domingo, 26 de fevereiro de 2023

Viriato Soromenho-Marques - Palavras de guerra,

 *  Viriato Soromenho-Marques

25 Fevereiro 2023 

A pulsão de morte liberta-se, com particular exuberância entre os intelectuais, nas vésperas de guerra. A maior matança política em Portugal, em mais de século e meio (200 mortos e mais de mil feridos), ocorreu em maio de 1915 nas ruas de Lisboa, na insurreição que derrubou o governo de Pimenta de Castro e afastou o presidente Manuel de Arriaga. O objetivo fundamental dos golpistas, como Afonso Costa e João Chagas -- que as suas milícias ecoavam na rua sob o lema "Viva a guerra!" -- foi o de envolver Portugal na frente europeia da I Guerra Mundial, e não apenas em Angola e Moçambique e sem declaração formal de guerra à Alemanha, como defendiam Brito Camacho e Bernardino Machado. A turba armada, incitada por muitos publicistas, conseguiu o que queria. Um quarto de século antes, em janeiro de 1890, gente exaltada insultava o jovem rei D. Carlos I por este, depois da imposição do Ultimato britânico, ter poupado os portugueses do fogo mortífero da Armada britânica. O enorme serviço que o Rei prestou ao interesse nacional seria pago com juros de chumbo no regicídio de 1908.

A recordação destas tragédias foi-me suscitada pela entrevista do PM ao Público no passado dia 20. A citação que a jornalista Teresa de Sousa escolheu para título reza assim: "A paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia". Dificilmente se encontrará uma declaração tão belicosa em qualquer homólogo da OTAN, com exceção, talvez, dos Estados bálticos. Nos EUA, o país que importa, a linha prevalecente, descontado o ardor retórico, jamais isolou o apoio militar à Ucrânia da diplomacia. Dia 16, o secretário de Estado Blinken chegou ao ponto de alertar Kiev para o risco de tentar incluir o território da Crimeia nos seus objetivos finais, pois tal seria uma linha vermelha" (red line) para Putin. Ao contrário do que sugere o nosso PM, Blinken explicita que o eventual sucesso da Ucrânia não seria uma vitória de soma zero, pois haveria interesses fundamentais da Rússia a ter, desejavelmente, em conta. O PM poderia ter-se mantido no quadro oficial da OTAN e da UE, sem necessidade de assumir uma hostilidade pré-bélica com um país com o qual ainda mantemos relações diplomáticas. Portugal não tem de fazer uma voz grossa, que termine em fífia. Ao contrário de países como a Alemanha, França e Polónia, Portugal esteve completamente afastado dos desastres político-diplomáticos, que não podem ser esquecidos por quem queira compreender as raízes desta guerra.

Portugal não prometeu nada que não pudesse ou não quisesse cumprir, nem junto do presidente Yanukovich (21 02 2014), nem mais tarde nos Acordos de Minsk I e II --para resolver pacificamente o estatuto das regiões russófonas do Donbass no quadro da soberania ucraniana -- que afinal, sabemos agora através das confissões de Merkel e Hollande, serviram apenas para dar tempo ao armamento de Kiev. Não há prova maior para quem tem na sua decisão a vida de milhões de vidas, do que o estreito caminho entre a paz e a guerra. Clamar, mesmo que em coro, por uma temerária "vitória" no presente conflito é recusar a responsabilidade pelo formidável e inédito desafio que esta guerra representa. Um ano de combates já deixou um rasto de destruição humana e institucional que ameaça as gerações futuras. Se os frágeis fios que nos separam da expansão da guerra se romperem, o "milagre Gorbachev" não se repetirá. Levada ao limite, a Rússia, ao contrário da União Soviética, não parece inclinada a perecer sozinha.


Professor universitário

https://www.dn.pt/opiniao/palavras-de-guerra-15895569.html


J.-M. Nobre-Correia - A tentação de Ícaro

 

* J.-M. Nobre-Correia

26 de Fevereiro de 2023

Numa larga ausência de sentido crítico, os média dão-lhe uma tal guarida que o levam provavelmente a sonhar com outros altos voos…

Vivemos em Portugal tempos espantosos. De grande originalidade. Mas bastante estranhos também. Em termos políticos como mediáticos. Ou melhor: tempos que são fruto precisamente da conjunção de uma singularidade política com uma não menor singularidade mediático-jornalística.

De um lado, temos um personagem que há cinquenta anos instrumentaliza compulsivamente os média. Com a “criação de factos”. Com pseudoanálises da atualidade política, mas de facto sobre toda a espécie de assuntos. Com constantes declarações a propósito de tudo e de nada. Por uma obsessiva necessidade de fazer falar de si, de levar os média a citá-lo a propósito dos mais inverosímeis temas. Nunca esquecendo a dimensão manobreira do que diz ou escreve. Mantendo porém relações de extrema cordialidade com os meios jornalísticos, guardando embora a distância que convém entre gentes de condições diferentes.

Para além mesmo dos numerosos anticorpos que suscitou no seu próprio meio e não só, tal estratégia de afirmação pessoal manifestamente resultou. A tal ponto que, chegado o momento de sonhar com uma candidatura à mais alta magistratura da nação, o dito personagem quase não precisou de investir o esforço e os montantes financeiros dos outros candidatos: graças aos média, era por demais conhecido dos portugueses de aquém e além-fronteiras.

Investido na função tão ambicionada, a estratégia de omnipresença quotidiana na vida dos cidadãos deixou de deparar com o menor travão e a mais ínfima barragem. Até porque os média portugueses, pobres de meios humanos, técnicos e financeiros, não gozam verdadeiramente da força necessária para se oporem ao rolo compressor das iniciativas provenientes de tal “criador de factos” e moinho de palavras, provedor de matéria para encher espaço e tempo dos seus jornais. Muito menos quando, historicamente, o jornalismo português se pratica largamente sentado, tendo telefones e computadores como adjuvantes no conforto das redações. Ou exercido entre colegas e “grandes deste mundo”, em conferências e demais viagens de imprensa.

Média e jornalistas são assim claramente incapazes de pôr em prática uma atitude crítica, no melhor sentido da palavra, em relação a iniciativas e declarações do personagem em questão. Calibrando-as em função do que diz a Constituição, das atribuições que lhe reserva e das competências que poderão realmente ser as suas em matérias que exigem maior ou menor conhecimento técnico ou científico. Calibrando-as sobretudo em função dos mais elementares critérios de uma prática exigente de um jornalismo de qualidade, de referência ou mesmo “popular”.

Esta ausência de uma prática conforme aos melhores critérios do jornalismo faz que sejamos assim assoberbados diariamente pelas mais diversas “peças” sobre as iniciativas e declarações mais inacreditáveis, os média atribuindo-lhe demasiadas vezes iniciativas que não são de facto dele, quando não são mesmo risíveis. Contrariamente ao que se passa com os média europeus em relação aos seus próprios chefes de Estado, quase sempre pouco e até mesmo raramente presentes na atualidade coberta pelos média do próprio país.

Só que a estreiteza do terreno de jogos político-mediático nacional já não satisfaz as ambições desmedidas de tão ilustre personagem. Daí as numerosas visitas oficiais a países estrangeiros que, a seus olhos, têm a vantagem de serem igualmente tratadas pelos média desses países. E agora esta extraordinária ideia de atribuir o grande-colar da Ordem da Liberdade ao presidente da Ucrânia. Mais do que isso: de ir entregar a dita condecoração a Kiev, numa Ucrânia em guerra.

É claro que, como é habitual, o autor de tal iniciativa se fará acompanhar por um séquito de jornalistas devidamente convidados, que não deixarão de pôr em valor a ousadia, se não a coragem, do visitante. E, claro está, um sem número de média estrangeiros não deixarão de evocar o acontecimento, aumentando assim grandemente uma visibilidade com que, tudo leva a crer, ele sonha há muito…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2023/02/26/opiniao/opiniao/tentacao-icaro-2040252   

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Daniel Oliveira - Brasões da Praça do Império: como criar património colonial em 2022

OPINIÃO

* Daniel Oliveira

Um grupo ideológico conseguiu impor a Lisboa, em pleno século XXI, um empedrado definitivo com brasões coloniais que nunca estiveram projetados ou existiram dessa forma, tornando definitivos arranjos florais efémeros. Nunca foi a preservação do património, que os próprios não se importaram de adulterar grosseiramente, que esteve em causa. Foi a afirmação ideológica, no presente, de um discurso derrotado pela História

23 FEVEREIRO 2023 9:22

Por duas vezes, em 2016 e 2021, alguns milhares de pessoas assinaram duas petições promovidas pela Nova Portugalidade, uma associação de extrema-direita que se tem dedicado ao revisionismo histórico em relação ao Estado Novo. O objetivo dos peticionários era garantir, na requalificação da Praça do Império, em Lisboa, “a não remoção dos brasões florais ali existentes no passado” (que incluíam os das antigas províncias ultramarinas, hoje Estados independentes), porque a praça projetada “deve ser preservada fiel, autêntica e integralmente”. A não remoção de uma coisa que existiu no passado desafia, à partida, a lógica, mas já lá vou.

Para os peticionários, o projeto de reformulação da praça teria o “propósito claro, indisfarçável e puramente ideológico de remover os brasões, em particular os que aludem ao antigo Ultramar português, num ato de lastimável talibanismo cultural” e numa “manipulação autoritária da História e o afunilamento de opiniões”. Um afunilamento que resultaria da “importação de uma tradição que não é portuguesa, mas anglo-saxónica”. A tradição genuinamente portuguesa seria, claro, a que afirma que “Portugal foi uma nação africana”. A deles.

A Nova Portugalidade exigia, assim, que se suspendesse o atual projeto e “promover um projeto de reabilitação que não preveja alterações formais e conceptuais, valorizando toda a estrutura existente e preservando-a integralmente para o futuro, incluindo todos os brasões florais, históricos e ultramarinos, lá representados.”

A PRAÇA QUE ORIGINALMENTE NÃO TINHA BRASÕES

Comecemos pelo mínimo de enquadramento (aconselho, para análise mais pormenorizada deste caso, a leitura exaustiva do relatório da Assembleia Municipal de Lisboa sobre a petição, muitíssimo útil para este artigo), que faltou a muito colunista automático que, em 2016 e 2021, veio em defesa do património e contra a reescrita da História, contribuindo para um atentado ao património e para reescrever a História.

O Jardim da Praça do Império, desenhado pelo arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português de 1940, Cottinelli Telmo, ajardinado por Vasco Lacerda Marques, tendo no centro uma fonte com as armas das famílias dos principais descobridores, autoria de António Lino, ligou o Mosteiro dos Jerónimos ao rio. Para isso, o edificado então ali existente foi demolido. E não havia brasões alguns.

A escolha deste espaço para a exposição de propaganda do Estado Novo, em 1940, tinha uma história. A centralidade daquela zona para a exaltação da identidade nacional e imperial vinha de antes: da reabilitação do Mosteiro dos Jerónimos; da trasladação das ossadas de Camões para os Jerónimos; da escolha de Belém para a comemorações do nascimento do Infante D. Henrique, da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia e do Achamento do Brasil, no final do século XIX; e da escolha do Palácio de Belém como sede da Presidência, em 1912.

Na década de 1960, na celebração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, foi usada de novo. O Padrão dos Descobrimentos, que pretendia ser efémero para a exposição de 1940, foi só então construído em betão e pedra. E, nesse mesmo momento, acontece a XI Exposição de Floricultura, em que são exibidas as armas das capitais de distrito, das províncias ultramarinas e das ordens de Aviz e de Cristo. Tratava-se de uma exposição provisória, que não fazia parte do projeto original de Cottinelli Telmo e Vasco Lacerda Marques. Fruto do seu anacronismo e efemeridade, acabou, como geralmente acontece, abandonada e irreconhecível.

Em 2015, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou um concurso de conceção para a elaboração de projeto de renovação do Jardim da Praça do Império. O júri era composto por Simonetta Luz Afonso, Adriano Moreira, Elsa Peralta, um representante da Associação de Arquitetos Paisagistas, três representantes dos serviços da Câmara. Simoneta Luz Afonso e Adriano Moreira estariam, tenho a certeza, como representantes do “talibanismo cultural e indisfarçável pulsão ideológica”. O projeto não contemplava a “conservação” dos arranjos florais com os brasões.

Até que os ativistas da Nova Portugalidade apareceram. Não se tratava de manter as coisas como estavam, mas, em 2021, tornar permanente o que não o fora, reconstruindo o passado no presente. Mas o que tinham em mente era mais do que isso, como veremos.

SEM VALOR PATRIMONIAL

Nunca esteve em causa qualquer atentado ao património. O projeto de restauro respeitava a Carta de Florença, onde se lê que “se um jardim desapareceu totalmente ou se os vestígios que restam servem apenas para traçar conjeturas sobre as suas sucessivas fases, a reconstituição não deve ser considerada”. E até se diz que, “em princípio, não se deve privilegiar uma época em prejuízo das demais”, que foi o que os peticionários defenderam, privilegiando uma intervenção efémera, no quadro de uma Exposição de Floricultura, entretanto perdida, em prejuízo do projeto inicial. Não por razões patrimoniais, mas políticas.

Por outro lado, os brasões não eram património classificado. E não é por acaso. Não preenchem qualquer requisito presente na Lei de Base de Proteção do Património Cultural, como se explicava no relatório da Assembleia Municipal: não são marcados por uma específica autoria, não apresentam desenhos originais, não correspondem a elementos de antiguidade e memória coletiva da cidade e nem se inserem no perfil arquitetónico do projeto da Praça do Império.

Por fim, estamos perante as ruínas do que foi arte efémera, nunca pensada para ali permanecer como património. Claro que pode haver uma passagem do efémero para o perene. Foi o que se fez, por razões políticas e não patrimoniais, com o Padrão dos Descobrimentos, em 1960. Mas quando se quer preservar na memória a arte efémera ela é fotografada, por exemplo. A própria Assembleia Municipal recomendou que fosse criado um circuito interpretativo, no túnel de acesso ao Padrão dos Descobrimentos, mostrando a evolução da Praça. Só que a Nova Portugalidade procurava uma afirmação política, não uma preservação patrimonial. Se as coisas fossem como defendem, andávamos a preservar os murais do MRPP, que têm o valor histórico de retratar um determinado período da nossa vida política. Não o fazemos.

Foi o próprio Cottinelli Telmo a escrever: “conservar bocados da Exposição (...) parece-me erro! São restos, ruínas, farrapos.” Imagine-se em relação a uma exposição temporária de floricultura, plantada duas décadas depois.

Sobrava então o “valor espiritual”, um eufemismo dos peticionários para falar do “valor ideológico” do que não tem valor patrimonial. E aí, entramos no debate estritamente político em que o país que construiu o seu regime democrático constitucional com base no fim da sua vocação imperial quer celebrar, não as “descobertas” ou a expansão, mas a possessão das colónias, que os brasões representam, na sua marca datada dos anos 60. É bom recordar que estes brasões foram criados em 1935, sem qualquer lastro histórico para além de alguns elementos heráldicos anteriores. Ou seja, mesmo do ponto vista simbólico o seu valor patrimonial é irrelevante.

Não era sequer o Império que os peticionários queriam celebrar, era a representação política que o Estado Novo fazia do Império. Não por acaso, repetiram, na petição, toda a retórica e a linguagem que a ditadura usava para o caraterizar. Não havendo qualquer tentativa de preservação patrimonial que, como veremos, os próprios peticionários abandonaram para abraçar uma solução que desrespeita grosseiramente o que ali alguma existiu ou foi projetado, é um património político e ideológico, eles sim, que defenderam.

CRIAR PATRIMÓNIO PARA REABILITAR O COLONIALISMO

Numa coisa estava toda a gente de acordo: a recuperação dos brasões era, pelo nível de degradação e a inexistência de profissionais especializados para o fazer, inviável. Os próprios peticionários reconheciam que o património que o projeto de recuperação supostamente iria destruir era irrecuperável. Ou seja, a conversa da destruição patrimonial serviu para agitar fantasmas que uns idiotas inúteis transformaram em crónicas indignadas. Não havia nada de recuperável.

Da defesa da manutenção do projeto construído pelo Estado Novo, porque nada podia ser mudado, os peticionários passaram para a fase seguinte: aquilo poderia ser reproduzido na calçada, dando-lhe o caráter permanente que nunca teve. Subitamente, o argumento que tinha sido usado contra todas as alternativas apresentadas (como a reprodução dos símbolos heráldicos dos atuais Estados de Língua Oficial Portuguesa), que era o respeito absoluto pelo projeto de Cottinelli Telmo, evaporou-se. Podíamos, afinal, recriar, mudar, inventar. Até podíamos fixar no chão os brasões que o Estado Novo criou para as colónias, em pleno século XXI. Já não estamos a falar de preservação de seja o que for, mas da construção, em 2022, de um monumento ao colonialismo, com brasões de províncias ultramarinas que não existem, projetadas e desenhadas agora, sem relação com o que alguma vez existiu ou teve para existir.

O que eles queriam não era conservar património que já era irrecuperável, mas criar património novo. Às expensas da autarquia, exigiam ter um monumento às suas próprias convicções políticas. Este grupo político de extrema-direita, que se faz passar por defensor da memória histórica, apossou-se de uma praça de Lisboa, como se tivesse qualquer direito de pernada sobre a história do país, apesar da ditadura de que se sentem herdeiros ter sido derrotado há quase meio século.

Na petição, lamentava-se ser dada “mais atenção ao memorial à Escravatura no Campo das Cebolas do que à comemoração da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”. Esclarecedor é que o indigno empedrado já tenha sido inaugurado com a presença do Presidente da República, enquanto o memorial nem ainda saiu do papel. Talvez diga alguma coisa do poder que estas pessoas vão ganhando.

Dirão que nada disto tem importância, são apenas pedras de calçada. Equívoco displicente. A extrema-direita sempre teve, em Portugal, um problema para se impor: a memória. O que ali estava em causa não eram os símbolos do Império, mas os símbolos do Estado Novo, para quem o Império era instrumental. Desmemoriar, passando a contar a nossa História através da imagética do Estado Novo, é essencial para se naturalizar. E fazem-no à boleia de quem não quer chatices com coisas simbólicas.

E assim conseguiram impor a Lisboa, em pleno século XXI e em nome da proteção do património que nunca existiu, um empedrado definitivo com brasões coloniais que nunca estiveram projetados ou existiram dessa forma, tornando definitivos arranjos florais que se pretendiam efémeros. Nunca foi a preservação do património, que os próprios não se importaram de adulterar grosseiramente, que esteve em causa. Foi a afirmação, no presente, de um discurso derrotado pela História. Foi, ao contrário do que acusam outros, uma afirmação estritamente ideológica.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Frederico Duarte Carvalho - Ano II da Propaganda versus Jornalismo

 

 


HISTÓRIAS QUE EU SEI

Ano II da Propaganda versus Jornalismo

por Frederico Duarte Carvalho // fevereiro 21, 2023

A Guerra na Ucrânia vai entrar no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


Tenho aqui à minha frente um livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do “The New York Times”.

Seymour Hersh é um nome assaz conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.

 

Com boas fontes juntos dos militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de 1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona, permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes como fachada para a operação secreta.

Dois meses depois daquela história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da Guerra Fria.

Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib. 

Por isso, quando, aos 85 anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não estamos propriamente face a um qualquer jornalista. 

Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no seu segundo ano.

No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.

Havia tempo para relatar uma notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.

O jornalismo actual, acrescenta Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.

Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.

As perguntas de Hersh deviam ser as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a tentar”.

A tentar.

E essa tentativa viu-se agora com o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à habitação. No fundo, a inflação.

A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.

Portugal, como membro da NATO – aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos, deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja bem mais simpática ao “nosso lado”.

A isso não se chama jornalismo, mas sim propaganda.

Um ano volvido sobre o início da Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a barbárie dos conflitos armados modernos.

Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.

Entretanto, na retaguarda, enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama do jornalismo acesa.

Só que, para eles, soldados da pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num monumento ao soldado caído.  

Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor

https://paginaum.pt/2023/02/21/ano-ii-da-propaganda-versus-jornalismo/

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Nuno Júdice - Epitáfio para uma Europa

* Nuno Júdice

Limpo do Espírito o unto da Europa, e deito-o

nas feridas do ocidente para que sequem mais

depressa. A Europa impregna-me com a sua febre,

que eu acalmo com a água de um ócio de

culturas. A Europa atravanca os passeios da memória,

e obriga a empurrá-la para deixar passar

os que chegam. Às vezes, a Europa encosta-se

às esquinas, como se não fizesse nada,

e confundem-na com a puta da noite, como

se ela estivesse à venda; mas o que ela faz

é oferecer o corpo a quem quiser. De outras

vezes, a Europa é a virgem que não quer

descer do altar, como se alguém a adorasse,

ainda, e lhe acendesse as velas de uma devoção

de milénios. "Tirem-me a Europa

da frente", dizem os que querem chegar

mais depressa aos lugares que a Europa

já descobriu, e perdeu, há muito. "Quero ser

como a Europa", dizem outros — os que

andaram atrás dela, e não souberam acompanhar-lhe

o passo, e caíram no primeiro obstáculo,

vendo acumularem-se por cima de si os corpos

de quem vinha atrás. A Europa enlouqueceu,

e pede que a fechem para que ninguém mais

acredite no que ela diz. A Europa é o mocho sábio

da fábula, e as crianças juntam-se à sua volta

a pensar que vão aprender alguma coisa. Tiro

a Europa do mapa e meto-a no bolso. E quando

alguém me pedir lume para o cigarro, vou puxar

por ela e acendo-a. Se o mundo arder, a culpa é

de quem me pediu lume; se a Europa se apagar,

deito-a fora e troco de isqueiro.


sábado, 18 de fevereiro de 2023

José Pacheco Pereira - A Igreja, o Demónio e o dr. Freud

Opinião

* José Pacheco Pereira

 

A crítica à IgrejaCatólica não pode ficar apenas pela condenação genérica, implica discutir as causas do abuso sexual de menores e perceber que as raízes do silêncio estão tão dentro como fora dela.

18 de Fevereiro de 2023

A Igreja e os que a desculpam ganham nestes dias o campeonato da hipocrisia em relação à pedofilia. O artigo do PÚBLICO de Susana Peralta mostra e bem que não há nesta matéria qualquer elogio a fazer-lhe, nem ontem, nem hoje. Bem pelo contrário, com Comissão ou sem ela, foi forçada a revelar o que sempre quis e quer esconder. A Igreja Católica Apostólica Romana continua enredada numa moral sexual, na qual se inclui a questão contra naturam do celibato, assim como a menorização das mulheres, que não tem legitimação em qualquer dogma de fé, nem sempre existiu, e é tão histórica como a sua sistemática violação século após século.

Há, no entanto, muito mais hipocrisia para além da que emana da poderosa instituição da Igreja, um verdadeiro poder fáctico, onde a invisibilidade da pedofilia e dos abusos sexuais – convém fazer a distinção – contava com uma rede de cumplicidades de dentro e de fora. Ou seja, a Igreja não foi apenas cúmplice no seu interior, mas contou com uma sociedade à sua volta, nas cidades, nos campos, entre os católicos praticantes e os não-praticantes, entre os incréus, porque um número tão elevado de abusos não podia existir sem muita gente saber e calar.

Aliás, isto não espanta quem conheça a história e saiba que a história destes abusos e a sua forte condenação nos dias de hoje nem sempre foi assim. Como acontece com muito crimes que hoje consideramos hediondos, eles eram razoavelmente consentidos num passado muito próximo. Em grande parte por contiguidade com o local privilegiado da família, que era e continua a ser o terreno mais fértil para todo o tipo de abusos e de crimes. A família só é idílica na literatura cor-de-rosa e no discurso político dos reaccionários, fora disso é um sítio propício a todas as violências, desde a violência doméstica ao bullying e à pedofilia. E, acima de tudo, coberto pelo silêncio de que “entre marido e mulher não metas a colher”, nem entre pai e filha, nem entre tio e sobrinho, etc... E embora seja um regra com muitas excepções, onde há muita miséria, onde se vive amontoado, onde se agride muito porque há pobreza, onde há uma vida de todas as misérias, onde nada se tem, pode-se “servir” de quem está à mão.

Isto explica porque, lá por se passarem numa sacristia ou num seminário, estes crimes não eram vistos assim como tão “violentos” e reprováveis. Era como a mancebia dos padres, ou as suas diligentes “sobrinhas” e “afilhadas”. Milhares de páginas da literatura portuguesa falam de forma séria ou jocosa da distância entre a imposição do celibato e a realidade da sua violação. Os republicanos no seu anticlericalismo não deixaram de tratar os padres, em particular os jesuítas, como uma associação de criminosos, e denúncias de abusos sexuais faziam parte das acusações ao comportamento do clero.


Postal anticlerical republicano DR

É certo que a pedofilia — e insisto de novo: em muitos casos é abusivo falar de pedofilia, devendo antes falar-se de abusos sexuais de menores, que podem incluir a violação — era pouco nomeada e apenas sugerida. Mas a relação de poder entre os padres e freiras em relação aos seus discípulos/as era uma questão que estava bem presente no anticlericalismo republicano, e só foi mitigada nos anos do Estado Novo porque a Censura cortava todas as notícias que sugeriam um comportamento abusivo dos padres. Ou seja, isto não é novo.

Fechava-se os olhos e fecha-se os olhos. Espantam-se com o presente do verbo? Não se espantem. A invisibilidade da pedofilia nos espectáculos, nas artes, na literatura é bastante, mesmo em sectores que vivem da exposição pública e onde é gritante o que se passa. E ninguém se incomoda. O que é que pensam que Gide ia fazer a Marrocos? E nós também temos os nossos Gides, tão explícitos e tão públicos, naquilo que antigamente se chamava pederastia, uma palavra que se tornou maldita pela associação entre a pedofilia e a homossexualidade masculina.

Um caso que várias vezes referi, espantando-me por não provocar qualquer réstia de indignação, é o de um artista de variedades que viveu durante algum tempo às claras, com publicidade, com uma criança, seu “afilhado”, que de uma certa maneira “comprou” aos pais seus empregados. Várias revistas do jetset mostravam a criança, na piscina, em restaurantes, com um padrão comum a outros casos: homem poderoso e com fama e dinheiro que vive numa relação pelo menos ambígua com uma criança filha de uma governante ou de um jardineiro.

Somos todos culpados? Não, não somos todos culpados. Por isso, a crítica à Igreja Católica não pode ficar-se apenas pela condenação genérica, implica discutirem-se as causas dessa atracção pela pedofilia e, em muitos mais casos, pelo abuso sexual de menores, e perceber que as raízes do silêncio face ao comportamento de muitos padres estão tão dentro como fora da Igreja.

Por ambígua que seja a ideia da “miséria sexual”, que não explica a questão bem mais complexa daquilo a que chamamos perversões, onde ela existe o caminho para os abusos está aberto. A Igreja tem todo o direito de pedir aos seus padres a obrigação do celibato, mas deve estar consciente, e estou certo de que está, das “tentações” do mundo. O Demónio e o Dr. Freud sabiam muito bem disso.

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2023/02/18/opiniao/opiniao/igreja-demonio-dr-freud-2039414

 

Bárbara Reis - Procissão à Portuguesa

  * Bárbara Reis

Opinião Coffee break

Durante anos, a Igreja Católica punha o chefe de Estado atrás nos cortejos. Até Marcelo Caetano se queixou. O encobrimento dos padres pedófilos faz parte dessa procissão.

18 de Fevereiro de 2023 

 Há anos que tenho uma carta para partilhar e este é o momento. Foi enviada em 23 de Janeiro de 1955 por Marcelo Caetano a António de Oliveira Salazar e começa assim:

“Se V.ª Ex.ª ontem tivesse estado, na Igreja de S. Vicente, onde eu estava (no transepto, na tribuna fronteira à do corpo diplomático), decerto teria tido, à entrada do chefe de Estado, o mesmo sentimento de humilhação e de indignação que eu tive e que tiveram as demais pessoas presentes.”

Já vai perceber porquê. Antes queria fazer uma pausa para imaginar o cenário: Caetano, futuro “primeiro-ministro”, era presidente da Câmara Corporativa, um peculiar órgão consultivo que funcionava na Assembleia da República, e por isso viu a cerimónia de um ângulo diferente do de Salazar. Terá pensado que, estando ele num braço transversal da igreja, e não no centro, teria visto uma coisa diferente.

Continuo:

“Passou majestoso o cortejo pontifical. Em glória, de mitra e báculo, o patriarca abençoava os fiéis a um lado e outro. E no couce, a seguir aos caudatários de Sua Eminência, o chefe de Estado português apagado entre algumas fardas sem brilho, parecendo eles todos a escolta da retaguarda do prelado. Quando o cortejo à frente parava, o Chefe de Estado parava também, à espera: nem em Canossa o poder civil andava tão de rastos...”

Nova pausa. O patriarca é Manuel Gonçalves Cerejeira, cardeal amigo íntimo de Salazar desde os tempos da Universidade de Coimbra e muitíssimo influente durante o Estado Novo.

Atrás do cardeal Cerejeira, no “couce”, estava o Presidente da República, Francisco Craveiro Lopes.

Hoje, no site oficial da Presidência da República, a eleição de Craveiro Lopes, em 1951, é contada assim: “Disputou a campanha eleitoral indicado pela União Nacional. Pela oposição democrática e republicana concorreu o almirante Quintão Meireles. Pelo Partido Comunista apresentou-se o professor Ruy Luís Gomes. Este último foi considerado sem idoneidade, portanto não elegível, pelo Supremo Tribunal. O almirante Quintão Meireles desistiu. Foi forçado a retirar a sua candidatura na véspera das eleições. Não houve, pois, opositores à eleição, tendo Craveiro Lopes ganho com cerca de 80% dos votos.”

Parece meio esquisito Caetano falar dos “caudatários” como se fosse uma coisa estranha. Ainda hoje a cauda do manto do patriarca de Lisboa é levada pelos “caudatários”. O que é que o incomodou?

A carta — que li em Salazar e Caetano, Cartas Secretas, 1932-1968, de José Freire Antunes, Círculo de Leitores, 1993 — continua:

“Qualquer diplomata dos presentes, funcionário ou homem político formado decerto no respeito da supremacia do Estado dentro do seu território (à boa maneira da monarquia, em que os bispos formavam apenas uma das ordens do reino) informará os seus governos de que Portugal é o país mais clerical do mundo. Na verdade, em Espanha, onde a Igreja pode e manda muitíssimo, o chefe de Estado é recebido nas igrejas debaixo do pálio e o prelado, cardeal que seja, acompanha-o respeitosamente, sendo aquele o centro da procissão.”

Caetano está triste por ver que “Portugal é o país mais clerical do mundo” e que o padre vai à frente e o político vai atrás. Em Espanha, diz ele, Francisco Franco vai debaixo do dossel sustido por varas que protege, também, o sacramento, mas Franco é o “centro da procissão”.

Podemos desvalorizar a indignação de Caetano por sabermos que Craveiro Lopes, na altura, já era visto como “um verdadeiro estorvo para o regime”, diz o texto oficial da Presidência, cuja autoria é do Museu da Presidência da República, e que, entre Craveiro Lopes e Salazar, “as relações foram sempre frias e formais” e “nunca amistosas”.

Sabemos também que, “com o decorrer dos anos”, Craveiro Lopes foi-se “sentindo cada vez mais humilhado e vexado”, que os seus “discursos eram modificados, os projectos recusados ou protelados, as convocações da Presidência ao Governo ignoradas”, e que ele “não estava habituado a ser apenas um elemento decorativo”.

Mas repare no resto da carta:

“Sou dos poucos portugueses com certa posição política que hoje dão muita importância às formas, porque estas são, como os ritos, a maneira de tornar tangíveis ou sensíveis ao vulgo as instituições e os princípios. O que se passou ontem achei indecoroso. Tenha V.ª Ex.ª a paciência de se ocupar do caso. Se não houver cerimonial melhor na igreja, que o chefe de Estado passe a representar-se apenas por um funcionário: é preferível isso.” A carta acaba aqui.

Tenho para mim que o “i” de igreja em letra minúscula da última frase não foi um lapso de Caetano, mas intencional.

Por mais que o regime não gostasse de Craveiro Lopes, com quem “foi nascendo a esperança de mudança”, diz o texto do Museu da Presidência da República, Caetano achava errada a forma como a Igreja tratava o poder político, colocando o chefe de Estado em posição subalterna, como um caudatário ou membro da escolta da retaguarda.

No dia seguinte, 24 de Janeiro de 1955, Salazar responde:

“A sua carta impressionou-me vivamente [...], porque eu próprio, estando aliás a ver as coisas de outro ângulo, tive a mesma sensação. Vou ver como hei-de pôr o assunto: mas temos de chegar a uma conclusão conveniente.”



Procissão com o cardeal patriarca de Lisboa Manuel Gonçalves Cerejeira em Mafra, sem data 

A conveniência — não melindrar a Igreja Católica — só acabou 50 anos depois quando, em 2006, foi aprovada a lei das precedências do protocolo do Estado, que retirou privilégios à Igreja Católica.

O debate foi fascinante. Ainda me lembro de ler sobre o artigo apresentado por João Bosco Mota Amaral, do PSD, e Manuel Alegre, do PS, que propunha que, nas cerimónias oficiais, o patriarca de Lisboa, os cardeais, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e o núncio apostólico tivessem “tratamento protocolar equivalente ao dos ministros e precedência face a estes”, ou seja, que a Igreja Católica ficasse antes dos políticos eleitos pelo povo. A proposta foi chumbada.

Lembrei-me desta carta ao ler o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, que concluiu que o número “absolutamente mínimo” de crianças vítimas de abuso por padres e pessoas ligadas à Igreja é 4815. Os anos de ocultação, seguidos de anos de negação, seguidos de anos de obstrução foram possíveis por muitas razões. Uma delas 

https://www.publico.pt/2023/02/18/sociedade/opiniao/procissao-portuguesa-2039413 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

José Gomes Ferreira - Choro!

`* José Gomes Ferreiera

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
as crianças violadas
nos muros da noite
úmidos de carne lívida
onde as rosas se desgrenham
para os cabelos dos charcos.
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
diante desta mulher que ri
com um sol de soluços na boca
— no exílio dos Rumos Decepados.
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
este seqüestro de ir buscar cadáveres
ao peso dos poços
— onde já nem sequer há lodo
para as estrelas descerem
arrependidas de céu.
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
a coragem do último sorriso
para o rosto bem-amado
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos
com as mãos ainda à procura do eterno
na carne de despir,
suada de ilusão.
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueletos de repente dos espelhos
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do
silêncio
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas
de miséria...
Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...
Mas não por mim, ouviram?
Eu não preciso de lágrimas!
Eu não quero lágrimas!
Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!
Deixem-me para aqui, seco,
senhor de insônias e de cardos,
neste òdio enternecido
de chorar em segredo pelos outros
à espera daquele Dia
em que o meu coração
estoire de amor a Terra
com as lágrimas públicas de pedra incendiada
a correrem-me nas faces
— num arrepio de Primavera
e de Catástrofe!