Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
sábado, 27 de julho de 2024
Tiago Franco - THE SHOW MUST GO ON
Diana Andringa - O velho foi à viola
´* Diana Andringa
Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.
Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.
Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade.
Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu.«Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando.Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?»Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!»Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»
Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!»
Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.
A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» – a morte do antigo Presidente do Conselho.
Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»
E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia, nesses minutos sem música, canções de resistência.
28 de julho 2016 - 15:32
(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
https://www.esquerda.net/artigo/o-velho-foi-viola/43863
Alexandra Lucas Coelho - O Capitólio aplaudiu de pé a nossa morte. No meio do caminho havia uma mulher
CRÓNICA
Tornámo-nos hospedeiros da Palestina. Hospedeiros do que a
Europa fez com que deixasse de ter lugar na Terra.
* Alexandra Lucas Coelho
27 de Julho de 2024
1. Eu vi, como tanta gente estaria a ver, uma mulher sozinha com uma cadeira vazia de cada lado, e em volta os eleitos da democracia mais poderosa da Terra a ovacionarem de pé, minuto a minuto e durante quase uma hora, o homem já condenado como criminoso de guerra que continua a comandar o maior extermínio do nosso tempo de vida. Pareciam bonecos com mola ou controle remoto, uma plateia de bonecos de blazer a saltar num aplauso frenético ao fim de cada frase. E eram o Capitólio, a Casa da Democracia americana, recompensando o primeiro-ministro de Israel com uma honra que nem Churchill teve: o seu quarto discurso ali.
Aparentemente Netanyahu também estava de blazer, mas foi de avental e cutelo que o vi quando exibiu alguns dos israelitas que trouxera: o soldado etíope, o soldado muçulmano, o que perdeu um braço, o que perdeu uma perna, e ainda o pai que perdeu um filho. E que coração não estaria com a dor deles? Todos ali na plateia, transformados em munição pelo mais bem sucedido talhante de partes humanas. Não só braços e pernas, como bem mostraram os eleitos no Capitólio, amputados de alguma parte interna para a qual não há próteses.
Lá em cima, nas galerias, familiares de reféns israelitas com t-shirts a pedir um acordo AGORA foram retirados pela polícia, sem que isso se notasse na plateia. Mais de cem representantes do Partido Democrata faltaram à sessão em protesto. Kamala Harris, que deveria presidir, esteve ausente, escudando-se num compromisso prévio. E do lado de fora, milhares protestavam, com centenas a serem detidos, incluindo judeus com t-shirts ou kipas contra o genocídio, pelo cessar-fogo, o embargo de armas. Alguns activistas conseguiram até infiltrar-se no hotel da comitiva israelita, deixar lá vermes como os que infestam Gaza.
Todos os protestos fazem diferença para os palestinianos, ajudam-nos a não enlouquecer. Mas não apagam o que aconteceu no Capitólio: a ovação para a morte em Gaza, que é a nossa também. Porque quem batia palmas não eram terroristas banidos. Eram os eleitos.
Vi-os em directo, os bonecos. E no meio deles, aquela mulher: Rashida Tlaib, a primeira palestiniana-americana eleita no Congresso. Por acaso era o dia do aniversário dela. Ao longo dos 292 dias anteriores falara muitas vezes ali pelos palestinianos. E na quarta-feira, 24 de Julho, em vez de não ir, fez algo mais fulminante. Sentou-se com o seu kuffyieh e o seu pin da Palestina, e sem se levantar, nem abrir a boca, levantava uma pequena placa que dizia CRIMINOSO DE GUERRA e do outro lado CULPADO DE GENOCÍDIO.
Essa é a imagem que não abriu todas as notícias, nem fez todas as capas.
Rashida no meio dos bonecos da democracia, com uma cadeira vazia de cada lado e
a palavra erguida, voltada para Netanyahu.
Era a mais sozinha ali. E fora dali, quanta gente a acompanhava.
2. A sessão do Capitólio foi uma cópula obscena de uma parte substancial de Israel com uma parte substancial dos EUA. Sim, tantos em Israel estão contra Netanyahu, pior líder desde algum péssimo na Bíblia, etc. E claro, a América é muito mais do que aquela plateia de bonecos. Mas a tragédia também é essa: estamos a falar de democracias, ali tínhamos o que foi votado pelo povo, e com um poder tão grande que despreza ou combate as Nações Unidas, a sua ajuda e a sua lei, incluindo: 1) O Tribunal Internacional de Justiça que há uma semana declarou a ocupação israelita ilegal, ordenando a retirada imediata; 2) O Tribunal Penal Internacional que há meses condenou Netanyahu por crimes de guerra.
Este é o poder israelita-americano que tentou dar cabo da UNRWA, não provou nada, e hoje vê todas as nações voltarem ao apoio. O poder que deu cabo da vida de centenas de milhares de crianças, e nega a UNICEF, a Human Rights Watch, os Médicos Sem Fronteiras. Que vetou incontáveis propostas de cessar-fogo, lançou incontáveis bombas. Que acredita (ou se comporta como acreditasse) que Deus nasce em Israel e se põe nos Estados Unidos da América. Supremacistas para quem a lei internacional vale tão pouco como a vida do resto do mundo.
É isso que os aplausos no Capitólio dizem a Gaza e ao resto do mundo. E quando a democracia diz isso, como acreditar nela? Como convencer quem (à semelhança do que também fizeram os sionistas pré-Israel) usa o terror em último recurso?
E tudo pode ser pior ainda, porque há pior em Israel e na América. Em Israel há
Ben-Gvir, Smotrich, colonos assassinos e incendiários em roda livre e milhares
de ultra-ortodoxos já a receber ordens de alistamento que nunca cumprirão.
Israel é um paiol que não se resolve com a remoção de Netanyahu. Ele é o
talhante que vemos, e ainda assim só o continuador do que vem a ser talhado,
cada vez mais mortal.
E a América, por onde começar, depois de 15 dias alucinantes?
3. Vocês sabem, todas vimos: a Maga Trump tirou os devidos louros da própria orelha, colhida no tiro de um rapaz morto de imediato pela segurança que estrondosamente não segurou o resto. Estrondo só superado pelo formidável desempenho do alvejado. Parece nascido para o momento e metade da América cai de joelhos.
Quanto à outra metade, pouco depois da orelha colhida tivemos Biden a ser ungido por finalmente desistir do que nunca devia ter começado. Como se Gaza não existisse. Fui ler o texto do Conselho Editorial do New York Times, redondo, patrioticamente banal (tão aquém, para ficar só pelas vizinhas, da não menos patriótica mas nunca banal New Yorker, ou, sem essa costela patriótica, da magnífica New York Review of Books). Não contribui para restaurar os créditos perdidos do NYT desde o 7 de Outubro. Mas terá amparado quem não quer pensar em Gaza. Nessa terrível pergunta desde então: quem somos nós? Ufa! Pois, se o NYT não diz uma palavra sobre Gaza, nem uminha, menos mal. É o mundo a andar para a frente! Sabemos como todos os sangues são iguais mas há uns mais iguais que outros, e aquele sangue todo em Gaza ou não é de verdade (lembram-se de quando Biden duvidou que o número oficial de mortos fosse tão alto?), ou de qualquer forma não é igual ao de Biden. De Ursula. Dos alemães. Dos israelitas. E como diria Golda Meir, os palestinianos na verdade não existem.
