24.12.2019 às 21h05
Diz-se que os burros podem percorrer quatro quilómetros por hora e 24 quilómetros por dia. Penso, por vezes, que essa é a velocidade com que a tristeza caminha sobre a terra
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (TEXTO) ALEX GOZBLAU (ILUSTRAÇÕES)
ALEX GOZBLAU
Contaram-me que no “Dispensário Popular para Animais Doentes”, em Londres — uma maravilhosa instituição que oferece até aos dias de hoje uma parte significativa da sua atividade veterinária de forma gratuita —, existe uma inscrição que recorda todos os animais que foram mortos na Primeira Guerra Mundial, “nada sabendo das suas causas, não alimentando esperança alguma de vitória, movidos apenas pelo amor e pela lealdade” aos seres humanos. É um facto pouco recordado, mas nesses anos de 1914-1918, em que abundavam os meios mecânicos de transporte, um sem-número de animais foi forçado a desempenhar um papel no teatro militar. As cavalgaduras, por exemplo, protagonizaram episódios frequentes de deslocação de armamento e de tropas no terreno, sobretudo quando se tratava de territórios particularmente duros e inacessíveis, suportando com os soldados, e em seu favor, as condições de vida mais terríveis. Só o exército inglês importou da África do Sul, para serem utilizados na logística da guerra, 45 mil burros. Em Itália, em concreto nas zonas montanhosas onde atuavam os batalhões alpinos, cada divisão chegou a ter mais de 200 ao seu serviço. E o mesmo em França, sobre a frente ocidental do conflito, onde esses animais transportaram toneladas de munições e alimentos. E. H. Baynes relata no seu livro “Animais que Foram Heróis na Grande Guerra” o espanto de um oficial britânico perante um desses jumentos que atuava precisamente junto a um batalhão francês. Um projétil havia-o cegado e arrasara-lhe impiedosamente as orelhas. O que delas restava parecia coroar agora a sua cabeça como torturantes pontas de arame farpado. E, mesmo assim, o animal insistia em prosseguir na realização daquela obra. Porém, a proverbial teimosia com que a sua espécie enfrenta a adversidade não deve fazer esquecer a realidade: os larguíssimos milhares de burros que pereceram ali, desconhecendo tudo sobre as razões do que sucedia, eles que por fidelidade e amor aos seres humanos se viam misturados involuntariamente com a primeira guerra química da história. Por isso, quando em “Animal Farm”, essa extraordinária fábula política com que George Orwell procura iluminar a escuridão de um século, se explica ao leitor que “os burros vivem muito tempo, e que nenhum de vós viu jamais um burro morto”, é evidentemente para ler ao contrário. O que pode assomar como uma farsa é, do princípio ao fim, uma elegia.
No British Museum conserva-se um achado arqueológico sumério, denominado “Estandarte de Ur”. Tem dois painéis principais, um que representa os tempos de paz e o outro a estação da guerra, e remonta a cerca de 2550 a.C. No painel dedicado à guerra vemos uma sucessão de carros militares conduzidos por burros, o que mostra como, desde os primeiros conflitos registados iconograficamente, estas criaturas foram submetidas às férreas ambições de cada época. Os burros do rei da Suméria parecem, no entanto, nessa representação figuras ingénuas de um delicado carrossel. E talvez isso intensifique a emoção que sobrevém ao contemplar o painel. Os asnos galopam numa ondulação marcada, isenta de violência, quase festiva, totalmente alheia ao cerco do terror. Mas o intervalo dos seus passos, no alinhamento do desenho, destapa o impensável: a morgue monumental em que a realidade dos povos, por vezes, se torna. Os corpos humanos tombados, que os nossos próprios olhos terão dificuldade em enfrentar, poderiam pertencer ao lápis apavorado de Otto Dix, de George Grosz, de Albin Egger-Lienz ou de qualquer outro pintor moderno da guerra. É como se não existisse diferença alguma. Os burritos do delicado carrossel do rei sumério atravessaram essas incompreensíveis linhas de fogo em rebentação. E, a quatro quilómetros por hora, sobre o seu galope inofensivo, se abateu a brutalidade da história. No exército romano acontecerá o mesmo, e repetidas vezes. Os garbosos cavalos eram naturalmente os animais preferidos e os mais usados, pelo menos entre os oficiais. Mas quando as condições de sobrevivência se tornavam desesperadas — e as quantidades de forragem necessárias para nutrir os cavalos eram já inalcançáveis — requisitavam-se os burros. Quando, por exemplo, numa das etapas da guerra civil que opôs César a Pompeu, as tropas deste incendiaram os campos para evitar que os cavalos de César se alimentassem, os homens deste conseguiram nutrir os burros com algas lavadas em água doce, a que misturavam uma mísera sombra de erva que restava.
