sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Até Sempre, Álvaro Cunhal




Há um ano desaparecia Álvaro Cunhal. Um Homem e um Político excepcionais.

Assinalando este dia, deixo-vos uma carta escrita para sua irmã Eugénia, em 1966, aquando das mortes do cunhado, o médico Fernando Medina, e do pai, o advogado Avelino Cunhal.

Apreendida pela Pide, a carta nunca chegaria ao destino. Ela revela-nos um homem amargurado e preocupado com a irmã, que adorava. Com a sua família.

Uma faceta praticamente desconhecida de Alvaro Cunhal. Mas que existia. E aqui se revela.

Júlia Coutinho
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Moscovo, 1 de Março de 1966

Minha muito querida irmã:

Terríveis notícias me chegaram nos últimos tempos: o suicídio do Fernando, a Morte do Pai. Que te posso dizer das lágrimas que chorei e choro, e de todas as razões delas, e das mil inquietações para que não tenho resposta? Por via indirecta, recebi as duas notícias. Secas, sem qualquer referência a mais. Nada mais sei, a não ser o que suponho.

A grande distância, o não ter visto mais o Pai, o não ter podido dizer-lhe um último adeus e uma última palavra, são dores irreparáveis. Sofreste mais de perto, querida irmã, mas não isto. E o que ele terá sofrido. Esforçado e paciente decerto, mas decerto também inconformado e profundamente triste. Perdemos a pessoa que mais nos amava, que melhor nos compreendia e a quem devemos elevadas lições de honestidade e isenção pessoal. Por isso não perdemos tudo. Apenas lamento, se ele o não sabia.

Chorando os mortos, penso nos vivos, querida, muito querida irmã. Penso em ti, na mãe cega, nos teus filhos, na vossa situação. Que posso eu fazer por vós? Eu sei (e é necessário que tu saibas também) que algo posso fazer. Continuo a ser o teu irmão infinitamento amigo, o teu irmão de sempre. Conta comigo, querida irmã.

À nossa pobre mãe, diz que vos escrevi algumas linhas, que sofro por não vos ter dado o muito que gostaria de dar-vos e que por isso me perdõem, se é coisa de perdoar. Diz-lhe mais, atribuindo-me a mim, todas aquelas palavras que entendas que a podem auxiliar. Do coração to agradeço, a ti a quem coube o leme de tão amargas situações.

Neste momento, quero dizer-te alguma coisa mais: olha para o futuro! Não descreias da vida e da alegria! Tem forças para recomeçar, se de recomeçar se trata!

Peço-te, querida irmã, que procures escrever-me algumas palavras, se não do que se passou (por te ser demasiado penoso) ao menos do que se passa. Eu não sei se esta carta te chegará às mãos, dada a pessoa que a escreve, dado o país de onde vai e dado que nem certo estou dos endereços para onde a envio (que em tempos me disseram ser o teu e o do Pai). Tenho porém uma certa esperança em que a venhas a receber. E, se a receberes, tenta escrever-me. A direcção é simples:
URSS - Moscovo 132
Hotel
Álvaro Cunhal

É o bastante e, tratando-se como se trata, de questões familiares e questões desta natureza, pode ser que a tua carta me chegue.

Querida, muito querida irmã: um grande, grande abraço, aquele que gostaria de poder dar-te neste momento de profunda tristeza.

Repito ainda: não desanimes, olha em frente, olha para a vida e confia.

Com a imensa ternura do teu irmão

Álvaro


(in Arquivos da PIDE/DGS - ANTT, processo E/GT 2673 - NT 1479, doc. 4)

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