terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Álvaro de Campos - Todas as cartas de amor são



David Mourão-Ferreira - Cartas de Amor de Fernando Pessoa


Álvaro de Campos
Toas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).
21-10-1935
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
  - 84.
1ª publ. in Acção, nº41. Lisboa: 6-3-1937.


David Mourão-Ferreira - E por vezes


* David Mourão-Ferreira





 E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites, não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Natal dos Herodes de hoje

* Portal Vermelho



O Natal sempre possui o seu idílio. Não pode haver tristeza quando nasce a vida, especialmente quando vem ao mundo o puer aeternus, o Divino Infante, Jesus. Há anjos que cantam, a estrela de Belém que brilha, os pastores que velam à noite o seu rebanho. Mas lá estão principalmente Maria, o bom José e o Menino deitado numa manjedoura, “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. E eis que apareceram também vindo do Oriente, uns sábios, chamados magos, que abriram seus cofres e ofereceram ouro, incenso e mirra, símbolos misteriosos.

Mas havia também um rei mau, Herodes, crudelíssimo a ponto de dizimar toda sua família. Ouviu que nascera na cidade de Davi, Belém, um menino que seria o Salvador. Temendo perder o trono, mandou matar em Belém e arredores, todos os meninos de dois anos para baixo.

Os textos sagrados conservam um lamento dos mais pungentes de todo o Novo Testamento:

Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e muito gemido. É Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu”.
(Evangelista Mateus 2,18)
O Natal deste ano nos traz à mente os atuais Herodes que estão dizimando nossas crianças e jovens. Entre 2007-2019, 57 crianças e jovens até 14 anos foram mortos no Brasil por balas perdidas, em ações policiais. Só neste ano de 2019 no Rio de Janeiro, 6 crianças e 19 adolescentes perderam a vida em ações policiais, informa a Plataforma Fogo Cruzado. Houve na região metropolitana do Rio 6.058 tiroteios com arma de fogo, com 2.301 pessoas baleadas das quais 1.213 foram mortas e 1.088 gravemente feridas.. O caso mais clamoroso foi da criança de 8 anos Aghata Félix morta por disparo de fuzil pelas costas dentro de uma kombi quando ia para casa com sua mãe.

Seus nomes merecem ser referidos. Embora com poucos anos a mais, tiveram o mesmo destino dos mortos por Herodes: Jenifer Gomes,11 anos; Kauan Peixoto 12 anos; Kauã Rozário 11 anos; Kauê dos Santos 12 anos; Agatha Félix 8 anos; Ketellen Gomes 5 anos.

O governador do Rio de Janeiro com sua polícia feroz vem sendo acusado de crime contra a humanidade pois manda atacar as comunidades com helicópteros e drones, aterrorizando a população. O prefeito Marcelo Crivella confessou que nas 436 escolas instaladas nas comunidades, devido às ações policiais, as crianças perderam 7000 horas de aula.

Junto com a mãe de Aghtata Félix, Vanessa Francisco Sales que carregava no enterro a boneca da Mônica que sua filhinha tanto gostava, fazem-se ouvir as mesmas vozes que a Raquel bíblica: As mães do Morro do Alemão, do Jacarezinho, da Chatuba de Mesquita, da Vila Moretti de Bangu, do Complexo do Chapadão, de Duque de Caxias, da Vila Cruzeiro no Complexo da Penha, de Maricá. Escutemos seus lamentos:

Ouvem-se muitas vozes, muito choro e muitos gemidos. As mães choram seus queridos, mortos por balas perdidas; não querem consolar-se porque perderam suas crianças para sempre. Pedem uma resposta que não lhes vem de nenhuma instância. Entre lágrimas e muitas lamentações suplicam: parem de matar nossas crianças. Parem, pelo amor de Deus. Queremos elas vivas. Queremos justiça”.
Este é o contexto do Natal de 2019, agravado por uma política oficial que usa os meios perversos da mentira, do fake news, de muita raiva e de ódio visceral. Jesus nasceu pobre e pobre viveu a vida inteira. E surge um presidente que tem frequentemente Jesus em seus lábios e não em seu coração porque difunde ofensas a homoafetivos, a negros, a indígenas e a quilombolas e a mulheres.

Diz abertamente que não gosta de pobres, quer dizer, não gosta daqueles que Jesus disse: “bem-aventurados os pobres” e e que os chamou “meus irmãos e irmãs menores” e que no ocaso da vida serão nossos juízes (Mt 25,40). Não gostar dos pobres significa que não quer governar para as maiorias dos brasileiros que são pobres e até miseráveis, para os quais deveria primeiramente governar e cuidá-los.

Apesar disso tudo, há que se celebrar o Natal. Faz escuro mas festejamos a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Ele se fez criança indefesa. Que felicidade em saber que seremos julgados por uma criança que apenas quer brincar, receber e dar carinho e amor.