Vi um bocado de coisas como repórter desde uma súbita manhã em Agosto de 1991 em Moscovo, quando o pesadelo da URSS começou a desfazer-se. O que passados todos estes anos só me faz pensar com mais horror em Putin. Pelos ucranianos, e pelos russos. Cobri guerras de várias espécies, incluindo o pós-11 de Setembro, e muitos anos de Israel/Palestina. Perdoem o elenco. Mas só gasto as linhas anteriores para dizer que, mesmo tendo vivido isso, vejo o 7 de Outubro como a grande mudança do meu tempo de vida. E aqui não digo nosso porque quero, espero, antecipo que quem tem 20 anos agora viva uma mudança no sentido oposto.
O 7 de Outubro não é apenas uma mudança política. É existencial. É ver os
humanos e a vida na Terra de outra forma. Por isso este não é um assunto como
os outros, é o assunto com que os outros serão pensados, também. O mundo nunca
acaba, pelo menos enquanto estamos vivos. Mas Gaza estará sempre lá, em cada
texto, em cada viagem, em cada conversa, mesmo que não venha à tona.
Tornámo-nos hospedeiros da Palestina, mais ou menos conscientes. Hospedeiros do
que a Europa fez com que deixasse de ter lugar na Terra.
Mas ao contrário do Holocausto, os jovens que estão na rua agora — porque viram tudo desde 7 de Outubro, e sentem de forma aguda e cristalina o insuportável — não vão herdar a nova culpa da Europa. Ela fica com quem continua calado, e sobretudo com quem bate palmas à morte porque está sentado no poder. O necropoder que conhecemos de há muitos genocídios.
A Europa perseguiu, matou ou deixou matar os judeus, e ajudou a despejá-los numa terra que não era dela porque não os queria. E desde 7 de Outubro tem deixado matar os palestinianos que estavam nessa terra. Como se este assunto não fosse um fruto dela. É um fruto dela.
Estes 15 dias mostraram como o mundo precisa mais do que nunca que a Europa
faça frente ao que vimos no Capitólio.
José Pacheco Pereira - Porque é que na “geração mais preparada de sempre” a ignorância cresce?
Opinião
A ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao
saber são perigosos para a democracia e liberdade.
* José Pacheco Pereira
27 de Julho de 2024
Este é o tipo de artigos em que já se sabe de antemão as críticas, mais “bocas”
do que críticas, que vai receber. Passadista, “velho do Restelo”, velho tout court, arrogante,
reaccionário, antiquado, com incompreensão do que é a “nova” geração e as
mudanças culturais em curso, com uma visão ultrapassada do que são as novas
“competências”, não compreendendo os novos “saberes”, preso a um mundo que já
acabou e a um elitismo sem sentido numa sociedade muito mais igualitária, em
que os “saberes” do passado são inúteis. Muito bem, é tudo isto, mas, mesmo
assim, reafirmo que o mundo cultural circulante nos dias de hoje é
particularmente pobre, é pobre de referências, é pobre de “histórias”, é pobre
de vocabulário, e alimenta uma ignorância agressiva, em particular nas redes
sociais, e isso é péssimo para a democracia. Ainda mais, é um mundo que pela
sua fragilidade cultural é particularmente sensível às modas, sem qualquer
distanciação e consistência.
Tenho consciência de que este tipo de catastrofismo cultural, ainda por cima com uma componente geracional, é recorrente na história, tem características comuns que se repetem e tem-se revelado muitas vezes errado. É cíclico nas suas lamentações dos “velhos” para as gerações mais novas, mas se há coisa que a história também revela é que, às vezes, existe mesmo decadência. É um pouco aborrecido estar com estes caveats todos – aqui está uma palavra em desuso –, mas a ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao saber são perigosos para a democracia e liberdade. Decadência é outra palavra maldita. 250 palavras gastas com prevenções.
Aqui há alguns anos eu dei aulas partilhadas com Jaime Gama sobre “relações
internacionais” no ensino superior. Nos dias de exames, verifiquei que muitos
alunos corriam à secretaria para obter um adiamento, “porque fazia muitas
perguntas difíceis”. Tentei perceber quais eram as “perguntas difíceis” e de
onde vinha o medo. Consegui identificar a origem num exame em que o tema que o
aluno estava a expor eram os eventos da Revolta Húngara de 1956, que ele
conhecia minimamente. De repente, suspeitei de algo estranho e perguntei-lhe
esta simples coisa: onde é que é a Hungria. Pânico, e completa ignorância onde
era a Hungria, onde estava o Danúbio, e após tentativas e erros a Hungria
ficava para os lados do Cazaquistão. Comecei então a fazer perguntas deste tipo
e estas eram as “perguntas difíceis”.
Daumier DR
Tratava-se de estudantes do ensino superior prestes a acabar a licenciatura. Mas, andando para trás e para a frente, tenho as mais sérias dúvidas que seja possível hoje ler a grande maioria da grande literatura portuguesa, Camões, Camilo, Eça, por exemplo, mesmo que, no caso de Eça, seja um dos raros autores ainda presente numa lista de leituras em grande parte jornalística. Em linhas gerais, a parte narrativa de alguns livros que ainda sobrevivem talvez subsista, mas duas grandes fontes da nossa cultura ocidental desapareceram do saber circulante: a Bíblia e a cultura greco-latina. Ora, duvido muito que textos literários que falam como quem respira de Orfeu, Sísifo, David, Golias, da Guerra do Peloponeso, de Marte, de Salomão, do Bom Samaritano, de Péricles, da “voz clamando no deserto”, de Abraão, de Ulisses, do Cavalo de Tróia, de Homero, mesmo de Caim e Abel, de César Augusto, de Esparta, do Hades, de Diana, a caçadora, de Herodes, etc., etc., hoje signifiquem alguma coisa. O mesmo para muitas lendas, metáforas, ditos, alcunhas, etc.
O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa de uma espécie de psicologia barata. E tem um público jovem
É importante saber-se isto? Claro que é, por uma razão muito simples: é que não
se sabendo é-se mais pobre da cabeça, até porque com esta ignorância vem um
pacote de um mundo mais desértico. Há excepções, como é óbvio, mas as excepções
não contam. O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas
dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa
de uma espécie de psicologia barata, e não é por acaso que uso esta comparação
porque um dos alicerces desta ignorância agressiva é mesmo esse tipo de
conversa, que vai muito para além da Casa e dos comentadores em estúdio. Ele
estende-se aos/às influencers e ao mundo das redes do
Chega, raiva, ressentimento, sentimentalismo barato, pseudodepressões, “bocas”,
erros de ortografia, escasso vocabulário, e muita, muita ignorância. E tem um
público jovem.
