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O mito da escravidão benevolente

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Uma das falácias mais caras a muitos conservadores e liberais brasileiros é a de que os negros nada têm a reclamar, sobretudo pelo fato de que os cativos de origem africana, no país, teriam sido bem tratados, em comparação com outras regiões em que prevaleceu o escravismo. É interessante lembrarmos, inicialmente, que variantes do mito também vigoraram, ou ainda vigoram, no sul dos Estados Unidos, onde diversos escritores, no século XIX, tentaram estabelecer uma comparação favorável entre o paternalismo dos senhores de escravos que dominavam o cenário econômico daqueles estados e a exploração implacável sofrida pelos operários industriais ingleses. Vamos iniciar aqui um roteiro de desmistificação, sujeito a ser ampliado pelas queixas dos ?fiéis? da velha tese.
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1-Como os africanos eram apresentados à ?maravilhosa civilização ocidental?:
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Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro- mercador africano de escravos- para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço de seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 119)

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2-Os escravos (e não-brancos em geral) eram alvo preferencial da repressão estatal:
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Pesquisas recentes confirmam que, de 1810 a 1821, pouquíssimos brancos, e na verdade também poucos não-escravos, foram presos pela polícia do Rio de Janeiro. Leila Algranti estudou 5.078 casos que caíram na jurisdição do intendente, de junho de 1810 a maio de 1821. (...) Numa época em que quase a metade da população do Rio era composta de escravos e não havia restrições ao tráfico transatlântico de escravos, não admira que 80% de todos os julgados fossem escravos e que 95% deles tivessem nascido na África. Outros 19% do total eram ex-escravos (?forros?, denominação às vezes dada informalmente a negros não-escravos, livres por nascimento ou alforria, mas nunca a brancos). Somente cerca de 1% era de indivíduos livres que nunca tinham sido escravos (60 dos 4.776 casos em que se pôde verificar a condição do acusado. (HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997, pp. 51/52)
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3-Os escravos no Brasil apanhavam mais do que seus semelhantes no sul dos EUA: .

As penas eram brutalmente severas, por menores que fossem as infrações, até mesmo pelo padrão das décadas seguintes e em comparação com a escravidão urbana em outros lugares. Contrastando com a norma de aplicar de 100 a 300 açoites por pequenos crimes no Rio de Janeiro, não raro seguidos de vários meses de trabalho forçado em grilhões, vem do Sul dos Estados Unidos o seguinte relatório de crimes e castigos de escravos em Richmond, Virgínia, em 1825: ?Furto de três dólares, 20 açoites; três cobertores, 15; quatro dólares, 25; vestido de algodão, 15 açoites; par de botas, 39; leito de penas, 10. (HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 55)
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4-Apanhar era regra, não exceção:
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Muitos [escravos] dão-se às pernas após uma punição injusta, ou para esfriar a cabeça de algum proprietário especialmente irritado, antes que a punição pudesse ocorrer. Tais fugas, por toda parte, mapeavam os limites da submissão. Florentino, um mulato de vinte a 22 anos, por exemplo, fugiu ao cirurgião-mor Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, da vila de Macapá, em 1852. Poucos dias antes tivera suas orelhas furadas e trazia ainda, denotando suplícios recentes, ?marcas de surras na bunda? e ?uma cicatriz de golpe ao longo do pescoço?. Também com marcas de castigos recentes, escapuliu, em 1860, o mulato Agostinho, do engenho São José, na vila do Rosário, em Sergipe. Com cicatrizes ?de castigo muito recente?, nas nádegas, Germano, ?pernas compridas?, dezessete para dezoito anos, e Gregório, dezesseis anos, escaparam, em abril de 1870, do engenho Califórnia, na freguesia de Serinhaém, em Pernambuco. O primeiro trazia ainda uma corrente no pescoço; o outro, queimaduras na barriga. Também no pequeno Cachoeiro, em Espírito Santo, com ?muitos sinais de castigos nas costas?, pôs-se no mundo, já no final do regime, o crioulo Roberto, um copeiro de 24 anos, baixo, reforçado, muito falante e madraço, amante do álcool e do ?belo sexo?. (SILVA, Eduardo e REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 65)
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5-Acomodados como bichos:
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Os escravos que conseguiam moradia melhor o faziam por iniciativa própria e com seu próprio trabalho, mas os que não conseguiam viver separados dos senhores estavam fadados às esteiras nos porões escuros e úmidos ou em cubículos minúsculos. Nas residências apinhadas do início do século XIX, não havia espaço nem para oferecer-lhes quartos moderadamente confortáveis. Para aquecer-se, enrolavam-se às vezes em cobertores ou colchas leves. Walsh conheceu uma família de seis pessoas em Botafogo que tinha cinqüenta escravos. Todas as 56 pessoas viviam na mesma propriedade. A única maneira de um senhor abrigar tanta gente era fazer os escravos dormirem em esteiras pelo chão da entrada, da cozinha e de construções externas. Walsh relata que para se manterem aquecidos, os escravos se enrodilhavam aos pés das escadas ?como cães?. Essas práticas contribuíam indiscutivelmente para a má saúde, quando tinham de dormir em áreas infestadas por ratos e insetos que transmitiam moléstias fatais, ou em lugares úmidos que aumentavam a suscetibilidade a doenças respiratórias. (KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 186/187)
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6-Morrendo como mosquitos:
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Na década de 1860 dizia-se que um fazendeiro que comprasse um lote de escravos, em boas condições de saúde, possuiria, após três anos, na melhor das hipóteses, um quarto dos escravos aptos ao trabalho. A duração média da força de trabalho era de quinze anos. Nas fazendas havia sempre alguns cativos momentaneamente incapacitados: cerca de 10% a 25%. A mortalidade infantil atingia 88%. Dizia-se que era mais fácil criar três ou quatro filhos de brancos do que uma criança preta. (COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Unesp, 1999, p. 287)
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7-Um retrato cru e realista dos senhores benévolos:
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Negros velhos e doentes, abandonados pelos senhores, eram vistos muitas vezes a perambular pelas estradas e a mendigar a caridade pública nas cidades. Tentou-se, várias vezes, sem resultado, aliás, cercear esses abusos. Em 1854, Cotegipe apresentava à Câmara dos Deputados um projeto que pretendia obrigar os senhores a sustentar e manter os escravos alforriados por doença. Em 1865, em São Paulo, uma lei provincial determinava: ?Todo senhor que, dispondo de meios suficientes, abandonar seus escravos morféticos, leprosos, doidos, aleijados ou afetados de qualquer moléstia incurável e que consentir em que eles mendiguem, sofrerá 30$000 de multa e será obrigado a recebê-los com a necessária cautela, sustentá-los e vesti-los?. Baldados eram os esforços dos legisladores. As Câmaras reclamavam, a imprensa protestava, mas os negros alforriados continuavam aos bandos, famintos, percorrendo os caminhos, importunando os viandantes e a população das cidades. Nada mais representavam como força de trabalho. Sua manutenção representava um encargo oneroso que bem poucos estavam dispostos a enfrentar. (COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Unesp, 1999, pp. 286/287)
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Diante do óbvio, só nos resta cuidar, em outras ocasiões, do inevitável desdobramento do mito, que é a crença na ?democracia racial?.
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