Que o Natal nos conceda um pouco daquela luz que vem da Estrela que encheu de alegria os pastores dos campos de Belém e que orientou o sábios-magos para a gruta. “Sua luz ilumina cada pessoa que vem a este mundo”(Jo 1,9), você e eu, todos, não só os batizados.

por Leonardo Boff, Doutor em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia, de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro  | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Nuno Ramos de Almeida, - O Natal é vermelho

* Nuno Ramos de Almeida


(Che Guevara aterra na Argélia, fotógrafo desconhecido)

Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas em que viviam crianças. Era membro de um comunidade embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedo a cada um de nós. Mas na altura isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.

Tinha a nítida sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Aqui estavam pessoas de muitas raças e países. Na Argélia andava na escola francesa. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados políticos. A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha corrido pelas ruas. Milhões tinham morrido nos bombardeamentos dos franceses. A tortura durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem aguentar sem falar três dias – apenas três dias, para permitir mudar os contactos e resistir à repressão. Depois da independência a cidade viveu um sonho estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações. Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vividos em prédios europeus. Mais tarde o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrando com o nome de Che. Já adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.

Eu frequentava uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam batiam–nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que a minha pedra e de um amigo argelino lhe acertou em cheio. Quando nos bateram a seguir quase não doeu. Anos mais tarde, em França, numa casa de apoios de camaradas do PCF (Partido Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em Portugal. Por causa dos “maus”, a PIDE, tinha de escolher um nome. Um nome diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio que os meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era de facto grande. Caminhei até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no dia seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de ferro. Chegamos a Lisboa e arranjamos uma casa clandestina. A minha mãe mobilou-a com todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na área social, para passarmos por uma família normal. Gastou menos que o previsto, estava feliz. Mas mais tarde o camarada responsável pelas casas criticou-a por ter gasto dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu esquecer o facto, quando, anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos o aparelho clandestino. Pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e respondeu, dura: “Diz ao fulano (o camarada com quem ela tinha discutido) que compro tudo menos o esquentador.”

Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o Sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher uma pedra.


César Príncipe - Canção de Natal

* César Príncipe



https://aviagemdosargonautas.net/2019/12/25/cesar-principe-cancao-de-natal/

Pedro Tamen - Não digo do Natal

* Pedro Tamen


Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cio

nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos

por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,

e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.

Pedro Tamen, in Antologia Poética 

O burro do presépio e todos os outros (um conto de Natal de José Tolentino Mendonça)

24.12.2019 às 21h05

Diz-se que os burros podem percorrer quatro quilómetros por hora e 24 quilómetros por dia. Penso, por vezes, que essa é a velocidade com que a tristeza caminha sobre a terra

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (TEXTO) ALEX GOZBLAU (ILUSTRAÇÕES)


ALEX GOZBLAU

Contaram-me que no “Dispensário Popular para Animais Doentes”, em Londres — uma maravilhosa instituição que oferece até aos dias de hoje uma parte significativa da sua atividade veterinária de forma gratuita —, existe uma inscrição que recorda todos os animais que foram mortos na Primeira Guerra Mundial, “nada sabendo das suas causas, não alimentando esperança alguma de vitória, movidos apenas pelo amor e pela lealdade” aos seres humanos. É um facto pouco recordado, mas nesses anos de 1914-1918, em que abundavam os meios mecânicos de transporte, um sem-número de animais foi forçado a desempenhar um papel no teatro militar. As cavalgaduras, por exemplo, protagonizaram episódios frequentes de deslocação de armamento e de tropas no terreno, sobretudo quando se tratava de territórios particularmente duros e inacessíveis, suportando com os soldados, e em seu favor, as condições de vida mais terríveis. Só o exército inglês importou da África do Sul, para serem utilizados na logística da guerra, 45 mil burros. Em Itália, em concreto nas zonas montanhosas onde atuavam os batalhões alpinos, cada divisão chegou a ter mais de 200 ao seu serviço. E o mesmo em França, sobre a frente ocidental do conflito, onde esses animais transportaram toneladas de munições e alimentos. E. H. Baynes relata no seu livro “Animais que Foram Heróis na Grande Guerra” o espanto de um oficial britânico perante um desses jumentos que atuava precisamente junto a um batalhão francês. Um projétil havia-o cegado e arrasara-lhe impie­dosamente as orelhas. O que delas restava parecia coroar agora a sua cabeça como torturantes pontas de arame farpado. E, mesmo assim, o animal insistia em prosseguir na realização daquela obra. Porém, a proverbial teimosia com que a sua espécie enfrenta a adversidade não deve fazer esquecer a realidade: os larguíssimos milhares de burros que pereceram ali, desconhecendo tudo sobre as razões do que sucedia, eles que por fidelidade e amor aos seres humanos se viam misturados involuntariamente com a primeira guerra química da história. Por isso, quando em “Animal Farm”, essa extraordinária fábula política com que George Orwell procura iluminar a escuridão de um século, se explica ao leitor que “os burros vivem muito tempo, e que nenhum de vós viu jamais um burro morto”, é evidentemente para ler ao contrário. O que pode assomar como uma farsa é, do princípio ao fim, uma elegia.