O mundo não está brilhante, porque este tipo de gente é particularmente fácil
de manipular.
O autor é colunista do PÚBLICO
sexta-feira, 26 de julho de 2024
Pedro Garcias - A criadagem segundo o fidalgo Rui Moreira
Crónica Elogio do Vinho
Dentro de duas
semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser matar
saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier mesmo
com vontade de trabalhar.
* Pedro Garcias
26 de Julho de 2024
Rui Moreira criticou as paragens do futuro metrobus do Porto desenhadas por
Siza Vieira, comparando-as a menires
de Obélix. A apreciação mereceu uma
resposta de um investigador da Faculdade de Arquitectura do Porto, Pedro
Levi Bismarck, que acusou o presidente da Câmara do Porto de ter pouca
legitimidade para tal crítica, dado ser “um dos responsáveis políticos pela
destruição em massa do património arquitectónico” da cidade. Em resposta, o
liberal político soltou
a sua sanha sobre o pobre do investigador Bismarck, dizendo que este
“prefere idolatrar Álvaro Siza com aquela pequenez da criadagem quando
experimenta, à sorrelfa, as jóias da patroa para se ver ao espelho”.
Esperei três semanas na esperança de que algum representante da “criadagem”
atirasse um verdadeiro menir ao fidalguinho da Foz, não para o matar mas para
lhe colocar o cérebro no sítio. O termo “criadagem” é todo um programa de
desprezo e pequenez. O que incomoda na palavra são as quatro últimas letras. É
o “agem”. Lembram “vassalagem”, “miudagem”, “malandragem”, “parolagem”,
“vadiagem”, “ladroagem” e muitas outras coisas pouco simpáticas, como, mas aqui
para o lado de certos patrões, “vilanagem”, “cabotinagem”, “cretinagem” e até
“parvoagem”.
Nos anos 50 do século passado, cerca de 39% da população activa do sexo
feminino em Portugal eram criadas de servir. Na segunda metade do século,
segundo a investigadora Inês Brasão, autora do livro O tempo das criadas: a
condição servil em Portugal (1940-1970), chegou a haver 200 mil mulheres
nessa condição.
A tal “criadagem” era, sobretudo, composta por crianças que vinham do interior
pobre e analfabeto, de aldeias onde não havia sequer electricidade e as
famílias eram do tamanho de uma equipa de futebol. Os rapazes ajudavam na
lavoura e, quando podiam, emigravam. As raparigas ajudavam na lavoura e na casa
e, ainda antes de menstruarem, iam servir para uma família rica, impulsionadas
muitas vezes, como lembra Inês Brasão, pela “morte prematura do pai ou da mãe,
entrada na fase legalmente aceite para o início do trabalho (entre os dez e os
12 anos), necessidade de libertar o número de filhos a cargo, súbitos
rompimentos familiares e também o 'engano'”.
As criadas faziam de tudo: limpavam a casa, cozinhavam, tratavam dos mais
velhos, cuidavam dos meninos. Acordavam cedo e deitavam-se tarde, muitas vezes
só a troco de comida e de um quarto escuro, apertado e recuado dentro da
própria casa dos patrões ou numa dependência. Viviam para servir, numa relação
de domínio-submissão que autorizava todo o tipo de abusos, até de cariz sexual,
como o desvirginamento dos meninos. Não sei se aconteceu com Rui Moreira, mas
era comum. Muitas engravidavam dos patrões. Depois de consultar as estatísticas
dispensadas por maternidades e hospitais, Inês Brasão descobriu que a categoria
profissional das criadas “ocupava o topo na prática da interrupção da
gravidez”. “Para as criadas de servir, que esperavam filhos gerados pelos
próprios patrões, a decisão de nascimento significava uma situação de vergonha
pública difícil de suportar ao longo da vida. O filho seria considerado
ilegítimo, filho de pai incógnito e provavelmente afastado da mãe.”
Há muito vinho nesta crónica, embora não pareça.
A sorte da “criadagem” dependia do grau de submissão que as próprias criadas
estavam dispostas a suportar e da natureza mais ou menos dominadora e
insensível dos patrões. Havia de tudo. Havia patrões decentes e patrões
abusadores. E havia criadas que entravam numa casa como quem entra num
convento, para a vida toda, dispostas a suportar tudo, e outras com sonhos mais
amplos, criadas que ambicionavam um dia vestir os mesmos vestidos das patroas e
usar as mesmas jóias. O principezinho Rui Moreira é tão alto que não vê que não
existe pequenez nas criadas que colocavam as jóias da patroa à sorrelfa, só
para se verem ao espelho e imaginarem-se elas próprias patroas. A pequenez
estava nos patrões que sujeitavam as criadas a uma vida de servilismo, reclusão
e humilhação, paga com manifestações de caridade e de suposta irmandade
expressa na frase habitual: “É como se fosse da família!”. Estava também na
pelintragem de muitos deles, falidos mas vivendo como se continuassem ricos,
sempre com a campainha por perto para chamar a criada, e exímios em guardar uns
croquetes no bolso quando em festas alheias.
Hoje sou
Bismarck porque conheço bem essa “criadagem”. Vou contar o que me aconteceu.
Ela, uma de dez irmãos, veio ainda criança de Francelos, uma aldeia dos altos
de Alijó, para servir numa casa rica da vila. Teve a sorte de encontrar uma
família decente e honrada. Ele, de Alijó, vivendo em frente, já era criado para
as obras da mesma família, mas de um ramo que veio a ter como patrão um
arquitecto local instalado no Porto. Não sei se Rui Moreira ia gostar dele,
também fazia menires usando linhas rectas. O criado e a criada apaixonaram-se,
casaram-se e tiveram sete filhos. Três raparigas foram servir ainda crianças,
só os três filhos mais novos puderam estudar. E bastaram duas gerações para que
vários netos da criada de servir, que não sabia ler nem escrever, e do criado
de obras, que ainda conseguiu fazer a quarta classe, chegassem a médicos,
engenheiros e outras funções socialmente reconhecidas.
Foi assim que eu, um dos sete filhos desse casal, cheguei até esta página, que
deveria ser preenchida com assuntos sobre vinhos. Mas há muito vinho nesta
crónica, embora não pareça. Inúmeras criadas do Porto eram oriundas do Douro e
não havia família rica da Foz ou das Antas que não tivesse uma quintinha na
região duriense. Na altura, o Douro era o fim do mundo e muitos patrões só lá
iam em experiência antropológica, sobretudo na vindima, para lançar um foguete
e entregar os sapatos cheios de pó ao lenço dos trabalhadores e ainda receber
destes um ramo, como agradecimento pelo trabalho duro e mal remunerado. Em
troca, se o patrão não fosse muito sovina, podiam ter direito a uns doces e a
uma gorjeta. “Belos tempos!”, suspiram alguns.
