OPINIÃO
Agora que ando com um grupo de amigos e voluntários “aos papéis”, estou
numa posição privilegiada para saber onde milhares de livros e arquivos vão
parar.
28 de Julho
de 2018, 6:42
o
Livros
são uma das coisas que nos nossos dias têm mais probabilidade de ir parar ao
lixo. Não exagero, é mesmo assim. As razões são cada vez mais habituais:
despejos ou mudanças de casa sob a pressão das novas rendas e leis do
inquilinato, e as novas casas por sua vez não têm espaço para os livros,
divórcios, falecimentos, e “os meus filhos não se interessam por isto”. Não me
cabe julgar, até porque estou consciente do drama que muitas vezes é esta
separação de alguém dos livros de uma vida.
Mesmo
quando são oferecidos a bibliotecas ou instituições, a resposta habitual é que
não os querem. Conheço muitas destas histórias e podem-se compreender algumas
das razões da recusa, e saber que, nalguns casos, não existem mesmo condições
para os receber — nem pessoal para os tratar, nem espaço para os acolher, nem
recursos para os conservar. Tudo isto é verdade. Mas estes “nãos” são também
favorecidos por uma concepção “moderna” do que é uma biblioteca pública, com
muita animação, Internet, jogos, música e DVD, e com uma enorme dificuldade em
pôr as pessoas a ler livros. É um problema que transcende as bibliotecas, e que
se relaciona com a dificuldade de manter, no mundo contemporâneo de distracções
e rapidez, actividades “lentas” e silenciosas como a leitura.
Não é
uma questão de ter qualquer fetichismo com os livros, mas a de registar uma
clara desvalorização do valor patrimonial das bibliotecas que explica a
demasiada pressa, desleixo e pouco cuidado em responder que não às ofertas, ou
em encontrar alternativas que encaminhem os livros, em função da sua natureza,
para outros destinos e outras necessidades. E por isso ou vão de imediato para
o lixo, ou ficam uns anos em caixas para depois irem também para o lixo, para o
bolor e para os bichos que os comem com mais vontade do que os humanos.
PUB
Esta
desvalorização do carácter patrimonial das bibliotecas leva muitas vezes a
considerá-los um “peso morto” que ninguém consulta. Também não tem de ser
assim, porque há maneiras de dar vida ao “morto” com vontade e imaginação. Na
verdade, as listas dos livros que nunca foram consultados, que alguns
investigadores e bibliotecários fizeram, principalmente fora de Portugal, e que
jazem nas estantes há décadas, sem nunca terem visto um olhar humano, são
particularmente interessantes. Também não me custa perceber que a mesma falta
de imaginação nas bibliotecas é o espelho do conservadorismo e apatia nos temas
de investigação nas universidades. Por exemplo, eu gostava de ler alguma
investigação sobre a “má” poesia (em edições de autor, mas não só), que enche
estantes sobre estantes, por que é que é “má”, por que é que é escrita, é
escrita por quem e quem é que acha que deve gastar dinheiro a publicá-la.
Suspeito que algumas respostas não são as que pensamos ser óbvias.
Agora
que ando com um grupo de amigos e voluntários “aos papéis”, estou numa
posição privilegiada para saber onde milhares de livros e arquivos vão parar.
Já se salvaram muitos e continuamos a fazê-lo, mas também já fomos buscar
bibliotecas e arquivos literalmente ao lixo. E não estamos a falar de pequenas
bibliotecas, ou de livros de refugo, se é que há disso. Estamos a falar de
verdadeiras bibliotecas que não são ajuntamentos, e que contêm critérios de
selecção e sinais da identidade de quem as fez, dedicatórias, notas nos livros,
coerência entre si. E, ainda mais grave, estamos a falar de arquivos e papéis
únicos, correspondência, manuscritos, etc., que, desaparecendo, fazem
desaparecer com eles parte da nossa história. A micro, mas também a macro. Por
exemplo, o lixo diz-nos que estão a desaparecer arquivos e livros que
pertenciam a antigos altos funcionários coloniais, que estão a morrer e, com
eles, parte da nossa história “ultramarina”. Voltaremos noutra altura aqui.
Tudo
isto vem a pretexto de um acontecimento desta semana. Avisados por um amigo de
que estava ao ar livre num sucateiro informal, muito informal, num improvável
local, uma grande pilha de livros, fomos lá ver e conseguimos falar com o homem
que os recebeu, para fazer um favor a uma junta de freguesia que os despejou de
uma camioneta como lixo. O seu valor para o nosso homem é o do papel, neste
caso cerca de tonelada e meia.
https://www.publico.pt/2018/07/28/culturaipsilon/opiniao/os-livros-e-os-papeis-que-vao-para-o-lixo-1839344
Sem comentários:
Enviar um comentário