No British Museum conserva-se um achado arqueológico sumério, denominado “Estandarte de Ur”. Tem dois painéis principais, um que representa os tempos de paz e o outro a estação da guerra, e remonta a cerca de 2550 a.C. No painel dedicado à guerra vemos uma sucessão de carros militares conduzidos por burros, o que mostra como, desde os primeiros conflitos registados iconograficamente, estas criaturas foram submetidas às férreas ambições de cada época. Os burros do rei da Suméria parecem, no entanto, nessa representação figuras ingénuas de um delicado carrossel. E talvez isso intensifique a emoção que sobrevém ao contemplar o painel. Os asnos galopam numa ondulação marcada, isenta de violência, quase festiva, totalmente alheia ao cerco do terror. Mas o intervalo dos seus passos, no alinhamento do desenho, destapa o impensável: a morgue monumental em que a realidade dos povos, por vezes, se torna. Os corpos humanos tombados, que os nossos próprios olhos terão dificuldade em enfrentar, poderiam pertencer ao lápis apavorado de Otto Dix, de George Grosz, de Albin Egger-Lienz ou de qualquer outro pintor moderno da guerra. É como se não existisse diferença alguma. Os burritos do delicado carrossel do rei sumério atravessaram essas incompreensíveis linhas de fogo em rebentação. E, a quatro quilómetros por hora, sobre o seu galope inofensivo, se abateu a brutalidade da história. No exército romano acontecerá o mesmo, e repetidas vezes. Os garbosos cavalos eram naturalmente os animais preferidos e os mais usados, pelo menos entre os oficiais. Mas quando as condições de sobrevivência se tornavam desesperadas — e as quantidades de forragem necessárias para nutrir os cavalos eram já inalcançáveis — requisitavam-se os burros. Quando, por exemplo, numa das etapas da guerra civil que opôs César a Pompeu, as tropas deste incendiaram os campos para evitar que os cavalos de César se alimentassem, os homens deste conseguiram nutrir os burros com algas lavadas em água doce, a que misturavam uma mísera sombra de erva que restava.


ALEX GOZBLAU

Os burros estão associados historicamente às estações de pobreza e aos pobres. É certo que se diz que o carro funerário de Alexandre Magno foi escoltado, de Babilónia a Alexandria, por 64 burros magnificamente ornamentados com colares de preciosas pedras e pendentes dourados. E há um asno que cospe moedas de ouro numa das história dos irmãos Grimm. Mas não foi num burro assim que Abraão subiu ao monte Moriá para sacrificar Isaac nem que Maria e José viajaram até ao Egito para salvar Jesus.

Já os escritores do mundo antigo (Paládio, por exemplo, que foi um rico fundiário e escreveu abundantemente sobre as práticas agrícolas) referiam a importância do jumento para o trabalho do campo, sublinhando a sua compleição robusta, a sua resistência à dureza das condições meteorológicas e o facto de adoecerem muito raramente. A verdade é que sem o seu contributo, desde há milhares de anos, muitas vezes teriam faltado os produtos alimentares nos mercados, a água ou o azeite nas povoações, o pão na mesa, a lenha para acender o fogo nas noites intermináveis de inverno, as matérias-primas para os ofícios ou os argumentos para a razão, mesmo se na história — pensemos naquela que Cervantes escreveu — os cavalos têm nomes (“Rocinante” é o da pileca de D. Quixote) e os burros permanecem anónimos (Sancho Pança identifica o seu apenas pela cor). Mas nem sempre é assim, claro. O burro de Juan Ramón Jiménez todos sabem que se chama “Platero” (que belo nome para um companheiro e confidente de viagem). Como o de Robert Louis Stevenson se chamava “Modestine” (era uma égua). Os miúdos (de qualquer idade) que tenham lido o “Winnie the Pooh” sabem que o introspetivo burro de cor cinzenta se chama “Isaías” (Ih-Oh). E até o burro de George Orwell tem um nome: “Benjamin”.


ALEX GOZBLAU

A Bíblia contém um número astronómico de animais. Estes são ali citados 3594 vezes. O primeiro nomeado é a serpente, no Livro do Génesis, e o último o cordeiro, no Apocalipse. O burro surge 163 vezes, o que não é pouco. Faz a sua aparição no Livro do Génesis, quando Abraão recebe por equívoco do faraó um dote por Sara: “ovelhas, bois e jumentos” (Gen 12,16). Na ética do Sinai (Ex 23), a lei do descanso sabático deveria abranger também os burros com os quais se trabalha (“para que descanse o teu jumento” — diz-se). Mas não só. Um importantíssimo passo civilizacional são os deveres para com o asno do inimigo que a Bíblia impõe: “Quando vires um jumento daquele que te odeia caído debaixo da sua carga, não o abandones. Deves soltá-lo com ela” (Ex 23,5). De facto, configura-se aí uma renúncia às tradições de vingança, tão enraizadas no mundo antigo (e de todos os tempos), e a emergência de uma lógica outra, assente no perdão e no amor. Um texto emblemático da irrupção deste inédito modelo social é Deuteronómio 22,1-4: “Se vires perdidos o boi ou a ovelha do teu irmão, não te desvies deles; mas leva-os ao teu irmão. Se o teu irmão não estiver próximo de ti e não o conheceres, recolhe o animal em tua casa, onde permanecerá até que o teu irmão o reclame e lho entregues. Procederás do mesmo modo com o seu jumento, com a sua capa ou com qualquer outra coisa perdida pelo teu irmão e encontrada por ti. Não te desviarás desse objeto. Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se”.