Dentro de duas semanas, começa mais uma vindima no Douro. Se Rui Moreira quiser
matar saudades, ofereço-lhe casa e comida. E ainda lhe pago a jorna, se vier
mesmo com vontade de trabalhar. Para brincar aos ricos, já basto eu.
https://www.publico.pt/2024/07/26/fugas/cronica/criadagem-segundo-fidalgo-rui-moreira-2098443
Carlos Matos Gomes - OTELO | o fantasma da Revolução
quarta-feira, 24 de julho de 2024
Manuel Loff - Uma cultura comum
Opinião
Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os
seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.
* Manuel Loff
24 de Julho de 2024
O regresso da direita ao poder trouxe consigo curiosas personagens cujos
percursos intelectuais e profissionais comprovam bem como à direita se partilha
uma cultura comum, feita de continuidades políticas estruturais (nacionalismo,
monarquia, reacionarismo moral e cultural, elogio do autoritarismo e do
colonialismo) e de leituras puramente voluntaristas (para não dizer
simplesmente manipuladas) da história. Ela transcende as “linhas vermelhas” do
“não é não” e demonstra que extrema-direita e direita tradicional neoliberal
podem disputar entre si o poder, mas convergem na visão do mundo, desde
media como o Observador ou o Correio da Manhã, até obras
coletivas como o já famoso, e lamentável, Identidade
e Família que Passos Coelho apresentou, reunindo intelectuais da
ultradireita e dirigentes do PSD.
Entre estas personagens está o chefe de gabinete do secretário de Estado da
Presidência do Conselho de Ministros, nada menos. Pedro Velez é um monárquico
desde sempre militante do PSD que, entre outras coisas, participou em 2019 num
colóquio (depois livro) sobre o jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho, o
guru de Bolsonaro, com o título de “O Magistério de Olavo de Carvalho: para uma Paideia Integral”. Considerando que Olavo, inspirador de todo
aquele circo com que o bolsonarismo povoou o governo brasileiro, não possuía
qualquer percurso académico, no mínimo surpreende que se sinta tentado a
escrever sobre ele alguém que agora ocupa no Governo um lugar desta relevância.
Outra destas personagens, reemersa há dias ao ser nomeado “secretário privado” de José Cesário, o eterno secretário
de Estado das Comunidades dos governos do PSD, é um tal Vitório Cardoso, outro
destes improvisados intelectuais orgânicos da direita que, sem qualificações
específicas para coisa alguma, progride à sombra de nomeações políticas para
lugares periféricos no aparelho de poder ou para atividades habitualmente
descritas como lobbying. A História é, contudo, para eles um terreno
irresistível para fazer propaganda.
VItório elogia rasgadamente a polícia política por esta, justamente na fase
em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel fundamental para
combater os atos subversivos da oposição política, nomeadamente dos comunistas
que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e soberania nacionais”
Vitório é destes que acusa Aristides de Sousa Mendes de “[pôr] em risco a vida de todos os portugueses”, reiterando
insinuações sem base documental, que outros já fizeram, de como os alemães
ameaçariam invadir Portugal para perseguir em 1940 os refugiados ajudados pelo
cônsul. Noutro
texto, o mesmo homem sustenta um chorrilho de disparates que contrariam
todas as provas reunidas pela investigação historiográfica portuguesa e
internacional sobre a ditadura de Salazar nos anos da Guerra de Espanha
(1936-39). Para fazer um elogio bacoco da política de Salazar durante a Guerra
de Espanha, comete erros garrafais, confundindo 1936 com 1975, errando nas
datas de início da guerra de Espanha, da criação da PVDE ou da “ilegalização do
PCP” (e dos demais partidos), e assegurando que “o Estado Novo manteve [na
guerra] uma postura de não intervenção”. Ora César Oliveira, Iva Delgado,
Fernando Rosas e eu próprio abundantemente comprovámos a violação sistemática
do direito internacional através do apoio financeiro, logístico e diplomático
(em articulação com o Eixo nazifascista) aos golpistas de Franco; as campanhas
de Salazar para impedir qualquer negociação de paz proposta pelo Vaticano,
França ou Reino Unido; ou as críticas feitas ao próprio Papa Pio XI por este
pedir a suspensão de bombardeamentos aéreos contra populações civis (a começar
por Guernica, em 1937).
Salazar incumpriu todas as regras do direito de asilo, não só ao entregar aos
franquistas republicanos espanhóis que procuravam refúgio em Portugal, mas
também, como demonstra a recente tese doutoral de Maria
José Oliveira, abandonando milhares de emigrantes portugueses em Espanha
que participaram na defesa da República contra o golpe de Franco, presos ou
fuzilados.
Por último, este dirigente do PSD elogia rasgadamente a polícia política por
esta, justamente na fase em que a repressão foi mais brutal, ter tido “um papel
fundamental para combater os atos subversivos da oposição política,
nomeadamente dos comunistas que poderiam pôr em causa a unidade, liberdade e
soberania nacionais.”
Falsificações históricas é o que mais há. O grave é que os
seus autores cheguem ao poder e por lá se pavoneiem.
O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo
acordo ortográfico
domingo, 21 de julho de 2024
Jorge Sarabando - Nascença, vida e queda da 5ª Divisão do EMGFA
Nascença, vida e queda da 5ª Divisão do EMGFA – Estado-Maior General das Forças Armadas, por Jorge Sarabando - Lisboa, Voz do Operário, 18 de Julho de 2024
A 5ª Divisão
foi criada em Junho de 1974, manteve uma intensa actividade até 27 de Agosto de
1975, data em que as suas instalações foram assaltadas por uma força do COPCON,
e subsistiu, com sérias limitações, até à sua extinção formal na sequência do
Golpe de 25 de Novembro.
Inicialmente,
num período marcado por forte hostilidade do General Spínola ao MFA, foram nela
colocados os 7 oficiais que constituíam a sua Comissão Coordenadora, sendo o
mais graduado o então Coronel de Engenharia Vasco Gonçalves, nomeado Chefe da
Divisão. Com a sua designação para Primeiro-ministro do 2º Governo Provisório,
em Julho de 74, foi substituído pelo outro oficial mais graduado, o então
Tenente-coronel Franco Charais, mais tarde nomeado para comandar a Região
Militar Centro. Outros membros da Comissão Coordenadora nomeados para pastas
ministeriais sairiam também, como foi o caso dos majores Melo Antunes e Vítor
Alves, e do capitão Costa Martins. Entre os oficiais entretanto colocados,
contava-se o Coronel João Varela Gomes, que logo se distinguiu pela iniciativa
e dinamismo, e viria a chefiar o Centro de Sociologia Militar.
As missões
atribuídas situavam-se, como era norma, no âmbito das Relações Públicas e Acção
Psicológica. Em Outubro de 74, seria nomeado Chefe da 5ª Divisão o Coronel
Robin de Andrade, e em Junho de 75, foi nomeado o 1º Tenente médico naval
Ramiro Correia, para o efeito graduado em Capitão de Mar e Guerra.