ALEX GOZBLAU
Os burros estão associados historicamente às estações de pobreza e aos pobres. É certo que se diz que o carro funerário de Alexandre Magno foi escoltado, de Babilónia a Alexandria, por 64 burros magnificamente ornamentados com colares de preciosas pedras e pendentes dourados. E há um asno que cospe moedas de ouro numa das história dos irmãos Grimm. Mas não foi num burro assim que Abraão subiu ao monte Moriá para sacrificar Isaac nem que Maria e José viajaram até ao Egito para salvar Jesus.
Já os escritores do mundo antigo (Paládio, por exemplo, que foi um rico fundiário e escreveu abundantemente sobre as práticas agrícolas) referiam a importância do jumento para o trabalho do campo, sublinhando a sua compleição robusta, a sua resistência à dureza das condições meteorológicas e o facto de adoecerem muito raramente. A verdade é que sem o seu contributo, desde há milhares de anos, muitas vezes teriam faltado os produtos alimentares nos mercados, a água ou o azeite nas povoações, o pão na mesa, a lenha para acender o fogo nas noites intermináveis de inverno, as matérias-primas para os ofícios ou os argumentos para a razão, mesmo se na história — pensemos naquela que Cervantes escreveu — os cavalos têm nomes (“Rocinante” é o da pileca de D. Quixote) e os burros permanecem anónimos (Sancho Pança identifica o seu apenas pela cor). Mas nem sempre é assim, claro. O burro de Juan Ramón Jiménez todos sabem que se chama “Platero” (que belo nome para um companheiro e confidente de viagem). Como o de Robert Louis Stevenson se chamava “Modestine” (era uma égua). Os miúdos (de qualquer idade) que tenham lido o “Winnie the Pooh” sabem que o introspetivo burro de cor cinzenta se chama “Isaías” (Ih-Oh). E até o burro de George Orwell tem um nome: “Benjamin”.
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A Bíblia contém um número astronómico de animais. Estes são ali citados 3594 vezes. O primeiro nomeado é a serpente, no Livro do Génesis, e o último o cordeiro, no Apocalipse. O burro surge 163 vezes, o que não é pouco. Faz a sua aparição no Livro do Génesis, quando Abraão recebe por equívoco do faraó um dote por Sara: “ovelhas, bois e jumentos” (Gen 12,16). Na ética do Sinai (Ex 23), a lei do descanso sabático deveria abranger também os burros com os quais se trabalha (“para que descanse o teu jumento” — diz-se). Mas não só. Um importantíssimo passo civilizacional são os deveres para com o asno do inimigo que a Bíblia impõe: “Quando vires um jumento daquele que te odeia caído debaixo da sua carga, não o abandones. Deves soltá-lo com ela” (Ex 23,5). De facto, configura-se aí uma renúncia às tradições de vingança, tão enraizadas no mundo antigo (e de todos os tempos), e a emergência de uma lógica outra, assente no perdão e no amor. Um texto emblemático da irrupção deste inédito modelo social é Deuteronómio 22,1-4: “Se vires perdidos o boi ou a ovelha do teu irmão, não te desvies deles; mas leva-os ao teu irmão. Se o teu irmão não estiver próximo de ti e não o conheceres, recolhe o animal em tua casa, onde permanecerá até que o teu irmão o reclame e lho entregues. Procederás do mesmo modo com o seu jumento, com a sua capa ou com qualquer outra coisa perdida pelo teu irmão e encontrada por ti. Não te desviarás desse objeto. Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se”.
E há, depois, aquelas passagens misteriosas da Bíblia a propósito dos burros. O episódio mais divertido é o do jumento ou o da égua de Balaão (as traduções hesitam) que, muito antes do seu dono, e bem mais claramente do que ele, se apercebe da presença de um anjo no caminho que percorriam (Números 22,21-33). Por três vezes, o animal vê o anjo e desvia-se e das três é fustigado por Balaão. O texto reserva então ao leitor duas surpresas. Na primeira, o próprio burro interroga o dono: “Que te fiz para me bateres?” A segunda acontece quando finalmente também Balaão avista o anjo e este lhe pergunta: “Porque vergastaste três vezes a tua jumenta?”
Outra passagem misteriosa — e estamos a avizinhar-nos do fim — é aquela do arranque do Livro do Profeta Isaías e que, porventura, se liga diretamente à presença de um burro no presépio: “Ouvi, ó céus, e escuta, ó terra, porque é o Senhor quem te fala: ‘Criei filhos e fi-los crescer, mas eles revoltaram-se contra mim. O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor; mas o meu povo nada entende’” (Is 1,3-4).
O burro do presépio sempre me comoveu, mas, por vezes, dou comigo a pensar que entenderemos melhor o seu papel se o ligarmos ao que tem sido o destino da sua espécie. Este do presépio poderia chamar-se “Platero”, como o de Jiménez. Ou então, como o de George Orwell, “Benjamin”. O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos: “Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura” (Lucas 2,10-12). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores, encorajado pelo seu ruído festivo no meio da noite, motivado pelos seus cantos. Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. Sabe-se que os burros podem percorrer quatro quilómetros por hora, mas por trilhos abreviados que só eles arriscam. Por isso, quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio. Estava deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pelo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.
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