E há, depois, aquelas passagens misteriosas da Bíblia a propósito dos burros. O episódio mais divertido é o do jumento ou o da égua de Balaão (as traduções hesitam) que, muito antes do seu dono, e bem mais claramente do que ele, se apercebe da presença de um anjo no caminho que percorriam (Números 22,21-33). Por três vezes, o animal vê o anjo e desvia-se e das três é fustigado por Balaão. O texto reserva então ao leitor duas surpresas. Na primeira, o próprio burro interroga o dono: “Que te fiz para me bateres?” A segunda acontece quando finalmente também Balaão avista o anjo e este lhe pergunta: “Porque vergastaste três vezes a tua jumenta?”

Outra passagem misteriosa — e estamos a avizinhar-nos do fim — é aquela do arranque do Livro do Profeta Isaías e que, porventura, se liga diretamente à presença de um burro no presépio: “Ouvi, ó céus, e escuta, ó terra, porque é o Senhor quem te fala: ‘Criei filhos e fi-los crescer, mas eles revoltaram-se contra mim. O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor; mas o meu povo nada entende’” (Is 1,3-4).

O burro do presépio sempre me comoveu, mas, por vezes, dou comigo a pensar que entenderemos melhor o seu papel se o ligarmos ao que tem sido o destino da sua espécie. Este do presépio poderia chamar-se “Platero”, como o de Jiménez. Ou então, como o de George Orwell, “Benjamin”. O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos: “Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura” (Lucas 2,10-12). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores, encorajado pelo seu ruído festivo no meio da noite, motivado pelos seus cantos. Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. Sabe-se que os burros podem percorrer quatro quilómetros por hora, mas por trilhos abreviados que só eles arriscam. Por isso, quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio. Estava deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pelo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.


domingo, 22 de dezembro de 2019

MARIA, JOSÉ E JESUS



Sexta, 21 de Dezembro de 2018 porunsaharalibre

PUSL.- Maria, José e Jesus são o símbolo anual de pessoas em busca de refugio, de calor, de solidariedade, de fraternidade. Símbolo também de que a nossa acção individual conta ao darmos abrigo, ao partilhar, ao não rejeitar o “outro”, o “estrangeiro”, o “pobre”, o que necessita de ajuda. Não através da caridade, mas sim através da solidariedade.

A Solidariedade tem muitos rostos, pode-se expressar de muitas formas e uma delas é não aceitarmos politicas que conduzem povos inteiros a necessitar de “caridade” e “ajuda humanitária”.

Vos deixamos três historias verídicas como prenda de natal, e esperamos que as compartem num ato de solidariedade e como ação individual de denúncia e rejeição da grande injustiça que impomos ao povo saharaui.


A grávida

Ela não que ir para o hospital. As contrações cada vez mais fortes provocam-lhe as dores que as mães têm que suportar antes de colocar no mundo mais um ser que sai da proteção do ventre.

Suelma grita e chora, sabe que tem que ir para o hospital, mas também sabe que existe o perigo. As primas depois de darem à luz no hospital de El Aaiun nunca mais conseguiram engravidar. A vizinha, como cada vez mais saharauis, teve um bebé com paralisia cerebral.

Ela sabe que usam quase sempre umas coisas como “tenazes” para puxar os bebés e que os partos das saharauis implicam muitas vezes o “atraso” na saída do bebé. Nada tem a ver com a genética, as primas que vivem nos campos de refugiados em Tindouf dizem que lá nada disto acontece.

No inicio da gravidez os médicos marroquinos mandarem-lhe fazer 3 RX mas ela não os fez. O hospital é perigoso, todos os saharauis o sabem. Médicos e enfermeiros do estado marroquino, estão ali para defender a ocupação, não para tratar nem cuidar. Quantos menos saharauis melhor para eles.

Dirige-se ao carro rezando, rogando para que o seu bebé nasça saudável.


O sem abrigo

Mohamed é identificado pela policia em Paris, não o veem como refugiado, veem-no como um sem abrigo. Não fala francês suficiente para explicar como e porque chegou ali. Entrou por Espanha mas não há trabalho no país que é o responsável da miséria e da violência a que os saharauis estão sujeitos nos territórios ocupados, e ao exilio violento no campos de refugiados no sul da Argélia. Assim chegou a França em busca de trabalho para alimentar a família, para sobreviver.

Não tem papéis, apenas uma nacionalidade imposta pelo ocupante marroquino. Um cartão de identidade com SH antes do numero (SH de Sahara Ocidental).

Faz dias que não come e o frio de Paris provocou-lhe uma infecção pulmonar. A. policia leva-o para um centro.

Para onde o irão enviar?


A criança

Ontem bateram-lhe por não cantar o hino marroquino. Hoje tem aula de história, quase de certeza que lhe vão bater outra vez. Contam mentiras e querem que ela repita. Não vai repetir. O pai é preso politico e ela não o vê há meses. A mãe diz que esta tudo bem, mas ela sabe que não.

Os policias rondam a casa. A mãe não tem dinheiro para ir às compras. Tudo é difícil. Tudo é injusto.

À noite ouviu a tia dizer que tinham posto veneno na comida dos presos políticos, todos estão doentes dizia ela.

A prisão é a centenas de Km’s de El Aaiun, não vai poder visitar o pai , não há dinheiro.

Odeia os marroquinos, odeia os policias e militares que se passeiam nas ruas de El Aaiun e atacam as casas dos saharauis.

Sonha com ser uma criança como nos filmes, numa casa com os pais e um sorriso no rosto.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A.M.Pires Cabral - Folha Rubra

* A.M.Pires Cabral


É bom sermos como essas folhas verdes
que prolongam todo o ano a Primavera.

Mas melhor do que isso
é sermos como aquela folha rubra
que antes das outras pressentiu o Outono
e vestiu para ele a sua melhor cor,

mesmo sabendo que o Inverno tem um plano
para em breve a dissolver no chão.



sábado, 14 de dezembro de 2019

António Cardoso - Poesia e Prosa

*António Cardoso

Exílio

Eu vivo na minha terra
Mas estou exilado.
Quem vive nela não sou eu
Mas outro que em mim vive.
A minha terra está por vir
E o meu outro ser vive, vive...
...vive à espera desse porvir

in Poemas de Circunstância (2003)


Há Momentos

Há momentos na vida de um Homem
Em que sabe que acordou diferente
E que já não é o mesmo para ele,
Mesmo que o seja para toda a gente...
Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Aquela que lhe trouxer
A flor do sexo
Desenhada a vermelho no ventre
E nada lhe perguntar...
Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma mulher
Aquela que lhe trouxer,
Num abraço total,
A ilusão da vida inteira...
E, depois, partir
Com a esperança de vida que ele semeou...
Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Para todo o Mundo se resumir
À flor vermelha
Como um bocado de sol
Que desponta numa telha!

21-2-55


 Inútil Chorar

É inútil chorar:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»
Por todos os que tombam pela verdade
Ou que julgam tombar.
O importante neles é já sentir a vontade
De lutar por ela,
Por isso é inútil chorar.
Ao menos se as lágrimas
Dessem pão,
Já não haveria fome.
Ao menos se o desespero vazio
Das nossas vidas
Desse campos de trigo.
Mas o que importa
É não chorar:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»
Mesmo quando já não se sinta calor
É bom pensar que há fogueiras
E que a dor também ilumina.
Que cada um de nós
Lance a lenha que tiver,
Mas que não chore
Embora tenha frio:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»

21-2-55


Baixa & Musseques

"...Sô'bílio era dono de muitas cubatas, quase todas a cair mesmo, umas de adobe e zinco, rebocadas, caiadas, outras, só pau-a-pique e capim, chovia em todas, no entanto, tinha no peito dele uma pedra... Da nossa cor mesmo, nunca que perdoava... Usava sempre fato escuro, chapéu, bengala, falava parecia padre, muito doce, mas ninguém lhe convencia... Assim rico, habitava uma casa podre: seu orgulho mesmo, era aquele filho que estava em Lisboa no estudo, quase engenheiro mesmo... Volta meia volta. Se desculpava: não posso mana, um filho gasta muito dinheiro, livros, comida, você julga Lisboa é Luanda..." Extracto do conto "Lavadeira da Baixa", In: António Cardoso, do livro Baixa & Musseques, União dos Escritores Angolanos, 1980, 1ª ed.





https://www.ueangola.com/index.php/bio-quem/item/43-antonio-cardoso.html

Manuel Carvalho - Vergonha ....


EDITORIAL  por Manuel Carvalho
Vergonha…
Um político com a experiência de Ferro Rodrigues devia saber que os populistas infiltrados no coração da democracia se alimentam da provocação. Dar-lhes fio à estrela é criar-lhes palco e promover o seu reconhecimento.
14 de Dezembro de 2019, 6:52
O Parlamento não aprendeu a lidar com os populistas que lhe entraram portas adentro e o seu presidente, o muito honorável e vetusto Eduardo Ferro Rodrigues, ainda acredita que o hemiciclo é habitado em exclusivo por cavalheiros de bons modos e finas falas. Foi por isso que caiu no disparate de criticar André Ventura pelo uso e abuso da palavra “vergonha”. Disparate porque, que se saiba, dizer que uma política é “vergonhosa” não ofende a cidadania habituada ao crescendo de linguagem agressiva nos últimos anos ou às histórias de deputados que falsificam as suas presenças ou os seus endereços para receber mais ajudas de custo. Disparate ainda maior porque um político com a experiência de Ferro Rodrigues devia saber que os populistas infiltrados no coração da democracia se alimentam da provocação. Dar-lhes fio à estrela é criar-lhes palco e promover o seu reconhecimento.

Nada do que se passou no lamentável incidente entre o presidente da assembleia e o deputado faz sentido. O discurso de André Ventura é uma vergonha pela demagogia, não tanto pelas palavras que usou para a desenvolver. Até porque um parlamento é um espaço de irrestrita liberdade onde só o bom senso, a moderação, a tolerância e o respeito pelo pluralismo têm de ser definidos de forma ampla. Não compete ao seu presidente determinar se o uso, mesmo reiterado, da palavra “vergonha” cabe ou não cabe nessas regras. Até porque cabe. Porque a palavra não choca nem surpreende no léxico parlamentar. E porque é normal que o deputado, à luz do seu programa, sinta rubor na face, ou opróbrio, ou receio de desonra por ter de discutir na casa da democracia. É bom que André Ventura se sinta envergonhado. Os que não simpatizam com o seu discurso, ficam até satisfeitos por isso.  

Ao censurar esse direito banal ao deputado como forma de defender o “prestígio” do Parlamento, Ferro Rodrigues excedeu-se. Mostrou preconceito, porque em variadíssimas vezes os deputados do Bloco ou do CDS usaram palavras equivalentes ou mais graves sem que isso o preocupasse. Mostrou que não sabe como moderar os instintos extremistas e manipuladores de uma certa direita. E mostrou que não percebe o processo de construção de projectos políticos como o do Chega. Juntando todas estas falhas, André Ventura pode expor-se como vítima, transformou o arrufo numa questão de Estado que reclama a intervenção do Presidente, e, mesmo até para os que execram as suas ideias e as suas palavras, pôde surgir em público como o paladino no combate contra uma certa classe política que se julga dona do país. Uma vergonha.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Arquimedes da Silva Santos - Que mágoa tenho! Que mágoa tenho!

*  Arquimedes da Silva Santos

Que mágoa tenho! Que mágoa tenho!
Em minha pátria estranho.

(E a medo e em segredo
Ver o voo de aves
Remar a outro lar)

Em minha pátria estranho
Que mágoa tenho? Que mágoa tenho?

In «Cantos cativos – Poemas coligidos: 1938-58», de Arquimedes da Silva Santos, Colecção Campo da Poesia (n.º 51), Campo das Letras, Porto, Maio de 2003 (1.ª edição).

3 poemas de Arquimedes da Silva Santos

* Arquimedes da Silva Santos

Fragmentos de "Rapsódia da Guerra"

1

Em todos os portos do mundo
há sempre um velho marinheiro olhando olhando
íris esbranquiçada do sal do mar.
Em todos os portos há sempre um velho marinheiro olhando
e perscrutando o que as ondas segredam.
Que sobre as onsas do largo mar não há mais Paz
porque as tinge o sangue de corpos estilhaçados
corpos por minas despedaçados
retesados e hirtos e inchados
boiando sobre as ondas num sonho de Paz...

E velhos marinheiros ouvem águas murmurar
a elegia dos gemidos de jovens marinheiros...


****

Luso leixa mais de ouvir
Profecias de bandarras.
Em areais dos quibir
Fados de morte ou fugir
Soluçam sempre guitarras.
Dom sebastião primeiro
Não esperes pobre e nu.
Neste país marinheiro
Povo sai do nevoeiro
O desejado é só tu.



****

O guardador de pombas
Livra-as pela tardinha

E voam e revoam
Circulos espirais

Ruflam céleres
E tornam e retornam

Graves ao pôr do sol
Retombam nos pombais

Por fios de assobios
Ó guardador de pombas


Arquimedes da Silva Santos, Cantos Cativos, Porto: Campo das Letras, 2003, p.17, 146, 161

Arquimedes da Silva Santos - Poema do Acordo Ortográfico

* Arquimedes da Silva Santos


Pois o que havia de acontecer à língua
assim, sem mais nem menos, logo agora…
Qual será o factor, perdão, fator que o explica?
coisa tão inusitada, a mudança. Ou não?
Mas enquanto os Velhos do Restelo vociferam
e os defensores vivem a primavera da vitória,
as palavras chegam-nos despidas do velho,
límpidas e exatas no corpo que as diz.
Nada me pesa na ação, na atividade, no atual.
Adoto facilmente o novo, não sou cético – sou arquiteto
das origens renovadas pelo uso e desuso.
Faço coleção de pequenos meses, dias e estações
e de obras, ruas, sabedorias e pessoas superiores
que me surgem como querem que elas surjam.
Não hei-de, perdão, não hei de queixar-me
daquele sinal que separa os elementos que se querem casar,
porque vou fazer um inter-rail, pois sou pró-europeu
e sou super-resistente (até porque uso anti-histamínicos)
e gosto de ver amores-perfeitos pelas ruas em perspetiva,
e porque há tantos outros que se casam
num fim de semana ao pôr do sol:
autorretrato, coautor, cosseno, subregião
e até a minissaia fica mais longa, mas mais perto…
A todos aqueles que me lêem, perdão, leem,
saibam que encontrámos muitos casos giros
porque para o pelo para sair pelo pau onde pelo pêssegos
ou porque o egípcio vive no Egito e não no Egipto
e não é porque há reivindicações por lá.
E porque tudo isto vai já longo – verdadeiros heróis
que me creem de bem com esta paranoia
vamos sair para todas as rosas dos ventos,
olhar o maio deste acordo outonal –
– a dúvida é ficção desmontada dia a dia
e o sol ainda nos chama para o cor de laranja
lá fora.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Helena Matos - As pessoas estúpidas

* Helena Matos
Colunista do Observador

As pessoas estúpidas são tão estúpidas que sustentam uma das mais florescentes indústrias do mundo capitalista: a indústria do viver bem à conta de chamar estúpidos aos outros.

08 dez 2019, 07:49
    
Não sei se a culpa foi do marido de Penélope Cruz gritando “estúpido” na Marcha do Clima, em Madrid, se do marido da filha do dr. Louçã transformado em profeta do apocalipse ambiental. Mas de algum deles foi certamente pois ambos com o seu particular e bem sucedido modo de vida fizeram-me perceber a importância das pessoas estúpidas. Ou seja aquelas pessoas que, com os seus impostos em ordem e desejo de viver em paz e sossego, mantêm a funcionar um sistema que o senhor Bardem e o marido da filha do dr. Louçã declaram abominar.

O genro do dr. Louçã além de ser genro do dr. Louçã, o que em Portugal é uma espécie de posto, é também dirigente de uma associação que se destacou por ter ido com vários deputados e o presidente da CML esperar a embarcação em que viajava, à boleia, uma adolescente que se notabilizou por gritar e faltar à escola. Perante isto as pessoas estúpidas interrogam-se: se não levarem os filhos à escola e os largarem pelas ruas será que os deputados, o presidente da CML, a família Louçã e os activistas do costume deixam de proferir insanidades eco-betas nas docas do Tejo e tentam entrar nos comboios atrasados da linha de Sintra? Isso, dirão os estúpidos, isso sim seria um forte contributo para perceberem porque há quem passe horas enfiado num carro, nas filas do IC19.


Aliás as pessoas estúpidas têm um problema com os transportes. Por exemplo, obstinam-se em viajar, transformando-se então no ex libris da estupidez: o turista. As pessoas inteligentes não são turistas, são viajantes. Os protegidos das pessoas inteligentes são migrantes. Já as pessoas estúpidas quando viajam são turistas obviamente estúpidos que estupidamente destroem o caracter autêntico das cidades. Pelo contrário os viajantes e os migrantes enriquecem as mesmas cidades. Percebido?

Como é óbvio as pessoas estúpidas, certamente porque são estúpidas, não percebem o atrás exposto e também não conhecem gente suficientemente inteligente (leia-se abonada) que possa emprestar-lhes um iate ou um catamarã. Aliás as pessoas mais estúpidas de todas até questionam o que seria dos oceanos se cada um dos estúpidos que agora viaja de avião optasse pelos meios de transporte que os inteligentes dizem sem impacto ambiental. Por exemplo, quantos milhões de catamarãs e iates teríamos a sulcar os mares caso prescindíssemos dos aviões? Ou será que só os inteligentes, milionários como os príncipes do Mónaco e os que poeticamente dizem que resolveram largar tudo e partir à aventura (ou seja vivem à conta da família ou dos patrocinadores) é que viajavam?

Como se vê as pessoas estúpidas perdem-se nos detalhes. Aliás as pessoas estúpidas são tão estúpidas que não percebem como os mesmos políticos que falharam rotundamente quando, nos incêndios de 2017, o país viveu uma situação de emergência se propõem agora resolver nada mais nada menos que a emergência climática do planeta. Valha a verdade, e contra nós portugueses falo, se nos fiarmos no percurso do engenheiro Guterres, temos de admitir que é mais fácil ser bem sucedido a mandar no planeta que neste seu modesto rectângulo! É evidente que as idiossincrasias nacionais levam a que as nossas pessoas estúpidas sejam ainda mais estúpidas que as demais. Por exemplo, perante a magnitude do conceito da justiça climática qualquer estúpido português dirá que aquilo que ele queria mesmo era uma justiça que funcionasse em prazos e moldes humanamente razoáveis. Isto para não falar da desordem mental que alguns estúpidos experimentam quando constatam que o mesmo país, Portugal, que segue com entusiasmo militante as sessões do inquérito ao presidente dos EUA aceitou em silêncio que o presidente da república e o primeiro-ministro de Portugal não fossem interrogados a propósito do desaparecimento/achamento das armas de Tancos porque isso pertubaria o desempenho das suas altas funções.

Está percebida a dimensão estratosférica da nossa estupidez?

As pessoas estúpidas são insensíveis aos altos voos e aos avanços civilizacionais. Por exemplo, as pessoas estúpidas não compreendem como é possível que com a Segurança Social à beira da falência o país tenha agora como desígnio não a resolução desse enorme problema mas sim a criação de um problema que nunca teve: as regiões e a regionalização.

Uma das grandes dificuldades das pessoas estúpidas resulta da sua mania de tomar tudo à letra. Por exemplo, as pessoas estúpidas acreditam que desde Novembro de 2015, o Tribunal Constitucional, os reitores indignados, os bispos agitados e os empresários compungidos entraram para a lista das espécies ameaçadas de extinção. Porquê? Porque paulatinamente têm vindo a escassear os sinais da sua outrora espalhafatosa existência.

Às pessoas estúpidas também lhes escapa a dialéctica subjacente ao facto de o mesmo governo querer às segundas, quartas e sextas construir um aeroporto no Montijo e urbanizar os terrenos da antiga Lisnave e às terças quintas e sábados pretender que as alterações climáticas vão fazer subir o nível das águas do estuário e consequentemente inundar os mesmos terrenos que no dia anterior pretendia urbanizar. Mas não acaba aqui a estupidez emanada pelas pessoas estúpidas. Por exemplo, é de uma tacanhez profunda que as pessoas estúpidas não só não percebam mas sobretudo insistam em chamar a atenção para o facto, paradoxal dizem eles, de os maiores defensores das escolas públicas e dos hospitais públicos, tratarem de não os frequentar nem eles nem os seus filhos.

“Que mude o sistema, não o clima” – gritava-se na Marcha do Clima, em Madrid, a tal marcha em que Bardem, um daqueles actores espanhóis com muito pedigree esquerdista que se mudou para os EUA para enriquecer a sério, resolveu prodigalizar o epíteto estúpido a todo e qualquer que não pense como ele.

De facto as pessoas estúpidas são mesmo estúpidas. Há quanto tempo têm de aturar esta conversa do “mudar o sistema”? Está mais ou menos implícito que todos temos de querer mudar o sistema, entendendo-se por sistema as democracias liberais. A quem quer mudar o sistema não se lhe pede um programa ou reflexões. Apenas emoções e de preferência algum mistério. Num ápice os jornais enchem-se de artigos hagiográficos sobre a figura de turno. Ainda se lembram do subcomandante Marcos com o seu rosto tapado que nos ia ensinar novas formas de organização do estado, ou seja do sistema? Quanto mais ignorante ou tresloucado for o candidato a guru da mudança do sistema maior a possibilidade do seu sucesso. Uma constante do nosso sistema é precisamente a disponibilidade das pessoas que se têm e são tidas como inteligentes para apoiar os projectos mais desequilibrados e os líderes mais perversos. Basta que acreditem que vão mudar o sistema e ei-los nas ruas, com aquele ar beatífico de quem se considera do lados dos bons.

Vale aos fiéis seguidores de Greta Thunberg que esta não passa de uma adolescente mimada e que o capitalismo inventou os telemóveis, caso contrário acabariam prisioneiros numa aparentemente perfeita comunidade agrícola, como aconteceu há 41 anos aos desgraçados que seguiram um dos ídolos do progressismo de então, Jim Jones.

Mas deixemos as pessoas inteligentes e voltemos às estúpidas. Contra tudo e todos, as pessoas estúpidas existem e estão fartas de tanto avanço civilizacional, de tanto combate e de tanta mudança radical. As pessoas estúpidas querem simplesmente que quem governa governe e não invente manobras de diversão. Pode parecer estúpido mas valia a pena tentar, digo eu.

As pessoas estúpidas querem recuperar a naturalidade dos gestos. Querem comprar uma camisola este Natal sem ter de pensar em todos os dramas do mundo. Querem que comer seja simplesmente comer e não um manifesto em prol da saúde, do ambiente e do comércio um pouco justo ou muito injusto. As pessoas estúpidas querem levar os filhos e os netos ao Jardim Zoológico sem antes terem de fazer mea culpa.

As pessoas estúpidas querem poder amar e desamar sem o medo dessa espécie de ébola das relações e das palavras que é o politicamente correcto.

As pessoas estúpidas às vezes cansam-se. De ser estúpidas? Não. Apenas que não contem com elas. Afinal se a comprovada inteligência de gente comprovadamente inteligente nos trouxe à farsa desta semana em torno de Greta Thundberg é evidente que chegou o momento de dar a vez aos estúpidos.

Pedro Homem de Mello - Povo que lavas no rio

* Pedro Homem de Mello


João Villaret - Povo que lavas no Rio


AMÁLIA, - Povo que Lavas no Rio
(Pedro Homem De Mello/Joaquim Campos)


António Variações - Povo que Lavas no Rio

Povo que lavas no rio
Que vais às feiras e à tenda
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida não!

Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!

Fui ter à mesa redonda,
Beber em malga que esconda
Um beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida não!

Procissão de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atráis dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!

Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!

Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seio...
Mas a tua vida, não!

Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso.
Mas a tua vida, não!

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não.

Pedro Homem de Mello - Remorso




Rapaz da camisola verde.-Frei Hermano Camara


* Pedro Homem de Mello

Lembro o seu vulto, esguio como espectro,
Naquela esquina, pálido, encostado!
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…

De mãos nos bolsos e de olhar distante
- Jeito de marinheiro ou de soldado…
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!

Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
Sou do Monte, Senhor! e seu criado…
Pobre rapaz da camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado?
- Vai-te rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado!

Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço.
Indiferente à raiva do meu brado.
E ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…

Ali ficou… E eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado…
Ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…

Soube eu, depois, ali, que se perdera
Esse que, eu só, pudera ter salvado!
Ai! do rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!

In “Miserere” – 1948
Editora Portugália

Pedro Homem de Mello
1904 – 1984