Apesar das
limitações de meios materiais e de atrasos na colocação do pessoal necessário,
foi possível, a partir de Setembro de 74, definir um novo quadro organizativo,
passando as actividades principais a repartir-se por quatro áreas:
- CODICE –
Comissão Dinamizadora Central;
- CEIP – Centro
de Esclarecimento e Informação Pública;
- Centro de
Sociologia Militar;
- Centro de
Relações Públicas.
A actividade da
5ª Divisão teve dois momentos altos, com reconhecimento geral e institucional,
no enfrentamento enérgico, audacioso, decisivo, dos golpes
contra-revolucionários de 28 de Setembro de 74 e de 11 de Março de 75. A 5ª
Divisão foi essencial na prontidão de resposta, na mobilização popular e
sequente derrota dos golpistas. Recorde-se que Spínola pretendia a demissão do
Primeiro-ministro Vasco Gonçalves, na decorrência da manifestação da chamada
“maioria silenciosa”, prosseguir os seus projectos neo-coloniais, antecipar,
numa pulsão caudilhista, a eleição presidencial, em que seria o candidato
natural, e adiar a eleição da Assembleia Constituinte, firme compromisso do
MFA. A partir da Espanha franquista, para onde fugiu, Spínola, com a sua corte
militar, viria a criar o MDLP que, juntamente com o ELP, rede Maria da Fonte, e
outros grupos reais ou fictícios, formaram a rede terrorista da
extrema-direita, responsável pela onda de violência que abalou o País durante o
processo revolucionário.
A fronteira que
separava o grupo spinolista do MFA era então clara e bem visível. Para se
avaliar a intensidade do confronto, recorde-se que Spínola, ainda Presidente,
encomendou a Alpoim Calvão, nas palavras deste, a eliminação física de Melo
Antunes e Vasco Gonçalves, acusados de traição. Mas a seguir mandou suspender a
operação e ordenou a neutralização de Costa Gomes, que acusava de ser o maior
“traidor” e quem “manejava a Comissão Coordenadora”. A crer em Alpoim Calvão,
que viria a ser mais tarde o chefe operacional do MDLP, terá tentado mas não
conseguiu cumprir a missão.
Em Junho de 75,
o poder político-militar parecia estável e coeso, fora criado o Conselho da
Revolução e assinado o 1ºPacto MFA- Partidos. Mas surgiam as primeiras tensões
entre os maiores partidos políticos e revelavam-se, ainda incipientes, traços
de fractura entre os principais responsáveis do MFA. A Assembleia Constituinte
tomou posse a 2 de Junho, e o peso político das forças representadas permitia
explorar uma linha de conflitualidade entre, como então se designavam, a
dinâmica revolucionária e a dinâmica eleitoral. O Prof. Freitas do Amaral
chegou a afirmar, na ocasião, haver uma maioria democrática na Assembleia,
somando ele os votos do PS, do PPD e do CDS. Mas, na elaboração da
Constituição, a maioria que funcionou não foi essa, foi outra. A Constituição
viria a ser aprovada com os votos do PS, PPD, PCP, MDP, UDP e o deputado de
Macau, e os votos contra do CDS.
O processo
revolucionário vivia então um dos momentos mais férteis e criativos, sempre com
uma enorme participação popular. Assegurado o controlo público da Banca, que
permitiu estancar a fuga de capitais, e dos sectores estratégicos,
desenvolvia-se a economia, foram salvas, pelo Governo e os trabalhadores,
centenas de empresas ameaçadas de encerramento, avançavam a Reforma Agrária e
novas leis no mundo rural, aumentou a produção e foi criado emprego,
valorizava-se o trabalho e os trabalhadores, tomavam-se medidas concretas e
positivas no âmbito da Educação, da Saúde, da Habitação, da Segurança Social,
no acesso à cultura, na independência da Justiça, prosseguia a descolonização
nas terríveis condições herdadas do fascismo. Foram acolhidos e integrados, em
pouco mais de um ano, mais de meio milhão de portugueses vindos de África. Nem
por isso os índices de desemprego aumentaram. O ano de 1975 terminou com uma
taxa de desemprego de 4%.
Os Governos
provisórios produziam legislação com forte impacto social, tendo muitas leis
recebido consagração constitucional, como foi o caso do Salário Mínimo
Nacional. A democracia em construção não era apenas política, ao Estado eram
cometidas funções sociais. Era o caminho apontado pelas forças que combateram a
Ditadura, presentes no Congresso de Aveiro, em 73, e coerente com o Programa do
MFA. A conquista da liberdade era inseparável de profundas transformações
sociais, da melhoria das condições de vida, da valorização do trabalho e da
defesa da paz. O rumo do socialismo era claramente assumido pelas instituições
militares e pelos principais partidos e movimentos políticos. Apesar de todas
as regressões, por estranho que pareça, subsiste ainda hoje no Preâmbulo da
Constituição em vigor.
A aliança
Povo-MFA era bem o motor da Revolução e significava a expressão política duma
vasta frente social anti-monopolista. Para o grande capital desapossado dos
seus privilégios e as suas conexões externas impunha-se, por isso, quebrar tal
aliança, dividir o movimento popular e dividir o Movimento das Forças Armadas e
foi essa a direcção tomada. Todos os meios foram empregues e recursos
financeiros mobilizados com tal finalidade. Bastará ler os diálogos entre o
Secretário de Estado Kissinger e o Embaixador Carlucci, hoje disponíveis,
apesar das rasuras omissórias, em que a situação do nosso País era acompanhada
dia a dia, as mensagens trocadas com responsáveis políticos portugueses, para
comprovar como os entendimentos funcionaram. Ficaram claros dois objectivos do
Governo de Washington, dos aliados europeus da NATO e da ditadura de Franco:
demitir o Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e afastar os comunistas da esfera
do poder.
Com eficácia,
pois o MFA cindiu-se em três correntes, simplificando: a esquerda militar, ou
“gonçalvistas”, o grupo do COPCON, ou “otelistas”, e o grupo dos Nove, ou
“moderados”. Não eram componentes homogéneas nem funcionavam em compartimentos
estanques. As três correntes publicaram os seus manifestos, desenhava-se um
confronto. O apelo ao lançamento de pontes entre sectores democráticos vinha,
com certa carga de dramatismo, do lado do PCP. Mas enquanto a comunicação entre
os grupos dos Nove e do COPCON parecia funcionar, as tentativas de diálogo
entre a esquerda militar e os Nove foram, na prática, curtocircuitadas.
A partir de
Julho, as manifestações multitudinárias de sinal contrário sucediam-se. De um
lado, afirmando a defesa da Revolução, o PCP, o MES, a FSP, o MDP e outros
partidos de esquerda e as organizações mais representativas dos trabalhadores,
do outro lado, em contraponto, o PS, acobertando toda a direita até à mais
extrema, reclamava a demissão do Primeiro-ministro Vasco Gonçalves e prevenia
sobre a iminência da imposição de uma “ditadura comunista”. Os partidos
maoístas, como a AOC, o MRPP e outros, sempre ao lado do PS, falavam do PCP e
de uma ditadura “social-fascista”.
Em pano de
fundo, entre Julho e Setembro de 74, a onda de assaltos e incêndios, pela rede
terrorista, a sedes sindicais e centros de trabalho de partidos de esquerda
causava destruições e mortes. Em articulação com caciques locais e párocos
ultramontanos, a participação de pides e legionários, de ex-colonos
inconformados, de um certo lúmpen que sempre desponta nestas ocasiões, o grupo
Maria de Fonte e suas conexões no terreno simulavam um levantamento popular.
Não era, mas fazia por parecer, tal a sua pujança, e era o que interessava no
momento.
Atente-se que a
rede bombista esteve operacional entre Maio de 75 e Abril de 77, tendo alguns
dos principais autores morais e materiais dos atentados sido presos em Agosto
de 76 pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária. Apesar dos esforços da
PJ, poucos foram os presos e menos os condenados.
Estava
encontrado o alvo para onde convergiam os ataques caluniosos, por vezes
infamantes, do PS de Soares e seus aliados. A popularidade de Vasco Gonçalves
era inegável entre os trabalhadores, chegava longe nas camadas intermédias, e
era esse para a direita o maior perigo. Do seu discurso transparecia coerência,
determinação, honestidade, patriotismo. Era vital, por isso, afastá-lo quanto
antes de qualquer responsabilidade de governo.
Por outro lado,
em comícios, discursos, em panfletos assinados ou anónimos, agitava-se em tom
alarmista a iminência duma ditadura comunista. Pouco interessava a falta de
verosimilhança, a ausência de quaisquer indícios de tal cometimento. O “olhe
que não, olhe que não” de Cunhal no debate televisivo com Soares, ficou
célebre. O que interessava era fazer e repetir a acusação, incessantemente,
levantar a suspeição, para obter um efeito.
Ao mesmo tempo,
começavam as alusões a uma suposta “comuna de Lisboa”, efabulação muito útil
para os urdidores do golpe de 25 de Novembro.
Antes de
prosseguir, uma observação:
Uma das
constantes no discurso da direita civil e militar era o imperativo de restaurar
a ordem e a disciplina nas Forças Armadas. Referiam a presença de militares
fardados em manifestações, a erupção dos SUV, ou diversos actos da 5ªDivisão,
para citar alguns exemplos. Mas indisciplina foi também a decisão dos
Comandantes de algumas Unidades da Região Militar Norte de recusar o Comando do
Brigadeiro Corvacho e se terem ido colocar sob as ordens do Comandante da
Região Militar Centro; indisciplina foi o modo como o Documento dos Nove foi
posto a circular e colocado a sufrágio directo dos militares em serviço nas
Unidades da Região Militar Norte; indisciplina foi a recusa dos oficiais
designados para cumprir as ordens que teriam evitado o assalto à Embaixada de
Espanha. Parece que, no discurso hegemónico que a direita impôs, nuns casos a
indisciplina era ilegítima, noutros casos era legítima.
Ao tomar
posição em defesa de Vasco Gonçalves, Primeiro-ministro e, a partir de 25 de
Julho, membro do Directório, criado pela Assembleia do MFA, a 5ª Divisão ligou
o seu futuro ao resultado da luta em curso no campo militar. Mais que as
queixas avulsas sobre as Campanhas de Dinamização, ou as declarações de apoio
ao Documento-Guia da Aliança Povo-MFA, ou ao “Poder Popular”, ou ao documento
intitulado “Auto-crítica do COPCON”, ou a crítica ao discurso de Soares no
comício da Fonte Luminosa, que geraram hostilidade e polémica, o que concitou
as iras da direita, de seus aliados de ocasião, ditos “moderados” e de Otelo e
seus próximos, foi a campanha de apoio a Vasco Gonçalves, largamente difundida
e com grande impacto público, de que foram expressão o conhecido cartaz de João
Abel Manta e a canção “Força, força, Companheiro Vasco, nós seremos a muralha
de aço”.
Uma primeira
tentativa para calar a 5ª Divisão surgiu, mas não passou, na Assembleia do
Exército, a 24 de Julho.
Mas a 25 de
Agosto o CR decidiu suspender as actividades da 5ªDivisão. Foi de imediato
impedida uma reunião no Centro de Sociologia Militar, presidida pelo Chefe da
Divisão, Capitão de Mar e Guerra Ramiro Correia, e ordenada, apenas 12 horas
depois, uma operação militar pelo Comandante do COPCON, Otelo Saraiva de
Carvalho, de ocupação das instalações, executada pelo Regimento de Comandos.
Esperava-se, naturalmente, o cumprimento da ordem mas não como foi feito, com
brutalidade e destruição de precioso património.
Depois do golpe
de mão, foi nomeado para reestruturar a 5ª Divisão o Coronel Abreu Riscado,
tendo como assessores o Tenente-coronel Ramalho Eanes e os Majores Pimentel e
Loureiro dos Santos. A CODICE manteve-se em funções até à sua extinção, em 26
de Novembro. Uma última campanha ficou ainda a operar no Distrito de Viseu até
Maio de 76.O mesmo Coronel Riscado ficou a chefiar a Comissão Liquidatária.
Assim chegou ao
fim a 5ª Divisão. Não fosse a publicação do “Livro Branco” e da obra do
Comandante Manuel Begonha “5ª Divisão – revolução e cultura”, e de outros raros
testemunhos, apagada ficaria a memória da sua rica, diversificada e meritória
actividade, a não ser nas palavras de quem mais a hostilizou. Não que não tenha
cometido erros e excessos, mas nada justifica que tenha sido encerrada de forma
agressiva e traiçoeira, mandada queimar vasta e preciosa documentação, como se
tivesse voltado o tempo dos autos de fé.
O período de
mais intensa actividade foi de Setembro de 74 até Agosto de 75. Oito Campanhas
de Dinamização Cultural, cobrindo quase todo o País, com mais de 10 mil
iniciativas, como assinalou o Coronel Aranda da Silva, 25 edições do Boletim do
MFA, intervenção permanente nos meios de comunicação social, rádio, televisão,
imprensa escrita. De salientar a dinamização cultural no âmbito do apoio
artístico, nas artes plásticas e gráficas, teatro e fantoches, música, dança,
canto, cinema, circo, apoio literário. Memorável a criação do Movimento
Democrático dos Artistas Plásticos, e a produção de cartazes e pinturas murais,
como a pintura colectiva, por 48 artistas, de um painel, logo em 10 de Junho de
74. Um lema ficou, do pintor Vespeira: “Revolução aberta, arte liberta”.
Há um texto notável do Chefe da Divisão, Comandante Ramiro Correia, que ajuda a compreender o espírito da missão:
“A tragédia do
nosso tempo não é a de todos os tempos. Logo é preciso nomear o tempo. E é o
corpo que nomeia o tempo. É o povo que nomeia o tempo. Portugal.1975.Revolução.
A arte não deve
estar ao serviço da Revolução.
A arte é, em si
própria, Revolução.
