá estiveram 22. É outro programa da Câmara de Idanha-a-Nova que se destina a criadores portugueses e estrangeiros de todas as áreas.
Em Portugal, há outros projectos parecidos, por exemplo, na Madeira, onde o Solar de São Cristóvão, em Machico, foi transformado em Casa do Artista. Ali, artistas portugueses ou estrangeiros podem ficar até dois meses, a convite do Governo da Região Autónoma da Madeira ou por proposta de instituições culturais.
Também em Montemor-o-Novo há residências para artistas nacionais e estrangeiros em locais como as Oficinas do Convento e ainda o Espaço do Tempo, estrutura também apoiada pela câmara local e pelo Ministério da Cultura, que acolhe artistas de diversas áreas por períodos que podem ir até quatro meses.
Por Monsanto, e no Programa Poetas em Residência, já passaram John Taggart e Cristina Babino, na primeira edição, em 2008. No ano passado, foi a vez do poeta brasileiro Márcio-André e do galego Miro Villar.
Nascida em Ancona, Itália, em Julho de 1976, Cristina Babino já recebeu diversos prémios. Recorda-se de Monsanto como uma "aldeia muito peculiar", onde o "silêncio" e "tranquilidade" a ajudaram a escrever. Inspirou-se na "paisagem" e nos "elementos naturais" que a compõem, como as "rochas típicas de Monsanto", explica por e-mail.
Também ao poeta Márcio-André, nascido no Rio de Janeiro em 1978, o silêncio falou. "Como sou um poeta também sonoro, não só a escrita sofreu influência, mas também a minha percepção dos sons. Ali eu pude explorar aquilo que está para além do som: o silêncio. O sentido de contemplação e quietude em Monsanto foi muito forte e eu pude pesquisar todas a mínimas particularidades dos timbres que a natureza rochosa e enevoada à volta me ofereciam. Pois ali até a névoa tinha som e isso foi realmente tocante", diz por e-mail.
"Para quem sempre foi acostumado a viver num grande ambiente urbano como o Rio de Janeiro e que havia tido interesse somente em cidades caóticas ou abandonadas, viver na aldeia foi um choque monstruoso", explica o também editor da revista Confraria do Vento.
"Lidar com a paisagem bucólica, um castelo medieval, templos romanos, caminhos na floresta, longas distâncias entre pequenas aldeias, rebanhos de ovelhas e seus pastores e mesmo a reclusão e isolamento marcaram profundamente a minha maneira de ser e de compreender a vida."
Com Márcio-André esteve o poeta Miro Villar. Nascido em 1965, faz parte da organização de escritores Batallón Literario da Costa da Morte. Por e-mail, a partir de Santiago de Compostela, conta que, durante o mês que esteve em Portugal, participou em leituras públicas com outros poetas da Oficina de Poesia de Coimbra e que "desse convívio" surgiram "diálogos e intercâmbios".
De todos os poetas que passaram pela casa, haverá poemas sobre Portugal na antologia bilingue que será publicada para o ano - edição financiada pela Câmara de Idanha-a-Nova. A ideia é publicar um livro semelhante de três em três anos.
Poesia viva
Para além dos momentos de escrita em Monsanto, todos os poetas participam em seminários, conferências e sessões de leitura de poemas na Universidade de Coimbra.
Para a docente responsável por este programa, Graça Capinha, "é muito importante que os alunos tenham uma relação com a poesia viva e possam participar nos processos de criação literária".
"Os alunos mantêm-se em contacto com estes poetas, participam muito activamente, e para mim isso é o fundamental. Como diziam os modernistas, "expandir as consciências" através da arte", diz Graça Carapinha.
O contacto com a poesia, com os poetas, nestes cursos tem "implicações na vida das pessoas", continua: "Altera a sua visão do mundo, transforma-as, torna-as mais universais e é isso que a universidade quer." De resto, as leituras, aulas, conferências e cursos dados por estes poetas não se destinam apenas a alunos da universidade. São para toda a gente.
.
.~
Escritos em residência
toda cidade é esboço dela mesma
ou labirinto móvel para cães
e de tanto haver coisas sempre nos adequamos a ser outro:
a cidade contém dentro três outras cidades
que nunca se tocam
e somatizam nos habitantes: até deformá-los
mas o pôr do sol é sempre esse
desde o princípio do sol e do estado das coisas
o pôr do sol que se ama como latão velho
e tudo o mais é variação de pedra
nesta cidade onde até o deus é de granito
e tem sonhos de pedra
com fêmeas mortais num jardim de areia e pedra
convém fugir da cidade antes que a velhice chegue
pois também as coisas perecem mais rápido do que podemos perceber
aqui cada dia é um dia
é preciso partir antes que chegue outro
e é triste notar que nada permanece de nosso
antes mesmo que não estejamos mais aqui
Márcio-André ?(primeira parte de um inédito)
Miradouros
Olhando pelos lugares onde ando, mas aqui ruelas, vielas, até os caminhos que levam ao campo desaparecem. Planos vagueiam para longe das ruas, massas inesperadas presentes. Telhados criam novos padrões. Pequenos pedaços de jardim, mantidos altos (uma vintena de vasos florais de terracota, cada um com o seu ainda invernoso rebento de verde) ocultam igrejas. Fontes desaparecidas; bem como os largos à sua volta. Terraços eu vejo, e onde os telhados cederam. Cascos de granito. O que é privado, o que está aberto para os céus e para a chuva. Comandar as alturas cria brechas graves.
Anna Reckin ?(inédito traduzido por Sandra Guerreiro)
?
Ode
Ó Lisboa,
só nas tuas íngremes ruas calçadas
é que uma mulher, cansada depois de um dia de trabalho,
se atreveria a ascender em saltos altos!
John Mateer ?(poema que faz parte do livro Namban, que vai ser publicado ainda este ano em Portugal, numa edição bilingue, com tradução de Andreia Sarabando)
.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário