sábado, 27 de julho de 2024

Tiago Franco - THE SHOW MUST GO ON

* Tiago Franco
 
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Sou um grande fã de "volte-faces" nas lides políticas. Um dia estamos a lamentar o pior atentado da história e a ver como um velhinho debilitado ficou ainda mais irrelevante e, no dia seguinte, batemos palmas a uma renovada Kamala enquanto ela recebe uma chamada da Michelle "we got your back" Obama.

Na Europa fazem-se coisas destas e, até em Portugal, transformamos políticos falhados em senadores do comentário televisivo. Mas os americanos, na arte de dar espectáculo, não pedem lições a ninguém. Tudo é Hollywood.

Reparem na montanha russa de emoções. Primeiro Biden está perdido perante a humilhação do debate e o seu estado físico. Trump, com apenas 78 anos é um jovem enérgico. Aparece o tiro na orelha e aquela foto à Che Guevara. Trump, o mais escroque que alguma vez ocupou a casa branca, é elevado a revolucionário e resistente. 

A corrida está perdida para os democratas. Trump está virtualmente eleito e aparece na convenção seguinte como um moderado. Alguém que quer unir a América. Eu ainda estou a processar como é que mais de 100 milhões de eleitores apreciavam aquele discurso de ódio do dia anterior e, agora, tento perceber como é que alguém acredita naquele espectáculo montado.

Trump joga golfe durante o dia sem penso, à noite coloca o penso e vai para a convenção. Há centenas de idiotas que lá vão também com um bandex na orelha, por "solidariedade" com o novo herói. 

São doses cavalares de estupidez acompanhadas de luz e cor. O show nunca pára. Há sempre um novo idiota para enrolar.

Biden desiste. Kamala assume o palco. Pela primeira vez na história uma mulher com 60 anos é uma jovem. Michelle liga-lhe em direto e diz que "ma girl" e "got your back", com a câmara ligada e o telefone em alta voz. Calma, calma. Os democratas não vão apenas rebolar. Também querem dar show.

A Kamala usa o cv de combate ao crime para se atirar a Trump. O orange man larga o discurso de união e volta à praia do ódio. Chama-lhe Marxista. Trump não faz puto de ideia quem foi Marx e metade dos que o ouvem  muito menos. Metade? Bom...adiante.

O circo está montado e na Europa começam as manifestações de apoio nas eleições que de facto mexem com a nossa vida. Entre dois maus candidatos, como é normal, escolhemos o menos mau. Ao contrário das eleições europeias, as americanas influenciam mesmo o futuro dos povos da Europa. Pelo menos enquanto as Ursulas andarem por lá.

Zelensky já percebeu que a coisa pode ficar mais difícil e abriu as discussões de paz. A Europa mais moderada quer Kamala que seguirá o business as usual de Biden (e isso implica muito dinheiro para o lobby das armas). Os chineses sabem que terão sanções com qualquer candidato mas, em princípio, seguirão no controle de tudo. Como paciência como é seu timbre e com muito pouco espectáculo, luzes e cor.

Trump é um ser abjecto que deveria estar preso. Kamala vai-me dar cabo da prestação da casa. Trump vai apoiar, ainda mais, o genocídio em Gaza. Kamala vai contribuir para a militarização da Europa.

O que eu queria, mesmo, era que as eleições nos US and A, como dizia o Borat, fossem para o ca*****. Mas para isso acontecer tinham os destinos da Europa que ter estadistas à altura e não moços de recados.
Não sendo possível, pois continuem lá com o arranca-rabo entre elites.

De uma maneira ou de outra, o povo precisa de entretenimento and the show must go on.

2024 07 27
https://www.facebook.com/tiago.franco.735

Diana Andringa - O velho foi à viola

´* Diana Andringa

Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias. 


O funeral de Salazar no Mosteiro dos Jerónimos, partida para Santa Comba Dão

Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.

Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade. 

Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu.«Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando.Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?»Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!»Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»

Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!» 

Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.

A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» –  a morte do antigo Presidente do Conselho.

Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»

E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia,  nesses minutos sem música, canções de resistência.

28 de julho 2016 - 15:32

(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)

https://www.esquerda.net/artigo/o-velho-foi-viola/43863

Alexandra Lucas Coelho - O Capitólio aplaudiu de pé a nossa morte. No meio do caminho havia uma mulher

 


Rashida Tlaib


CRÓNICA

Tornámo-nos hospedeiros da Palestina. Hospedeiros do que a Europa fez com que deixasse de ter lugar na Terra.

Alexandra Lucas Coelho

27 de Julho de 2024

1. Eu vi, como tanta gente estaria a ver, uma mulher sozinha com uma cadeira vazia de cada lado, e em volta os eleitos da democracia mais poderosa da Terra a ovacionarem de pé, minuto a minuto e durante quase uma hora, o homem já condenado como criminoso de guerra que continua a comandar o maior extermínio do nosso tempo de vida. Pareciam bonecos com mola ou controle remoto, uma plateia de bonecos de blazer a saltar num aplauso frenético ao fim de cada frase. E eram o Capitólio, a Casa da Democracia americana, recompensando o primeiro-ministro de Israel com uma honra que nem Churchill teve: o seu quarto discurso ali.

Aparentemente Netanyahu também estava de blazer, mas foi de avental e cutelo que o vi quando exibiu alguns dos israelitas que trouxera: o soldado etíope, o soldado muçulmano, o que perdeu um braço, o que perdeu uma perna, e ainda o pai que perdeu um filho. E que coração não estaria com a dor deles? Todos ali na plateia, transformados em munição pelo mais bem sucedido talhante de partes humanas. Não só braços e pernas, como bem mostraram os eleitos no Capitólio, amputados de alguma parte interna para a qual não há próteses.

Lá em cima, nas galerias, familiares de reféns israelitas com t-shirts a pedir um acordo AGORA foram retirados pela polícia, sem que isso se notasse na plateia. Mais de cem representantes do Partido Democrata faltaram à sessão em protesto. Kamala Harris, que deveria presidir, esteve ausente, escudando-se num compromisso prévio. E do lado de fora, milhares protestavam, com centenas a serem detidos, incluindo judeus com t-shirts ou kipas contra o genocídio, pelo cessar-fogo, o embargo de armas. Alguns activistas conseguiram até infiltrar-se no hotel da comitiva israelita, deixar lá vermes como os que infestam Gaza.

Todos os protestos fazem diferença para os palestinianos, ajudam-nos a não enlouquecer. Mas não apagam o que aconteceu no Capitólio: a ovação para a morte em Gaza, que é a nossa também. Porque quem batia palmas não eram terroristas banidos. Eram os eleitos.

Vi-os em directo, os bonecos. E no meio deles, aquela mulher: Rashida Tlaib, a primeira palestiniana-americana eleita no Congresso. Por acaso era o dia do aniversário dela. Ao longo dos 292 dias anteriores falara muitas vezes ali pelos palestinianos. E na quarta-feira, 24 de Julho, em vez de não ir, fez algo mais fulminante. Sentou-se com o seu kuffyieh e o seu pin da Palestina, e sem se levantar, nem abrir a boca, levantava uma pequena placa que dizia CRIMINOSO DE GUERRA e do outro lado CULPADO DE GENOCÍDIO.

Essa é a imagem que não abriu todas as notícias, nem fez todas as capas. Rashida no meio dos bonecos da democracia, com uma cadeira vazia de cada lado e a palavra erguida, voltada para Netanyahu.

Era a mais sozinha ali. E fora dali, quanta gente a acompanhava.


2. A sessão do Capitólio foi uma cópula obscena de uma parte substancial de Israel com uma parte substancial dos EUA. Sim, tantos em Israel estão contra Netanyahu, pior líder desde algum péssimo na Bíblia, etc. E claro, a América é muito mais do que aquela plateia de bonecos. Mas a tragédia também é essa: estamos a falar de democracias, ali tínhamos o que foi votado pelo povo, e com um poder tão grande que despreza ou combate as Nações Unidas, a sua ajuda e a sua lei, incluindo: 1) O Tribunal Internacional de Justiça que há uma semana declarou a ocupação israelita ilegal, ordenando a retirada imediata; 2) O Tribunal Penal Internacional que há meses condenou Netanyahu por crimes de guerra.

Este é o poder israelita-americano que tentou dar cabo da UNRWA, não provou nada, e hoje vê todas as nações voltarem ao apoio. O poder que deu cabo da vida de centenas de milhares de crianças, e nega a UNICEF, a Human Rights Watch, os Médicos Sem Fronteiras. Que vetou incontáveis propostas de cessar-fogo, lançou incontáveis bombas. Que acredita (ou se comporta como acreditasse) que Deus nasce em Israel e se põe nos Estados Unidos da América. Supremacistas para quem a lei internacional vale tão pouco como a vida do resto do mundo.

É isso que os aplausos no Capitólio dizem a Gaza e ao resto do mundo. E quando a democracia diz isso, como acreditar nela? Como convencer quem (à semelhança do que também fizeram os sionistas pré-Israel) usa o terror em último recurso?

E tudo pode ser pior ainda, porque há pior em Israel e na América. Em Israel há Ben-Gvir, Smotrich, colonos assassinos e incendiários em roda livre e milhares de ultra-ortodoxos já a receber ordens de alistamento que nunca cumprirão. Israel é um paiol que não se resolve com a remoção de Netanyahu. Ele é o talhante que vemos, e ainda assim só o continuador do que vem a ser talhado, cada vez mais mortal.

E a América, por onde começar, depois de 15 dias alucinantes?


3. Vocês sabem, todas vimos: a Maga Trump tirou os devidos louros da própria orelha, colhida no tiro de um rapaz morto de imediato pela segurança que estrondosamente não segurou o resto. Estrondo só superado pelo formidável desempenho do alvejado. Parece nascido para o momento e metade da América cai de joelhos.

Quanto à outra metade, pouco depois da orelha colhida tivemos Biden a ser ungido por finalmente desistir do que nunca devia ter começado. Como se Gaza não existisse. Fui ler o texto do Conselho Editorial do New York Times, redondo, patrioticamente banal (tão aquém, para ficar só pelas vizinhas, da não menos patriótica mas nunca banal New Yorker, ou, sem essa costela patriótica, da magnífica New York Review of Books). Não contribui para restaurar os créditos perdidos do NYT desde o 7 de Outubro. Mas terá amparado quem não quer pensar em Gaza. Nessa terrível pergunta desde então: quem somos nós? Ufa! Pois, se o NYT não diz uma palavra sobre Gaza, nem uminha, menos mal. É o mundo a andar para a frente! Sabemos como todos os sangues são iguais mas há uns mais iguais que outros, e aquele sangue todo em Gaza ou não é de verdade (lembram-se de quando Biden duvidou que o número oficial de mortos fosse tão alto?), ou de qualquer forma não é igual ao de Biden. De Ursula. Dos alemães. Dos israelitas. E como diria Golda Meir, os palestinianos na verdade não existem.

Vi um bocado de coisas como repórter desde uma súbita manhã em Agosto de 1991 em Moscovo, quando o pesadelo da URSS começou a desfazer-se. O que passados todos estes anos só me faz pensar com mais horror em Putin. Pelos ucranianos, e pelos russos. Cobri guerras de várias espécies, incluindo o pós-11 de Setembro, e muitos anos de Israel/Palestina. Perdoem o elenco. Mas só gasto as linhas anteriores para dizer que, mesmo tendo vivido isso, vejo o 7 de Outubro como a grande mudança do meu tempo de vida. E aqui não digo nosso porque quero, espero, antecipo que quem tem 20 anos agora viva uma mudança no sentido oposto.

O 7 de Outubro não é apenas uma mudança política. É existencial. É ver os humanos e a vida na Terra de outra forma. Por isso este não é um assunto como os outros, é o assunto com que os outros serão pensados, também. O mundo nunca acaba, pelo menos enquanto estamos vivos. Mas Gaza estará sempre lá, em cada texto, em cada viagem, em cada conversa, mesmo que não venha à tona. Tornámo-nos hospedeiros da Palestina, mais ou menos conscientes. Hospedeiros do que a Europa fez com que deixasse de ter lugar na Terra.

Mas ao contrário do Holocausto, os jovens que estão na rua agora — porque viram tudo desde 7 de Outubro, e sentem de forma aguda e cristalina o insuportável — não vão herdar a nova culpa da Europa. Ela fica com quem continua calado, e sobretudo com quem bate palmas à morte porque está sentado no poder. O necropoder que conhecemos de há muitos genocídios.

A Europa perseguiu, matou ou deixou matar os judeus, e ajudou a despejá-los numa terra que não era dela porque não os queria. E desde 7 de Outubro tem deixado matar os palestinianos que estavam nessa terra. Como se este assunto não fosse um fruto dela. É um fruto dela.

Estes 15 dias mostraram como o mundo precisa mais do que nunca que a Europa faça frente ao que vimos no Capitólio.

José Pacheco Pereira - Porque é que na “geração mais preparada de sempre” a ignorância cresce?

Opinião

A ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao saber são perigosos para a democracia e liberdade.

* José Pacheco Pereira

27 de Julho de 2024


Este é o tipo de artigos em que já se sabe de antemão as críticas, mais “bocas” do que críticas, que vai receber. Passadista, “velho do Restelo”, velho tout court, arrogante, reaccionário, antiquado, com incompreensão do que é a “nova” geração e as mudanças culturais em curso, com uma visão ultrapassada do que são as novas “competências”, não compreendendo os novos “saberes”, preso a um mundo que já acabou e a um elitismo sem sentido numa sociedade muito mais igualitária, em que os “saberes” do passado são inúteis. Muito bem, é tudo isto, mas, mesmo assim, reafirmo que o mundo cultural circulante nos dias de hoje é particularmente pobre, é pobre de referências, é pobre de “histórias”, é pobre de vocabulário, e alimenta uma ignorância agressiva, em particular nas redes sociais, e isso é péssimo para a democracia. Ainda mais, é um mundo que pela sua fragilidade cultural é particularmente sensível às modas, sem qualquer distanciação e consistência.

Tenho consciência de que este tipo de catastrofismo cultural, ainda por cima com uma componente geracional, é recorrente na história, tem características comuns que se repetem e tem-se revelado muitas vezes errado. É cíclico nas suas lamentações dos “velhos” para as gerações mais novas, mas se há coisa que a história também revela é que, às vezes, existe mesmo decadência. É um pouco aborrecido estar com estes caveats todos –​ aqui está uma palavra em desuso –, mas a ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao saber são perigosos para a democracia e liberdade. Decadência é outra palavra maldita. 250 palavras gastas com prevenções.

Aqui há alguns anos eu dei aulas partilhadas com Jaime Gama sobre “relações internacionais” no ensino superior. Nos dias de exames, verifiquei que muitos alunos corriam à secretaria para obter um adiamento, “porque fazia muitas perguntas difíceis”. Tentei perceber quais eram as “perguntas difíceis” e de onde vinha o medo. Consegui identificar a origem num exame em que o tema que o aluno estava a expor eram os eventos da Revolta Húngara de 1956, que ele conhecia minimamente. De repente, suspeitei de algo estranho e perguntei-lhe esta simples coisa: onde é que é a Hungria. Pânico, e completa ignorância onde era a Hungria, onde estava o Danúbio, e após tentativas e erros a Hungria ficava para os lados do Cazaquistão. Comecei então a fazer perguntas deste tipo e estas eram as “perguntas difíceis”.


Daumier DR

Tratava-se de estudantes do ensino superior prestes a acabar a licenciatura. Mas, andando para trás e para a frente, tenho as mais sérias dúvidas que seja possível hoje ler a grande maioria da grande literatura portuguesa, Camões, Camilo, Eça, por exemplo, mesmo que, no caso de Eça, seja um dos raros autores ainda presente numa lista de leituras em grande parte jornalística. Em linhas gerais, a parte narrativa de alguns livros que ainda sobrevivem talvez subsista, mas duas grandes fontes da nossa cultura ocidental desapareceram do saber circulante: a Bíblia e a cultura greco-latina. Ora, duvido muito que textos literários que falam como quem respira de Orfeu, Sísifo, David, Golias, da Guerra do Peloponeso, de Marte, de Salomão, do Bom Samaritano, de Péricles, da “voz clamando no deserto”, de Abraão, de Ulisses, do Cavalo de Tróia, de Homero, mesmo de Caim e Abel, de César Augusto, de Esparta, do Hades, de Diana, a caçadora, de Herodes, etc., etc., hoje signifiquem alguma coisa. O mesmo para muitas lendas, metáforas, ditos, alcunhas, etc.

O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa de uma espécie de psicologia barata. E tem um público jovem

É importante saber-se isto? Claro que é, por uma razão muito simples: é que não se sabendo é-se mais pobre da cabeça, até porque com esta ignorância vem um pacote de um mundo mais desértico. Há excepções, como é óbvio, mas as excepções não contam. O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa de uma espécie de psicologia barata, e não é por acaso que uso esta comparação porque um dos alicerces desta ignorância agressiva é mesmo esse tipo de conversa, que vai muito para além da Casa e dos comentadores em estúdio. Ele estende-se aos/às influencers e ao mundo das redes do Chega, raiva, ressentimento, sentimentalismo barato, pseudodepressões, “bocas”, erros de ortografia, escasso vocabulário, e muita, muita ignorância. E tem um público jovem.


O mundo não está brilhante, porque este tipo de gente é particularmente fácil de manipular.

O autor é colunista do PÚBLICO



 

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Pedro Garcias - A criadagem segundo o fidalgo Rui Moreira

 

Crónica Elogio do Vinho

Dentro de duas semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser matar saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier mesmo com vontade de trabalhar.

* Pedro Garcias

26 de Julho de 2024


Rui Moreira criticou as paragens do futuro metrobus do Porto desenhadas por Siza Vieira, comparando-as a menires de Obélix. A apreciação mereceu uma resposta de um investigador da Faculdade de Arquitectura do Porto, Pedro Levi Bismarck, que acusou o presidente da Câmara do Porto de ter pouca legitimidade para tal crítica, dado ser “um dos responsáveis políticos pela destruição em massa do património arquitectónico” da cidade. Em resposta, o liberal político soltou a sua sanha sobre o pobre do investigador Bismarck, dizendo que este “prefere idolatrar Álvaro Siza com aquela pequenez da criadagem quando experimenta, à sorrelfa, as jóias da patroa para se ver ao espelho”.

 

Esperei três semanas na esperança de que algum representante da “criadagem” atirasse um verdadeiro menir ao fidalguinho da Foz, não para o matar mas para lhe colocar o cérebro no sítio. O termo “criadagem” é todo um programa de desprezo e pequenez. O que incomoda na palavra são as quatro últimas letras. É o “agem”. Lembram “vassalagem”, “miudagem”, “malandragem”, “parolagem”, “vadiagem”, “ladroagem” e muitas outras coisas pouco simpáticas, como, mas aqui para o lado de certos patrões, “vilanagem”, “cabotinagem”, “cretinagem” e até “parvoagem”.


Nos anos 50 do século passado, cerca de 39% da população activa do sexo feminino em Portugal eram criadas de servir. Na segunda metade do século, segundo a investigadora Inês Brasão, autora do livro O tempo das criadas: a condição servil em Portugal (1940-1970), chegou a haver 200 mil mulheres nessa condição.


A tal “criadagem” era, sobretudo, composta por crianças que vinham do interior pobre e analfabeto, de aldeias onde não havia sequer electricidade e as famílias eram do tamanho de uma equipa de futebol. Os rapazes ajudavam na lavoura e, quando podiam, emigravam. As raparigas ajudavam na lavoura e na casa e, ainda antes de menstruarem, iam servir para uma família rica, impulsionadas muitas vezes, como lembra Inês Brasão, pela “morte prematura do pai ou da mãe, entrada na fase legalmente aceite para o início do trabalho (entre os dez e os 12 anos), necessidade de libertar o número de filhos a cargo, súbitos rompimentos familiares e também o 'engano'”.


As criadas faziam de tudo: limpavam a casa, cozinhavam, tratavam dos mais velhos, cuidavam dos meninos. Acordavam cedo e deitavam-se tarde, muitas vezes só a troco de comida e de um quarto escuro, apertado e recuado dentro da própria casa dos patrões ou numa dependência. Viviam para servir, numa relação de domínio-submissão que autorizava todo o tipo de abusos, até de cariz sexual, como o desvirginamento dos meninos. Não sei se aconteceu com Rui Moreira, mas era comum. Muitas engravidavam dos patrões. Depois de consultar as estatísticas dispensadas por maternidades e hospitais, Inês Brasão descobriu que a categoria profissional das criadas “ocupava o topo na prática da interrupção da gravidez”. “Para as criadas de servir, que esperavam filhos gerados pelos próprios patrões, a decisão de nascimento significava uma situação de vergonha pública difícil de suportar ao longo da vida. O filho seria considerado ilegítimo, filho de pai incógnito e provavelmente afastado da mãe.”

 

Há muito vinho nesta crónica, embora não pareça.


A sorte da “criadagem” dependia do grau de submissão que as próprias criadas estavam dispostas a suportar e da natureza mais ou menos dominadora e insensível dos patrões. Havia de tudo. Havia patrões decentes e patrões abusadores. E havia criadas que entravam numa casa como quem entra num convento, para a vida toda, dispostas a suportar tudo, e outras com sonhos mais amplos, criadas que ambicionavam um dia vestir os mesmos vestidos das patroas e usar as mesmas jóias. O principezinho Rui Moreira é tão alto que não vê que não existe pequenez nas criadas que colocavam as jóias da patroa à sorrelfa, só para se verem ao espelho e imaginarem-se elas próprias patroas. A pequenez estava nos patrões que sujeitavam as criadas a uma vida de servilismo, reclusão e humilhação, paga com manifestações de caridade e de suposta irmandade expressa na frase habitual: “É como se fosse da família!”. Estava também na pelintragem de muitos deles, falidos mas vivendo como se continuassem ricos, sempre com a campainha por perto para chamar a criada, e exímios em guardar uns croquetes no bolso quando em festas alheias.

Hoje sou Bismarck porque conheço bem essa “criadagem”. Vou contar o que me aconteceu. Ela, uma de dez irmãos, veio ainda criança de Francelos, uma aldeia dos altos de Alijó, para servir numa casa rica da vila. Teve a sorte de encontrar uma família decente e honrada. Ele, de Alijó, vivendo em frente, já era criado para as obras da mesma família, mas de um ramo que veio a ter como patrão um arquitecto local instalado no Porto. Não sei se Rui Moreira ia gostar dele, também fazia menires usando linhas rectas. O criado e a criada apaixonaram-se, casaram-se e tiveram sete filhos. Três raparigas foram servir ainda crianças, só os três filhos mais novos puderam estudar. E bastaram duas gerações para que vários netos da criada de servir, que não sabia ler nem escrever, e do criado de obras, que ainda conseguiu fazer a quarta classe, chegassem a médicos, engenheiros e outras funções socialmente reconhecidas.


Foi assim que eu, um dos sete filhos desse casal, cheguei até esta página, que deveria ser preenchida com assuntos sobre vinhos. Mas há muito vinho nesta crónica, embora não pareça. Inúmeras criadas do Porto eram oriundas do Douro e não havia família rica da Foz ou das Antas que não tivesse uma quintinha na região duriense. Na altura, o Douro era o fim do mundo e muitos patrões só lá iam em experiência antropológica, sobretudo na vindima, para lançar um foguete e entregar os sapatos cheios de pó ao lenço dos trabalhadores e ainda receber destes um ramo, como agradecimento pelo trabalho duro e mal remunerado. Em troca, se o patrão não fosse muito sovina, podiam ter direito a uns doces e a uma gorjeta. “Belos tempos!”, suspiram alguns.


Dentro de duas semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser matar saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier mesmo com vontade de trabalhar. Para brincar aos ricos, já basto eu.



https://www.publico.pt/2024/07/26/fugas/cronica/criadagem-segundo-fidalgo-rui-moreira-2098443
 


Carlos Matos Gomes - OTELO | o fantasma da Revolução




* Carlos Matos Gomes 

25 Abril 2024
 

A ação que celebramos, o 25 de Abril de 1974, foi planeada e comandada por um fantasma. Um fantasma com o nome dissolvido num ácido de conveniências.

Os fantasmas são por definição aparições de inconvenientes. Terei lido num texto de Miguel de Unamuno, o filósofo espanhol, que Dom Quixote, a personagem de Cervantes prenunciou o destino final, solitário e triste, de todos os cavaleiros andantes, fantasmas, digo eu, que citaria também uma declaração de Simón Bolívar, em que o revolucionário das Américas, admitia que Jesus Cristo, Dom Quixote e ele próprio eram (tinham sido) os maiores ingénuos da História.

Otelo pode com propriedade ser incluído nesta lista.

E quanto à forma como tem sido esquecido também pode ser comparado a uma outra figura marginal da historiografia oficial, neste caso do Brasil, porque o fenómeno dos fantasmas da História é universal, o do negro João Cândido, que no início do século XX liderou uma revolta de marinheiros contra a violência na Marinha, a «Revolta da Chibata». A ação foi meticulosamente planeada e executada, mas esquecida, por inconveniente, porque contrariara a doutrina da superioridade racial branca. João Cândido viveu o resto da sua vida esquecido, por inconveniente.

Otelo foi e continua a ser inconveniente a vários títulos. Como militar, era um major recente, regressado de uma comissão na Guiné, professor de artilharia na Academia Militar, sem cursos nem pergaminhos de estado-maior, também não o aureolava o estatuto de herói da guerra colonial, apenas cumprira com competência as suas funções de comandante de companhia, no entanto foi ele quem planeou com o brilhantismo confirmado pelo êxito a operação nacional das forças armadas de Norte a Sul do país e quem comandou a execução das ações a partir da sala de operações montada no quartel da Pontinha, acompanhado por outros oficiais, alguns deles mais antigos e teoricamente mais bem preparados do que ele. Foi ele o comandante! Um facto revelador da sua personalidade, da sua energia e determinação.

Como alguém escreveu, ser herói é ter coragem de fazer o que é certo num determinado momento. Otelo teve essa coragem: É ele que apoia a ação de contenção de Salgueiro Maia, de correr os riscos de não precipitar a ação no Largo do Carmo, com um ataque imediato. De contemporizar. É ele que autoriza que o povo envolva as tropas e os blindados de Salgueiro Maia: o povo pode entrar, porque a ação militar é para o povo. Ele e Maia têm desde o início a consciência do destinatário da ação militar: «O povo, pá!» Ora o povo é sempre inconveniente para os poderes de facto. Otelo e Maia serão fantasmas que têm o povo atrás deles. Mais Otelo do que Maia.

Desde a primeira hora Otelo e Maia estão do lado da (in)conveniência popular. É Otelo que dá ordem a Salgueiro Maia de disparar contra o quartel da GNR, para forçar a definição da situação, e é ele que decide que a rendição de Marcelo Caetano seja feita ao general Spínola, com vantagens e inconvenientes, mas foi ele quem decidiu!

As inconveniências de Otelo que o transformaram no fantasma em que ele hoje é tido atingiram o cume com o que fez no COPCON, ou do COPCON. O poder assenta sempre na força. Na ponta das espingardas, na frase de Mao Tse Tung, ou na que o rei Luís XIV de França mandou inscrever na boca dos canhões ultima ratio regum, “a força é o último argumento dos reis”.

Otelo fez do Comando Operacional do Continente, das forças armadas portuguesas, a força do povo, e aqui é de recordar dois outros fantasmas: Carlos Fabião e Eurico Corvacho que estiveram desse lado, e também Pezarat Correia, que embora subscritor do Documento dos Nove, o manifesto que agregou as “forças da normalidade”, mas que por ter desenvolvido um papel de grande relevo na descolonização de Angola e de, em Portugal, ter comandado a Região Militar de Évora, empregando as forças militares com apurado sentido político durante o dificílimo período da Reforma Agrária, pagou a compreensão pela atitude dos camponeses alentejanos com a não promoção a tenente-general. Não me esqueço do esquecimento de outro fantasma, Ernesto Melo Antunes, com quem nunca privei, de quem discordei, mas de quem conheço e reconheço o papel relevante que desempenhou no 25 de Abril. Recordo a forma como foi tratado até no seu último ato: no seu funeral, no cemitério do Alto de São João, onde estive, não apareceu nem um membro do governo, nem nenhum político de primeira linha. A verdadeira Liberdade paga-se com esquecimento.

Colocar as forças armadas como suporte das forças populares era e foi uma heresia inadmissível pelas classes reinantes. As que a 25 de Novembro de 1975, tendo contratado tropas para o seu serviço, impuseram o regresso aos quartéis dos conscritos, isto é, à função tradicional de defesa dos grupos dominantes, os velhos devoristas que saíram das tocas onde se haviam escondido, das sacristias, os que regressaram de exílios e os novos devoristas que se haviam aproveitado dos vazios abertos pela retirada dos velhos senhores — os novos oportunistas que hoje são os que pretendem sacralizar o 25 de Novembro, como o dia em que lhes saiu a lotaria e se fizeram democratas, como os poltrões sucessores dos que no vintismo do século XIX se fizeram viscondes e barões.

A revolução portuguesa, como todas as revoluções, ou se definiria por uma alteração de campo da força que exercia o poder, ou não seria uma revolução, nada mais seria do que uma atualização de figurino para o exercício do poder. Otelo é a personagem que configura a revolução, porque transfere o poder das armas da defesa de uma minoria, a oligarquia nacional representante dos poderes e dos interesses instalados no espaço civilizacional da Europa e dos Estados Unidos, para defesa das classes sociais historicamente dominadas a todos os títulos, social, económica e politicamente. Otelo, através do COPCON, não só deu voz aos emudecidos, como lhes proporcionou o acesso ao discurso e à decisão.

Foi a existência do COPCON sob o comando de Otelo que possibilitou a suprema heresia da nacionalização da banca, o que corresponde à profanação do sacrário do sistema que desde 1825 a família Rothschild criou em Londres, tecendo através do Banco de Inglaterra o sistema de “dívidas soberanas”, que replicou nos Estados Unidos ao conseguir que, em 1913, o Congresso dos EUA autorizasse a criação do Federal Reserve Bank, o Banco Central dos Estados Unidos popularmente conhecido por “Fed”, de que a família Rothschild também tomou o controlo, garantido o direito de emissão de moeda nos EUA através do Tesouro Americano e sem juros. A nacionalização da banca portuguesa foi uma ofensa ao dólar! Imperdoável! Não seria possível sem o suporte da força armada, do COPCON!

Na história de oito séculos de Portugal apenas no episódio do que ainda hoje o discurso oficial hesita em considerar como crise de 1385 ou revolução de 1385, o povo teve a força armada a seu lado. Mas foi sol de pouca dura. Leiam-se as «Crónicas» de Fernão Lopes. Após a incensada batalha de Aljubarrota toda a narrativa se concentra na normalização do complexo processo de transformações políticas e sociais que recriaram a antiga hierarquia de poder das ordens, clero, nobreza e povo, e que conduziram Portugal à dependência da Inglaterra, na condição de estado vassalo, em que se manteve até ao final da Segunda Guerra, quando passou a depender dos Estados Unidos. No século XIV rapidamente os revolucionários, segundos filhos e bastardos, reunidos à volta das figuras de linhagens secundárias de João de Avis, um bastardo, e Nuno Álvares Pereira, filho natural do prior da Ordem do Hospital, reconstituíram naturalmente a velha ordem dos privilégios e recolocaram o povo no seu lugar, a remar nas naus e a cavar nas terras senhoriais. A experiência de dar armas ao povo apenas ocorrerá numa outra única oportunidade com a tentativa de legitimação como rei de Portugal de António, prior do Crato, derrotado na batalha da ribeira de Alcântara.

Otelo representa ainda hoje o perigo de expor a podridão em que assentam os pilares da ordem que nos rege. Em 1975 esse conhecimento podia gerar (ou degenerar) um movimento de contestação popular que alastrasse pelo continente europeu. Havia que apresentar Otelo como um tresloucado. Para as aves de gaiola, voar é uma doença. Para os predadores, voar é uma fuga dos seres que lhes servem de alimento.

Em 1974 e 1975 já eram visíveis as nuvens negras sobre o sistema político e económico que se impusera (ou fora imposto) na Europa Ocidental após a Segunda Guerra. Os alemães crismaram como “anos de chumbo” esse período que antecipava o mal-estar do modelo civilizacional de compromisso entre capital e trabalho, entre público e privado, entre liberdade e servidão voluntária. Uma decadência que hoje parece evidente num modelo que apresenta claros sintomas de rutura por esgotamento, de que os movimentos populistas são uma face visível, acompanhados pela corrupção dos valores de equidade nas relações entre os povos promovida pelos dirigentes europeus e americanos do “Ocidente alargado” nas suas decisões sobre juros, dívidas, imposição de despesas com material de guerra, redução de serviços públicos, promoção de guerras como as da Sérvia, Iraque, Líbia, Ucrânia, ou o genocídio de Gaza.

O esquecimento de Otelo, o seu aviltamento quer durante o período revolucionário, quer no que se lhe seguiu e chegou até ao presente são fruto da ideologia dominante e dos interesses dos seus beneficiários. Otelo não quis ser o “condestável” do novo regime e a sua condução para fora do sistema, para a marginalidade em todos os sentidos, foi meticulosamente planeada e executada. A sua personalidade, a sua generosidade e ingenuidade foram estudadas para servirem de arma contra as causas que defendia e para defesa de uma dada ordem que não pode ser questionada.

Para os que apagaram Otelo é reconfortante falar da revolução simpática que, podendo ter tido a energia de um mar, desaguou num vulgar lago de jardim europeu. Mas um mar é uma coisa que gera energia e vida e um lago é uma coisa já domesticada, adormecida, em decadência.

Acontece, no entanto, que o deliberado esquecimento de Otelo e a desvalorização do movimento popular que ele apoiou e incentivou enquanto comandante do COPCON não teve a consequência que parecia lógica por parte de quem o derrotou e prendeu, mesmo com a legítima intenção de impedir uma revolução, de reclassificar o resultado da ação militar que ele planeou e comandou como o “golpe da Calçada da Ajuda”, ou da Amadora. É evidente ser muito mais agradável ao ego e ficar melhor na fotografia da História utilizar a fórmula de “Revolução dos Cravos” do 25 de Abril que da restauração de estado de ordem do 25 de Novembro de 1975. É um facto. Não é uma crítica. Otelo prosseguiu o seu voo. Outros poisaram.

Os títulos e os símbolos são importantes para hierarquizarmos e classificarmos os fenómenos, mas resta a realidade e quanto a esta, é significativo que na celebração do meio século do 25 de Abril, Spínola seja mais recordado do que Otelo, que entre tantas obras e trabalhos de investigação o COPCON e o seu papel no movimento popular não tenha merecido o interesse dos académicos, ou que esta singular e fugaz instituição militar tenha despertado tão pouca curiosidade intelectual e política.

É evidente que ainda vivemos num regime em que podemos falar e escrever sobre Otelo, mas como de alguém fora da História, do “sistema democrático” como um excêntrico, quando ele foi o autêntico revolucionário do que não chegou a ser uma Revolução. É certo e sem margem para dúvida que os 3 D do 25 de Abril são matéria de alegria e celebração, mas não são uma revolução. Revelam apenas a tacanhez do salazarismo, a mediocridade do seu padroeiro e dos seus acólitos. A Democracia, a Descolonização e o Desenvolvimento chegaram a Portugal com 30 anos de atraso relativamente aos regimes de democracia representativa e do estado social implantados na Europa após a Segunda Guerra.

Embora com trinta anos de atraso celebremos contudo essa coisa magnífica e essencial que é a Liberdade de expressão, mas fique a lembrança dos que como Otelo a queriam enquanto condição para conquistar a Justiça em todos os seus componentes, desde logo o da Igualdade.

Antes de se acomodar, engravatada, formatada, mais ou menos vociferante no modernizado convento de São Bento, Otelo queria a Liberdade na casa de cada um dos portugueses.

https://dasculturas.com/2024/04/25/otelo-o-fantasma-da-revolucao-por-carlos-matos-gomes-25-abril-2024/? 
 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Manuel Loff - Uma cultura comum

 

Opinião

Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.

* Manuel Loff

24 de Julho de 2024


O regresso da direita ao poder trouxe consigo curiosas personagens cujos percursos intelectuais e profissionais comprovam bem como à direita se partilha uma cultura comum, feita de continuidades políticas estruturais (nacionalismo, monarquia, reacionarismo moral e cultural, elogio do autoritarismo e do colonialismo) e de leituras puramente voluntaristas (para não dizer simplesmente manipuladas) da história. Ela transcende as “linhas vermelhas” do “não é não” e demonstra que extrema-direita e direita tradicional neoliberal podem disputar entre si o poder, mas convergem na visão do mundo, desde media como o Observador ou o Correio da Manhã, até obras coletivas como o já famoso, e lamentável, Identidade e Família que Passos Coelho apresentou, reunindo intelectuais da ultradireita e dirigentes do PSD.


Entre estas personagens está o chefe de gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, nada menos. Pedro Velez é um monárquico desde sempre militante do PSD que, entre outras coisas, participou em 2019 num colóquio (depois livro) sobre o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, com o título de “O Magistério de Olavo de Carvalho: para uma Paideia Integral”. Considerando que Olavo, inspirador de todo aquele circo com que o bolsonarismo povoou o governo brasileiro, não possuía qualquer percurso académico, no mínimo surpreende que se sinta tentado a escrever sobre ele alguém que agora ocupa no Governo um lugar desta relevância.


Outra destas personagens, reemersa há dias ao ser nomeado “secretário privado” de José Cesário, o eterno secretário de Estado das Comunidades dos governos do PSD, é um tal Vitório Cardoso, outro destes improvisados intelectuais orgânicos da direita que, sem qualificações específicas para coisa alguma, progride à sombra de nomeações políticas para lugares periféricos no aparelho de poder ou para atividades habitualmente descritas como lobbying. A História é, contudo, para eles um terreno irresistível para fazer propaganda.


VItório elogia rasgadamente a polícia política por esta, justamente na fase em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel fundamental para combater os atos subversivos da oposição política, nomeadamente dos comunistas que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e soberania nacionais”


Vitório é destes que acusa Aristides de Sousa Mendes de “[pôr] em risco a vida de todos os portugueses”, reiterando insinuações sem base documental, que outros já fizeram, de como os alemães ameaçariam invadir Portugal para perseguir em 1940 os refugiados ajudados pelo cônsul. Noutro texto, o mesmo homem sustenta um chorrilho de disparates que contrariam todas as provas reunidas pela investigação historiográfica portuguesa e internacional sobre a ditadura de Salazar nos anos da Guerra de Espanha (1936-39). Para fazer um elogio bacoco da política de Salazar durante a Guerra de Espanha, comete erros garrafais, confundindo 1936 com 1975, errando nas datas de início da guerra de Espanha, da criação da PVDE ou da “ilegalização do PCP” (e dos demais partidos), e assegurando que “o Estado Novo manteve [na guerra] uma postura de não intervenção”. Ora César Oliveira, Iva Delgado, Fernando Rosas e eu próprio abundantemente comprovámos a violação sistemática do direito internacional através do apoio financeiro, logístico e diplomático (em articulação com o Eixo nazifascista) aos golpistas de Franco; as campanhas de Salazar para impedir qualquer negociação de paz proposta pelo Vaticano, França ou Reino Unido; ou as críticas feitas ao próprio Papa Pio XI por este pedir a suspensão de bombardeamentos aéreos contra populações civis (a começar por Guernica, em 1937).


Salazar incumpriu todas as regras do direito de asilo, não só ao entregar aos franquistas republicanos espanhóis que procuravam refúgio em Portugal, mas também, como demonstra a recente tese doutoral de Maria José Oliveira, abandonando milhares de emigrantes portugueses em Espanha que participaram na defesa da República contra o golpe de Franco, presos ou fuzilados.


Por último, este dirigente do PSD elogia rasgadamente a polícia política por esta, justamente na fase em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel fundamental para combater os atos subversivos da oposição política, nomeadamente dos comunistas que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e soberania nacionais.”

Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

 


domingo, 21 de julho de 2024

Jorge Sarabando - Nascença, vida e queda da 5ª Divisão do EMGFA


Nascença, vida e queda da 5ª Divisão do EMGFA – Estado-Maior General das Forças Armadas, por Jorge Sarabando - Lisboa, Voz do Operário, 18 de Julho de 2024


A 5ª Divisão foi criada em Junho de 1974, manteve uma intensa actividade até 27 de Agosto de 1975, data em que as suas instalações foram assaltadas por uma força do COPCON, e subsistiu, com sérias limitações, até à sua extinção formal na sequência do Golpe de 25 de Novembro.

Inicialmente, num período marcado por forte hostilidade do General Spínola ao MFA, foram nela colocados os 7 oficiais que constituíam a sua Comissão Coordenadora, sendo o mais graduado o então Coronel de Engenharia Vasco Gonçalves, nomeado Chefe da Divisão. Com a sua designação para Primeiro-ministro do 2º Governo Provisório, em Julho de 74, foi substituído pelo outro oficial mais graduado, o então Tenente-coronel Franco Charais, mais tarde nomeado para comandar a Região Militar Centro. Outros membros da Comissão Coordenadora nomeados para pastas ministeriais sairiam também, como foi o caso dos majores Melo Antunes e Vítor Alves, e do capitão Costa Martins. Entre os oficiais entretanto colocados, contava-se o Coronel João Varela Gomes, que logo se distinguiu pela iniciativa e dinamismo, e viria a chefiar o Centro de Sociologia Militar.

As missões atribuídas situavam-se, como era norma, no âmbito das Relações Públicas e Acção Psicológica. Em Outubro de 74, seria nomeado Chefe da 5ª Divisão o Coronel Robin de Andrade, e em Junho de 75, foi nomeado o 1º Tenente médico naval Ramiro Correia, para o efeito graduado em Capitão de Mar e Guerra.

Apesar das limitações de meios materiais e de atrasos na colocação do pessoal necessário, foi possível, a partir de Setembro de 74, definir um novo quadro organizativo, passando as actividades principais a repartir-se por quatro áreas:

- CODICE – Comissão Dinamizadora Central;

- CEIP – Centro de Esclarecimento e Informação Pública;

- Centro de Sociologia Militar;

- Centro de Relações Públicas.

A actividade da 5ª Divisão teve dois momentos altos, com reconhecimento geral e institucional, no enfrentamento enérgico, audacioso, decisivo, dos golpes contra-revolucionários de 28 de Setembro de 74 e de 11 de Março de 75. A 5ª Divisão foi essencial na prontidão de resposta, na mobilização popular e sequente derrota dos golpistas. Recorde-se que Spínola pretendia a demissão do Primeiro-ministro Vasco Gonçalves, na decorrência da manifestação da chamada “maioria silenciosa”, prosseguir os seus projectos neo-coloniais, antecipar, numa pulsão caudilhista, a eleição presidencial, em que seria o candidato natural, e adiar a eleição da Assembleia Constituinte, firme compromisso do MFA. A partir da Espanha franquista, para onde fugiu, Spínola, com a sua corte militar, viria a criar o MDLP que, juntamente com o ELP, rede Maria da Fonte, e outros grupos reais ou fictícios, formaram a rede terrorista da extrema-direita, responsável pela onda de violência que abalou o País durante o processo revolucionário.

A fronteira que separava o grupo spinolista do MFA era então clara e bem visível. Para se avaliar a intensidade do confronto, recorde-se que Spínola, ainda Presidente, encomendou a Alpoim Calvão, nas palavras deste, a eliminação física de Melo Antunes e Vasco Gonçalves, acusados de traição. Mas a seguir mandou suspender a operação e ordenou a neutralização de Costa Gomes, que acusava de ser o maior “traidor” e quem “manejava a Comissão Coordenadora”. A crer em Alpoim Calvão, que viria a ser mais tarde o chefe operacional do MDLP, terá tentado mas não conseguiu cumprir a missão.

Em Junho de 75, o poder político-militar parecia estável e coeso, fora criado o Conselho da Revolução e assinado o 1ºPacto MFA- Partidos. Mas surgiam as primeiras tensões entre os maiores partidos políticos e revelavam-se, ainda incipientes, traços de fractura entre os principais responsáveis do MFA. A Assembleia Constituinte tomou posse a 2 de Junho, e o peso político das forças representadas permitia explorar uma linha de conflitualidade entre, como então se designavam, a dinâmica revolucionária e a dinâmica eleitoral. O Prof. Freitas do Amaral chegou a afirmar, na ocasião, haver uma maioria democrática na Assembleia, somando ele os votos do PS, do PPD e do CDS. Mas, na elaboração da Constituição, a maioria que funcionou não foi essa, foi outra. A Constituição viria a ser aprovada com os votos do PS, PPD, PCP, MDP, UDP e o deputado de Macau, e os votos contra do CDS.

O processo revolucionário vivia então um dos momentos mais férteis e criativos, sempre com uma enorme participação popular. Assegurado o controlo público da Banca, que permitiu estancar a fuga de capitais, e dos sectores estratégicos, desenvolvia-se a economia, foram salvas, pelo Governo e os trabalhadores, centenas de empresas ameaçadas de encerramento, avançavam a Reforma Agrária e novas leis no mundo rural, aumentou a produção e foi criado emprego, valorizava-se o trabalho e os trabalhadores, tomavam-se medidas concretas e positivas no âmbito da Educação, da Saúde, da Habitação, da Segurança Social, no acesso à cultura, na independência da Justiça, prosseguia a descolonização nas terríveis condições herdadas do fascismo. Foram acolhidos e integrados, em pouco mais de um ano, mais de meio milhão de portugueses vindos de África. Nem por isso os índices de desemprego aumentaram. O ano de 1975 terminou com uma taxa de desemprego de 4%.

Os Governos provisórios produziam legislação com forte impacto social, tendo muitas leis recebido consagração constitucional, como foi o caso do Salário Mínimo Nacional. A democracia em construção não era apenas política, ao Estado eram cometidas funções sociais. Era o caminho apontado pelas forças que combateram a Ditadura, presentes no Congresso de Aveiro, em 73, e coerente com o Programa do MFA. A conquista da liberdade era inseparável de profundas transformações sociais, da melhoria das condições de vida, da valorização do trabalho e da defesa da paz. O rumo do socialismo era claramente assumido pelas instituições militares e pelos principais partidos e movimentos políticos. Apesar de todas as regressões, por estranho que pareça, subsiste ainda hoje no Preâmbulo da Constituição em vigor.

A aliança Povo-MFA era bem o motor da Revolução e significava a expressão política duma vasta frente social anti-monopolista. Para o grande capital desapossado dos seus privilégios e as suas conexões externas impunha-se, por isso, quebrar tal aliança, dividir o movimento popular e dividir o Movimento das Forças Armadas e foi essa a direcção tomada. Todos os meios foram empregues e recursos financeiros mobilizados com tal finalidade. Bastará ler os diálogos entre o Secretário de Estado Kissinger e o Embaixador Carlucci, hoje disponíveis, apesar das rasuras omissórias, em que a situação do nosso País era acompanhada dia a dia, as mensagens trocadas com responsáveis políticos portugueses, para comprovar como os entendimentos funcionaram. Ficaram claros dois objectivos do Governo de Washington, dos aliados europeus da NATO e da ditadura de Franco: demitir o Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e afastar os comunistas da esfera do poder.

Com eficácia, pois o MFA cindiu-se em três correntes, simplificando: a esquerda militar, ou “gonçalvistas”, o grupo do COPCON, ou “otelistas”, e o grupo dos Nove, ou “moderados”. Não eram componentes homogéneas nem funcionavam em compartimentos estanques. As três correntes publicaram os seus manifestos, desenhava-se um confronto. O apelo ao lançamento de pontes entre sectores democráticos vinha, com certa carga de dramatismo, do lado do PCP. Mas enquanto a comunicação entre os grupos dos Nove e do COPCON parecia funcionar, as tentativas de diálogo entre a esquerda militar e os Nove foram, na prática, curtocircuitadas.

A partir de Julho, as manifestações multitudinárias de sinal contrário sucediam-se. De um lado, afirmando a defesa da Revolução, o PCP, o MES, a FSP, o MDP e outros partidos de esquerda e as organizações mais representativas dos trabalhadores, do outro lado, em contraponto, o PS, acobertando toda a direita até à mais extrema, reclamava a demissão do Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e prevenia sobre a iminência da imposição de uma “ditadura comunista”. Os partidos maoístas, como a AOC, o MRPP e outros, sempre ao lado do PS, falavam do PCP e de uma ditadura “social-fascista”.

Em pano de fundo, entre Julho e Setembro de 74, a onda de assaltos e incêndios, pela rede terrorista, a sedes sindicais e centros de trabalho de partidos de esquerda causava destruições e mortes. Em articulação com caciques locais e párocos ultramontanos, a participação de pides e legionários, de ex-colonos inconformados, de um certo lúmpen que sempre desponta nestas ocasiões, o grupo Maria de Fonte e suas conexões no terreno simulavam um levantamento popular. Não era, mas fazia por parecer, tal a sua pujança, e era o que interessava no momento.

Atente-se que a rede bombista esteve operacional entre Maio de 75 e Abril de 77, tendo alguns dos principais autores morais e materiais dos atentados sido presos em Agosto de 76 pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária. Apesar dos esforços da PJ, poucos foram os presos e menos os condenados.

Estava encontrado o alvo para onde convergiam os ataques caluniosos, por vezes infamantes, do PS de Soares e seus aliados. A popularidade de Vasco Gonçalves era inegável entre os trabalhadores, chegava longe nas camadas intermédias, e era esse para a direita o maior perigo. Do seu discurso transparecia coerência, determinação, honestidade, patriotismo. Era vital, por isso, afastá-lo quanto antes de qualquer responsabilidade de governo.

Por outro lado, em comícios, discursos, em panfletos assinados ou anónimos, agitava-se em tom alarmista a iminência duma ditadura comunista. Pouco interessava a falta de verosimilhança, a ausência de quaisquer indícios de tal cometimento. O “olhe que não, olhe que não” de Cunhal no debate televisivo com Soares, ficou célebre. O que interessava era fazer e repetir a acusação, incessantemente, levantar a suspeição, para obter um efeito.

Ao mesmo tempo, começavam as alusões a uma suposta “comuna de Lisboa”, efabulação muito útil para os urdidores do golpe de 25 de Novembro.

Antes de prosseguir, uma observação:

Uma das constantes no discurso da direita civil e militar era o imperativo de restaurar a ordem e a disciplina nas Forças Armadas. Referiam a presença de militares fardados em manifestações, a erupção dos SUV, ou diversos actos da 5ªDivisão, para citar alguns exemplos. Mas indisciplina foi também a decisão dos Comandantes de algumas Unidades da Região Militar Norte de recusar o Comando do Brigadeiro Corvacho e se terem ido colocar sob as ordens do Comandante da Região Militar Centro; indisciplina foi o modo como o Documento dos Nove foi posto a circular e colocado a sufrágio directo dos militares em serviço nas Unidades da Região Militar Norte; indisciplina foi a recusa dos oficiais designados para cumprir as ordens que teriam evitado o assalto à Embaixada de Espanha. Parece que, no discurso hegemónico que a direita impôs, nuns casos a indisciplina era ilegítima, noutros casos era legítima.

Ao tomar posição em defesa de Vasco Gonçalves, Primeiro-ministro e, a partir de 25 de Julho, membro do Directório, criado pela Assembleia do MFA, a 5ª Divisão ligou o seu futuro ao resultado da luta em curso no campo militar. Mais que as queixas avulsas sobre as Campanhas de Dinamização, ou as declarações de apoio ao Documento-Guia da Aliança Povo-MFA, ou ao “Poder Popular”, ou ao documento intitulado “Auto-crítica do COPCON”, ou a crítica ao discurso de Soares no comício da Fonte Luminosa, que geraram hostilidade e polémica, o que concitou as iras da direita, de seus aliados de ocasião, ditos “moderados” e de Otelo e seus próximos, foi a campanha de apoio a Vasco Gonçalves, largamente difundida e com grande impacto público, de que foram expressão o conhecido cartaz de João Abel Manta e a canção “Força, força, Companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço”.

Uma primeira tentativa para calar a 5ª Divisão surgiu, mas não passou, na Assembleia do Exército, a 24 de Julho.

Mas a 25 de Agosto o CR decidiu suspender as actividades da 5ªDivisão. Foi de imediato impedida uma reunião no Centro de Sociologia Militar, presidida pelo Chefe da Divisão, Capitão de Mar e Guerra Ramiro Correia, e ordenada, apenas 12 horas depois, uma operação militar pelo Comandante do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, de ocupação das instalações, executada pelo Regimento de Comandos. Esperava-se, naturalmente, o cumprimento da ordem mas não como foi feito, com brutalidade e destruição de precioso património.

Depois do golpe de mão, foi nomeado para reestruturar a 5ª Divisão o Coronel Abreu Riscado, tendo como assessores o Tenente-coronel Ramalho Eanes e os Majores Pimentel e Loureiro dos Santos. A CODICE manteve-se em funções até à sua extinção, em 26 de Novembro. Uma última campanha ficou ainda a operar no Distrito de Viseu até Maio de 76.O mesmo Coronel Riscado ficou a chefiar a Comissão Liquidatária.

Assim chegou ao fim a 5ª Divisão. Não fosse a publicação do “Livro Branco” e da obra do Comandante Manuel Begonha “5ª Divisão – revolução e cultura”, e de outros raros testemunhos, apagada ficaria a memória da sua rica, diversificada e meritória actividade, a não ser nas palavras de quem mais a hostilizou. Não que não tenha cometido erros e excessos, mas nada justifica que tenha sido encerrada de forma agressiva e traiçoeira, mandada queimar vasta e preciosa documentação, como se tivesse voltado o tempo dos autos de fé.

O período de mais intensa actividade foi de Setembro de 74 até Agosto de 75. Oito Campanhas de Dinamização Cultural, cobrindo quase todo o País, com mais de 10 mil iniciativas, como assinalou o Coronel Aranda da Silva, 25 edições do Boletim do MFA, intervenção permanente nos meios de comunicação social, rádio, televisão, imprensa escrita. De salientar a dinamização cultural no âmbito do apoio artístico, nas artes plásticas e gráficas, teatro e fantoches, música, dança, canto, cinema, circo, apoio literário. Memorável a criação do Movimento Democrático dos Artistas Plásticos, e a produção de cartazes e pinturas murais, como a pintura colectiva, por 48 artistas, de um painel, logo em 10 de Junho de 74. Um lema ficou, do pintor Vespeira: “Revolução aberta, arte liberta”.


Há um texto notável do Chefe da Divisão, Comandante Ramiro Correia, que ajuda a compreender o espírito da missão:

“A tragédia do nosso tempo não é a de todos os tempos. Logo é preciso nomear o tempo. E é o corpo que nomeia o tempo. É o povo que nomeia o tempo. Portugal.1975.Revolução.

A arte não deve estar ao serviço da Revolução.

A arte é, em si própria, Revolução.

E se a arte é, em si própria, Revolução, que lugar existe para dirigismos em Arte?

Onde está o escritor, o escultor, o pintor, o cineasta, que se viu, neste País, impedido de trabalhar a sua obra devido a monolitismos culturais do MFA ou dos organismos governamentais?

Os revolucionários têm medo da Arte?

Mas não é o fenómeno artístico uma contínua procura, uma incessante transformação do mundo?

Não contribui a Arte, essencialmente, para uma nova ordem de valores na sociedade?

Nós, os militares, ao longo do tempo trágico da guerra colonial, encontrámos, nos nossos músicos, escritores, pintores, actores, operários e camponeses, a força e a esperança de uma Pátria de suor e de justiça.

Esse tempo é passado.

É preciso nomear o tempo.

Estamos em Portugal. Em 1975.

Empenhados numa Revolução que pretende construir uma sociedade livre, socialista.

Ultrapassaremos as dificuldades. Corrigiremos os nossos erros. Participaremos na nomeação do tempo. Seremos o corpo da Revolução.

A Revolução viverá!”

As Campanhas de Dinamização transcenderam em muito o âmbito cultural. Ouçamos o Comandante Manuel Begonha, um dos militares que ficaram depois de Agosto até Novembro de 75, e nesse período tentaram ainda prosseguir a sua actividade:

Recuperando espaços sem utilidade…”criaram-se creches, parques infantis, demonstrando-se que são inúmeros os caminhos que se abrem à força de vontade colectiva. Deste facto são exemplo acções como as das comissões de moradores, comissões de aldeia, de bairro, autarquias locais, associações recreativas, dinamizando a abertura de estradas, caminhos, o saneamento básico, o lançamento de pontes, a electrificação rural, a criação de carreiras de camionetas, a abertura de escolas, o levantamento de centros culturais, postos de assistência médica e vacinação, criando centros regionais de emprego e colaborando com os vários organismos estatais”.

Podemos hoje dizer, 50 anos depois, que foram estes os tempos heróicos da Revolução, que o discurso hegemónico da direita e seus aliados de ocasião procurou apagar ou desvalorizar. O tempo do Serviço Cívico Estudantil, do Serviço Médico à Periferia, do SAAL e do CRUARB na habitação, o tempo em que os direitos cívicos e sociais foram conquistados pela luta e inscritos na Constituição, naquele escasso tempo, dois anos apenas, entre Abril de 74 e Abril de 76, em que o povo foi sujeito da História.

Podemos dizer, a terminar, que certamente num tempo disruptivo houve erros e incompreensões, num tempo de necessária e natural radicalidade houve radicalismos nocivos, mas o que é essencial sublinhar é que nunca as Forças Armadas estiveram tão próximas do povo a que pertenciam. Nos meios urbanos ou nos lugares mais distantes, o corpo militar não vinha para ordenar mas para dialogar, não vinha para reprimir mas para ajudar, não vinha armado de violência mas com palavras de paz. Construía-se a democracia, cumpria-se a Revolução.

Jorge Sarabando

Bibliografia principal:

“Varela Gomes”, de António Louçã, Parsifal, Lx 2016

“Revolução e Contra-Revolução em Portugal (1974-1975)”, de Armando Cerqueira, Parsifal, Lx 2015

“O Novembro que Abril não merecia”, de António Avelãs Nunes, ACR, Lx 2022

“5ª Divisão MFA – revolução e cultura”, de Manuel Begonha, Colibri, Lx 2015

“Crónicas de um insubmisso”, de Duran Clemente, Modocromia, 2024

“Vasco Gonçalves – um General na Revolução”, de Manuela Cruzeiro, Notícias, Lx 2002

“Costa Gomes – o último Marechal”, de Manuela Cruzeiro, Notícias, Lx 1998

“A verdade e a mentira na Revolução de Abril”, de Álvaro Cunhal, Avante, Lx 1999

“Alpoim Calvão honra e dever”, de vários, Caminhos Romanos, Porto 2012

“Dossier terrorismo”, Avante, Lx 1977

“A resistência”, de José Gomes Mota, Expresso, Lx 1976

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sábado, 20 de julho de 2024

Helena Bento - Saúde mental e dependência do telemóvel

Levar o telemóvel para todo o lado, até “para a casa de banho”, pode ser sinal de alerta. A Ordem dos Psicólogos sugere estas estratégias


A Ordem dos Psicólogos lançou um manual que aborda os benefícios e os riscos do uso de ecrãs, bem como os principais sinais que podem indiciar uma utilização excessiva e as estratégias para uma utilização segura. Dirige-se a mães e pais, mas não só: também há informação para adultos e idosos, que enfrentam igualmente riscos


Levar o telemóvel para todo o lado, até “para a casa de banho”, pode ser sinal de alerta. A Ordem dos Psicólogos sugere estas estratégias

Helena Bento

Jornalista

As tecnologias digitais vieram, em vários aspetos, melhorar a nossa vida, mas também trazem riscos e perigos. Como é que pais e mães podem garantir, por exemplo, que os filhos utilizam ecrãs de forma segura e benéfica?

Equilibrar o tempo de uso de ecrãs, utilizando-o como “recompensa” e não como um “dado adquirido ou um direito”, incentivar e realizar atividades que não envolvam tecnologia, fazer as refeições sem smartphones ou consolas por perto e estabelecer um dia para “desligar”, que envolva toda a família, são algumas das recomendações feitas pela Ordem dos Psicólogos num manual sobre este tema publicado recentemente.

O documento, intitulado “Vamos Falar sobre Ecrãs e Tecnologias Digitais”, disponível online, aborda os benefícios e os perigos do uso de ecrãs, bem como os principais sinais que podem indiciar um uso excessivo ou problemático e as estratégias para uma utilização segura. Dirige-se a mães e pais, mas não só: também há informação para adultos e pessoas mais velhas, que enfrentam igualmente riscos no uso de ecrãs.

Em crianças entre os dois e os cinco anos, ver televisão ou outros ecrãs mais de duas horas por dia, “sem critérios e sem acompanhamento”, pode “atrasar o desenvolvimento da linguagem e ter consequências negativas na visão”, bem como “comprometer a motricidade fina”, atrasando ou dificultando que a criança ande, corra ou coordene diferentes partes do corpo.

Já entre os seis e os 11 anos, várias horas de videojogos “podem refletir-se numa menor coordenação e flexibilidade motora”, e contribuir para o excesso de peso. Quando adequados à idade, podem melhorar a capacidade de orientação espacial e de raciocínio lógico; e se envolverem vários jogadores ajudam a desenvolver comportamentos de cooperação e entreajuda.

Até aos 12 meses, não é recomendada qualquer interação com ecrãs, refere o documento, com base nas diretrizes de organizações como a OMS (Organização Mundial da Saúde).

O uso de ecrãs por parte dos adolescentes também pode ter impactos negativos, embora certos videojogos ajudem a promover competências como a resolução de problemas e a criatividade, e as redes sociais possam transformar-se num “lugar de suporte” quando há solidão ou “incompreensão” por parte dos outros. As principais consequências negativas são a diminuição da autoestima e bem-estar, por via da comparação com outros utilizadores das redes sociais, e a diminuição da qualidade das interações quando há um “uso excessivo de ecrãs, várias horas por dia e durante momentos de convívio”.

Ivone Patrão, psicóloga clínica e investigadora na área da dependência de ecrãs, foi uma das convidadas do episódio do podcast "Que Voz é Esta?" dedicado ao uso problemático de internet

QUE VOZ É ESTA?

“Já tive casos bastante graves de dependência de internet, jovens que não se levantavam da cadeira nem para as necessidades mais básicas”

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Dos vários riscos e perigos do uso de ecrãs para as crianças e jovens, o manual destaca, entre outros, o “cyberbullying”, problemas de saúde mental, aliciamento sexual e dependência. “O uso excessivo dos ecrãs pode refletir-se em comportamentos aditivos, tal como acontece com o uso excessivo de álcool, tabaco ou outras drogas. É possível ficar-se adicto a videojogos, a encontros online, a jogos de apostas online ou, simplesmente, às redes sociais”, lê-se no documento.

Há sinais que indiciam este uso problemático, a que os pais e os próprios adolescentes devem estar atentos: ficar “perturbado, irritado, angustiado ou triste" quando a atividade online é interrompida, sentir dificuldades em reduzir o tempo online (mesmo quando é o próprio a tomar essa iniciativa), saltar refeições, ficar várias horas sem ir à casa de banho, e entrar em conflito com a família por questões relacionadas com o tempo de ecrã.

Tanto em crianças como em adolescentes, há estratégias que podem ser colocadas em prática para promover um uso responsável. Definir horários e tempos para o uso de ecrãs, utilizar as tecnologias em conjunto, utilizar o tempo de ecrã “como uma recompensa por conquistas realizadas fora do mundo digital" - em vez de permitir que faça parte das rotinas - e realizar atividades com as crianças e jovens fora do mundo digital são algumas das estratégias sugeridas.

A Ordem dos Psicólogos também sugere que as refeições sejam feitas sem smartphones ou consolas à mesa e que, no dia a dia, estes dispositivos estejam em espaços comuns da casa e não no quarto da criança ou do jovem. Também é recomendado à família que estabeleça um dia comum para “desligar”. “Pode ser estabelecido um dia da semana, por exemplo, se possível, um dia de fim-de-semana, para ninguém utilizar ecrãs e tecnologias digitais, dedicando-se a família a realizar outro tipo de atividades, individualmente e em família.”

Ainda na secção dirigida a pais e mães, são discutidas as vantagens e desvantagens de dar um smartphone às crianças, a importância de monitorizar a atividade online dos filhos e como esta supervisão deve ser feita, sendo certo que “proibir completamente e de forma indiscriminada o uso de ecrãs pode ter o efeito contrário ao pretendido”.

LEVAR O TELEMÓVEL PARA A CASA DE BANHO PODE SER SINAL DE ALERTA

Os riscos e perigos a que os adultos estão expostos são semelhantes aos das crianças e jovens, mas incluem também a invasão de privacidade, fraudes e burlas online. O documento detalha alguns dos esquemas fraudulentos mais comuns.

O uso excessivo de ecrãs pode ser identificado quando um adulto tem dificuldade em ficar longe do smartphone. "Podemos tê-lo verificado há cinco minutos, mas voltamos a fazê-lo. Ficamos mais tempo a utilizá-lo do que queríamos e, muitas vezes, perdemos a noção do tempo e atrasamo-nos ou esquecemo-nos de fazer algo. Levamo-lo para todo o lado, mesmo que seja dentro de casa, até quando vamos à casa de banho.” Quando, em vez de combinar atividades com a família ou amigos, a pessoa prefere ficar em casa a conversar através das redes ou a assistir a eventos pelo ecrã, isso também pode ser um sinal de uso inadequado.

As recomendações incluem filtrar os conteúdos seguidos - dispensando aqueles que “não têm um propósito claro e positivo para o bem-estar”, e evitar comparações com “conteúdos irrealistas”, especialmente sobre beleza, bem-estar e estilos de vida, que “não correspondem à realidade da maioria das pessoas”. Estar três a quatro horas por dia sem usar qualquer ecrã e realizar mais atividades offline, durante as quais “podemos desligar o som do telemóvel, colocar em modo avião ou simplesmente não o levar connosco”, é outras das recomendações.

Se é difícil diminuir o tempo de utilização do smartphone, há várias estratégias que podem ajudar: alterar a paleta de cores do ecrã para tons de cinzento - tornando o ecrã “mais aborrecido e menos apelativo” - desativar as notificações, utilizar uma app para bloquear outras apps, usar as redes sociais apenas no computador ou criar um lembrete acessível que “interrompa o comportamento automático de verificar o smartphone” e lembre que é hora de “voltar para a vida offline”.

IDOSOS TAMBÉM PODEM FICAR DEPENDENTES DE ECRÃS

O documento também aponta os benefícios e impactos negativos dos ecrãs nas pessoas mais velhas. “Os conteúdos que vemos nos ecrãs, incluindo nas redes sociais, podem ter influência nas nossas decisões, por exemplo, se nos cruzamos com muitas notícias trágicas ou falsas é possível ficarmos demasiados preocupados e agirmos sem ponderação.”

Há vários sinais que podem indiciar um uso excessivo: pensamento e fala mais “preguiçosos” - utilizando a pessoa cada vez “menos palavras” - dificuldade em escrever à mão, fazer contas de cabeça ou tratar sozinha de assuntos fora de casa. “O uso excessivo dos ecrãs pode cruzar-se com as dificuldades associadas ao envelhecimento e à demência, acelerando o declínio cognitivo e os processos demenciais”, alerta a Ordem dos Psicólogos.

Os familiares ou cuidadores de pessoas mais velhas também podem contribuir para uma utilização mais benéfica das redes sociais. Por exemplo, ajudando a relativizar o que se vê. “Muitas horas de notícias podem criar uma visão pessimista do mundo, pois os meios de comunicação social focam-se no que é incomum e trágico. É importante equilibrar o tempo de ecrã com outras atividades ocupacionais”.

Nas estruturas residenciais para idosos, devem ser privilegiadas atividades interativas nos ecrãs, em vez de “atividades passivas, como ver televisão”. Se não existirem atividades ocupacionais, os familiares devem apelar à sua criação junto das estruturas.


 SOCIEDADE  (Expresso 14 JULHO 2024) 

https://expresso.pt/sociedade/2024-07-14-levar-o-telemovel-para-todo-o-lado-ate-para-a-casa-de-banho-pode-ser-sinal-de-alerta.-a-ordem-dos-psicologos-sugere-estas-estrategias-dbe36cb3