E se a arte é,
em si própria, Revolução, que lugar existe para dirigismos em Arte?
Onde está o
escritor, o escultor, o pintor, o cineasta, que se viu, neste País, impedido de
trabalhar a sua obra devido a monolitismos culturais do MFA ou dos organismos
governamentais?
Os
revolucionários têm medo da Arte?
Mas não é o
fenómeno artístico uma contínua procura, uma incessante transformação do mundo?
Não contribui a
Arte, essencialmente, para uma nova ordem de valores na sociedade?
Nós, os
militares, ao longo do tempo trágico da guerra colonial, encontrámos, nos
nossos músicos, escritores, pintores, actores, operários e camponeses, a força
e a esperança de uma Pátria de suor e de justiça.
Esse tempo é
passado.
É preciso
nomear o tempo.
Estamos em
Portugal. Em 1975.
Empenhados numa
Revolução que pretende construir uma sociedade livre, socialista.
Ultrapassaremos
as dificuldades. Corrigiremos os nossos erros. Participaremos na nomeação do
tempo. Seremos o corpo da Revolução.
A Revolução
viverá!”
As Campanhas de
Dinamização transcenderam em muito o âmbito cultural. Ouçamos o Comandante
Manuel Begonha, um dos militares que ficaram depois de Agosto até Novembro de
75, e nesse período tentaram ainda prosseguir a sua actividade:
Recuperando
espaços sem utilidade…”criaram-se creches, parques infantis, demonstrando-se
que são inúmeros os caminhos que se abrem à força de vontade colectiva. Deste
facto são exemplo acções como as das comissões de moradores, comissões de
aldeia, de bairro, autarquias locais, associações recreativas, dinamizando a
abertura de estradas, caminhos, o saneamento básico, o lançamento de pontes, a
electrificação rural, a criação de carreiras de camionetas, a abertura de
escolas, o levantamento de centros culturais, postos de assistência médica e
vacinação, criando centros regionais de emprego e colaborando com os vários
organismos estatais”.
Podemos hoje
dizer, 50 anos depois, que foram estes os tempos heróicos da Revolução, que o
discurso hegemónico da direita e seus aliados de ocasião procurou apagar ou
desvalorizar. O tempo do Serviço Cívico Estudantil, do Serviço Médico à
Periferia, do SAAL e do CRUARB na habitação, o tempo em que os direitos cívicos
e sociais foram conquistados pela luta e inscritos na Constituição, naquele
escasso tempo, dois anos apenas, entre Abril de 74 e Abril de 76, em que o povo
foi sujeito da História.
Podemos dizer,
a terminar, que certamente num tempo disruptivo houve erros e incompreensões,
num tempo de necessária e natural radicalidade houve radicalismos nocivos, mas
o que é essencial sublinhar é que nunca as Forças Armadas estiveram tão
próximas do povo a que pertenciam. Nos meios urbanos ou nos lugares mais
distantes, o corpo militar não vinha para ordenar mas para dialogar, não vinha
para reprimir mas para ajudar, não vinha armado de violência mas com palavras
de paz. Construía-se a democracia, cumpria-se a Revolução.
Jorge Sarabando
Bibliografia principal:
“Varela Gomes”, de António Louçã,
Parsifal, Lx 2016
“Revolução e Contra-Revolução em
Portugal (1974-1975)”, de Armando Cerqueira, Parsifal, Lx 2015
“O Novembro que Abril não
merecia”, de António Avelãs Nunes, ACR, Lx 2022
“5ª Divisão MFA – revolução e
cultura”, de Manuel Begonha, Colibri, Lx 2015
“Crónicas de um insubmisso”, de
Duran Clemente, Modocromia, 2024
“Vasco Gonçalves – um General na
Revolução”, de Manuela Cruzeiro, Notícias, Lx 2002
“Costa Gomes – o último
Marechal”, de Manuela Cruzeiro, Notícias, Lx 1998
“A verdade e a mentira na
Revolução de Abril”, de Álvaro Cunhal, Avante, Lx 1999
“Alpoim Calvão honra e dever”, de
vários, Caminhos Romanos, Porto 2012
“Dossier terrorismo”, Avante, Lx
1977
“A resistência”, de José Gomes
Mota, Expresso, Lx 1976
https://www.facebook.com/rui.vazpinto.1
sábado, 20 de julho de 2024
Helena Bento - Saúde mental e dependência do telemóvel
Levar o telemóvel para todo o lado, até “para a casa de banho”, pode ser sinal de alerta. A Ordem dos Psicólogos sugere estas estratégias
A Ordem dos Psicólogos lançou um manual que aborda os benefícios e os riscos do uso de ecrãs, bem como os principais sinais que podem indiciar uma utilização excessiva e as estratégias para uma utilização segura. Dirige-se a mães e pais, mas não só: também há informação para adultos e idosos, que enfrentam igualmente riscos
Levar o telemóvel para todo o lado, até “para a casa de banho”, pode ser sinal de alerta. A Ordem dos Psicólogos sugere estas estratégias
Helena Bento
Jornalista
As tecnologias digitais vieram, em vários aspetos, melhorar a nossa vida, mas também trazem riscos e perigos. Como é que pais e mães podem garantir, por exemplo, que os filhos utilizam ecrãs de forma segura e benéfica?
Equilibrar o tempo de uso de ecrãs, utilizando-o como “recompensa” e não como um “dado adquirido ou um direito”, incentivar e realizar atividades que não envolvam tecnologia, fazer as refeições sem smartphones ou consolas por perto e estabelecer um dia para “desligar”, que envolva toda a família, são algumas das recomendações feitas pela Ordem dos Psicólogos num manual sobre este tema publicado recentemente.
O documento, intitulado “Vamos Falar sobre Ecrãs e Tecnologias Digitais”, disponível online, aborda os benefícios e os perigos do uso de ecrãs, bem como os principais sinais que podem indiciar um uso excessivo ou problemático e as estratégias para uma utilização segura. Dirige-se a mães e pais, mas não só: também há informação para adultos e pessoas mais velhas, que enfrentam igualmente riscos no uso de ecrãs.
Em crianças entre os dois e os cinco anos, ver televisão ou outros ecrãs mais de duas horas por dia, “sem critérios e sem acompanhamento”, pode “atrasar o desenvolvimento da linguagem e ter consequências negativas na visão”, bem como “comprometer a motricidade fina”, atrasando ou dificultando que a criança ande, corra ou coordene diferentes partes do corpo.
Já entre os seis e os 11 anos, várias horas de videojogos “podem refletir-se numa menor coordenação e flexibilidade motora”, e contribuir para o excesso de peso. Quando adequados à idade, podem melhorar a capacidade de orientação espacial e de raciocínio lógico; e se envolverem vários jogadores ajudam a desenvolver comportamentos de cooperação e entreajuda.
Até aos 12 meses, não é recomendada qualquer interação com ecrãs, refere o documento, com base nas diretrizes de organizações como a OMS (Organização Mundial da Saúde).
O uso de ecrãs por parte dos adolescentes também pode ter impactos negativos, embora certos videojogos ajudem a promover competências como a resolução de problemas e a criatividade, e as redes sociais possam transformar-se num “lugar de suporte” quando há solidão ou “incompreensão” por parte dos outros. As principais consequências negativas são a diminuição da autoestima e bem-estar, por via da comparação com outros utilizadores das redes sociais, e a diminuição da qualidade das interações quando há um “uso excessivo de ecrãs, várias horas por dia e durante momentos de convívio”.
Ivone Patrão, psicóloga clínica e investigadora na área da dependência de ecrãs, foi uma das convidadas do episódio do podcast "Que Voz é Esta?" dedicado ao uso problemático de internet
QUE VOZ É ESTA?
“Já tive casos bastante graves de dependência de internet, jovens que não se levantavam da cadeira nem para as necessidades mais básicas”
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Dos vários riscos e perigos do uso de ecrãs para as crianças e jovens, o manual destaca, entre outros, o “cyberbullying”, problemas de saúde mental, aliciamento sexual e dependência. “O uso excessivo dos ecrãs pode refletir-se em comportamentos aditivos, tal como acontece com o uso excessivo de álcool, tabaco ou outras drogas. É possível ficar-se adicto a videojogos, a encontros online, a jogos de apostas online ou, simplesmente, às redes sociais”, lê-se no documento.
Há sinais que indiciam este uso problemático, a que os pais e os próprios adolescentes devem estar atentos: ficar “perturbado, irritado, angustiado ou triste" quando a atividade online é interrompida, sentir dificuldades em reduzir o tempo online (mesmo quando é o próprio a tomar essa iniciativa), saltar refeições, ficar várias horas sem ir à casa de banho, e entrar em conflito com a família por questões relacionadas com o tempo de ecrã.
Tanto em crianças como em adolescentes, há estratégias que podem ser colocadas em prática para promover um uso responsável. Definir horários e tempos para o uso de ecrãs, utilizar as tecnologias em conjunto, utilizar o tempo de ecrã “como uma recompensa por conquistas realizadas fora do mundo digital" - em vez de permitir que faça parte das rotinas - e realizar atividades com as crianças e jovens fora do mundo digital são algumas das estratégias sugeridas.
A Ordem dos Psicólogos também sugere que as refeições sejam feitas sem smartphones ou consolas à mesa e que, no dia a dia, estes dispositivos estejam em espaços comuns da casa e não no quarto da criança ou do jovem. Também é recomendado à família que estabeleça um dia comum para “desligar”. “Pode ser estabelecido um dia da semana, por exemplo, se possível, um dia de fim-de-semana, para ninguém utilizar ecrãs e tecnologias digitais, dedicando-se a família a realizar outro tipo de atividades, individualmente e em família.”
Ainda na secção dirigida a pais e mães, são discutidas as vantagens e desvantagens de dar um smartphone às crianças, a importância de monitorizar a atividade online dos filhos e como esta supervisão deve ser feita, sendo certo que “proibir completamente e de forma indiscriminada o uso de ecrãs pode ter o efeito contrário ao pretendido”.
LEVAR O TELEMÓVEL PARA A CASA DE BANHO PODE SER SINAL DE ALERTA
Os riscos e perigos a que os adultos estão expostos são semelhantes aos das crianças e jovens, mas incluem também a invasão de privacidade, fraudes e burlas online. O documento detalha alguns dos esquemas fraudulentos mais comuns.
O uso excessivo de ecrãs pode ser identificado quando um adulto tem dificuldade em ficar longe do smartphone. "Podemos tê-lo verificado há cinco minutos, mas voltamos a fazê-lo. Ficamos mais tempo a utilizá-lo do que queríamos e, muitas vezes, perdemos a noção do tempo e atrasamo-nos ou esquecemo-nos de fazer algo. Levamo-lo para todo o lado, mesmo que seja dentro de casa, até quando vamos à casa de banho.” Quando, em vez de combinar atividades com a família ou amigos, a pessoa prefere ficar em casa a conversar através das redes ou a assistir a eventos pelo ecrã, isso também pode ser um sinal de uso inadequado.
As recomendações incluem filtrar os conteúdos seguidos - dispensando aqueles que “não têm um propósito claro e positivo para o bem-estar”, e evitar comparações com “conteúdos irrealistas”, especialmente sobre beleza, bem-estar e estilos de vida, que “não correspondem à realidade da maioria das pessoas”. Estar três a quatro horas por dia sem usar qualquer ecrã e realizar mais atividades offline, durante as quais “podemos desligar o som do telemóvel, colocar em modo avião ou simplesmente não o levar connosco”, é outras das recomendações.
Se é difícil diminuir o tempo de utilização do smartphone, há várias estratégias que podem ajudar: alterar a paleta de cores do ecrã para tons de cinzento - tornando o ecrã “mais aborrecido e menos apelativo” - desativar as notificações, utilizar uma app para bloquear outras apps, usar as redes sociais apenas no computador ou criar um lembrete acessível que “interrompa o comportamento automático de verificar o smartphone” e lembre que é hora de “voltar para a vida offline”.
IDOSOS TAMBÉM PODEM FICAR DEPENDENTES DE ECRÃS
O documento também aponta os benefícios e impactos negativos dos ecrãs nas pessoas mais velhas. “Os conteúdos que vemos nos ecrãs, incluindo nas redes sociais, podem ter influência nas nossas decisões, por exemplo, se nos cruzamos com muitas notícias trágicas ou falsas é possível ficarmos demasiados preocupados e agirmos sem ponderação.”
Há vários sinais que podem indiciar um uso excessivo: pensamento e fala mais “preguiçosos” - utilizando a pessoa cada vez “menos palavras” - dificuldade em escrever à mão, fazer contas de cabeça ou tratar sozinha de assuntos fora de casa. “O uso excessivo dos ecrãs pode cruzar-se com as dificuldades associadas ao envelhecimento e à demência, acelerando o declínio cognitivo e os processos demenciais”, alerta a Ordem dos Psicólogos.
Os familiares ou cuidadores de pessoas mais velhas também podem contribuir para uma utilização mais benéfica das redes sociais. Por exemplo, ajudando a relativizar o que se vê. “Muitas horas de notícias podem criar uma visão pessimista do mundo, pois os meios de comunicação social focam-se no que é incomum e trágico. É importante equilibrar o tempo de ecrã com outras atividades ocupacionais”.
Nas estruturas residenciais para idosos, devem ser privilegiadas atividades interativas nos ecrãs, em vez de “atividades passivas, como ver televisão”. Se não existirem atividades ocupacionais, os familiares devem apelar à sua criação junto das estruturas.
SOCIEDADE (Expresso 14 JULHO 2024)
https://expresso.pt/sociedade/2024-07-14-levar-o-telemovel-para-todo-o-lado-ate-para-a-casa-de-banho-pode-ser-sinal-de-alerta.-a-ordem-dos-psicologos-sugere-estas-estrategias-dbe36cb3