PÁGINAS DE JORNALISMO - O Distrito de Évora
N.o 12, 17 de Fevereiro
A crónica, hoje um pouco enfastiada, vendo-se sem notícias, sem horrores ou maravilhas a contar, sem que haja um amigo que tenha a abnegação de se matar para lhe dar dez linhas de original, uma mulher que se deixe raptar, para dar meia coluna, vendo o tempo chuvoso, vento, frio, vai pelos seus colegas do jornalismo, escutando por entre as colunas, espreitando pelos noticiários, arregalando os olhos para o mais pequeno artigo, a ver se encontra um facto interessante ou mesmo somente assombroso. Mas não encontra nada; o jornalismo português anda profundamente distraído. Não sei o que ele tem que o aflige, o caso e que, quando aparece, é desalinhado no fato, magro, sem graça, sem bom senso, esquisito e aborrecido. Julga-se que, no seu quarto, ele e afável, jovial, galhofeiro, letrado, eloquente, erudito; porém, quando vem para a luz do dia, vem despido destas belas e nobres qualidades. E simplesmente maçador e desengraçado. Nem uma anedota, nem um escândalo inocente, nem um enredo de comédia, nem uma mentira. Porém, a mentira acabou. Dantes sim, ainda havia uma mentira geral que tinha representantes por esse mundo a quem se chamavam mentirosos; hoje não, nada há. A mentira é filha do espírito, e morreu com seu pai.
N.o 13, 21 de Fevereiro
O ar está belo, o céu límpido, a temperatura afável: nestes dias a crónica torna-se contemplativa e mergulha-se na natureza. Porque digamos uma suprema e inatacável verdade: a crónica é de combate; há muita gente que se persuade que estas futilidades que se chamam crónica, folhetim, noticiário, variedades, não tem importância num jornal político, não pesam na opinião, não atacam e não combatem. É um erro. Num jornal de oposição a cousa que mais incomoda o governo é a crónica: ela é que é temida, evitada e seduzida; nos países bárbaros e pouco conhecidos, onde o jornalismo é uma especulação, e como tal comprado e vendido, um governo que na sua politica procede por corrupção, a primeira coisa que faz é comprar os vários cronistas, folhetinistas, noticiaristas, escritores de variedades, os amenos, como se diz.
E tem razão: a crónica é para o jornalismo o que a caricatura é para a pintura: fere, rindo; espedaça, dando cambalhotas; não respeita nada daquilo que mais se respeita; procede pelo escárnio e pelo ridículo; e o ridículo em política é de boa, é de excelente guerra.
O reinado de Luis Filipe foi demolido, não pelos jornais, nem pela democracia, nem pelos socialistas, nem pelos filósofos, nem pelas revoluções foi demolido pela caricatura.
A caricatura, como a crónica, é uma arma terrível; ataca mais perversamente e defende-se com inocência: dá uma grande punhalada, depois toma um ar de candura e fica-se, toda risonha, fazendo acenos e afagos; e depois, como se há-de combater se está estabelecido nos costumes que ela não pode ser tomada a sério? Assim, por exemplo, vá lá um governo conter pelos meios parlamentares a crónica dum jornal que revelou que o ministro de tal tinha a omoplata disforme? E impossível. Ela não respeita nada, e fala nas cousas que o indivíduo mais ama.
Um ministro, por exemplo, abre um jornal: lê o artigo de fundo, boceja; o artigo ataca-o: diz que ele vai levando a pátria ao abismo, que esbanja a fortuna pública, que é amaldiçoado pelas almas honestas, etc. O ministro boceja; ele ouve aquilo todos os dias, está cansado de escutar e sorri-se, cumprimentando, quando alguém lho vem bradar. Por isso não se altera. Mas passa adiante; na politica estrangeira, também boceja; ie correspondência do Reino em que o fulminam: boceja; então passa a crónica, ie, lê mais, ie avidamente, dá um pulo, empalidece, dá um grito, esmorece, sufoca-se, passeia furioso: o que viu? Eu sei? qualquer cousinha: viu-se descrito, com o nariz bicudo e joanetes nos pés; vê a notícia de que no seu último jantar várias pessoas tinham encontrado bichos nos legumes, e outros, cabelos na omelette, pelo que um cavalheiro lhe bradou:
- Sr. Ministro, eu gosto das omelettes calvas!
Vê-se mais acusado de trazer chinó, e de não lavar a cabeça, e de se deixar espancar pela mulher. etc. Aquele homem, que a artigo de fundo não abalou, foi fulminado pela própria crónica. Daí, manda imediatamente comprar o cronista; e daí, o cronista manda-se imediatamente vender. Isto, nos países bárbaros. Entre nós, não.
Depois, a crónica tem estas vantagens sobre o artigo de fundo: é mais lida; o artigo de fundo é apenas lido por três sectárias, por cinco caturras, por duas conselheiras velhas; [não] faz rir; o artigo de fundo não tem esta qualidade: faz, quanto muita, sorrir, por ver bradar um homem no deserto.
O artigo de fundo parece um excêntrico caturra, velho filósofo que fosse para um baile de mascaras e começasse bradando, com gesto trágico, e com voz cava, um sermão aconselhando a moral, a quietação da alma, a serenidade do espírito, a virgindade do carpa e isto entre os gritos, as chufas, a música, o canto, os empurrões, os beijos, todas as doidices, todas as jovialidades.
A crónica, essa, parece-me uma robusta e amável rapariga, moral e severa, que fosse para o mesmo baile de mascaras, mas, em lugar de fazer prédicas de moralidade, se misturasse com a dança, e, metendo a ridículo, separando os pares, escarnecendo, apagando as luzes, espancando a polícia, picando com alfinetes as damas e arrancando os bigodes aos cavalheiros, pusesse todo o baile em debandada e conseguisse extinguir a orgia. Era assim que se podia conseguir que findasse a loucura.
Como o velho queria, não. Isso conseguia que começasse o tédio.
Isto vem para dizer que hoje a crónica tencionava encetar esta vida de ataque, de ironia, de fugida galharda; mas viu o céu tão lindo, o ar tão puro, a temperatura tão afável, que se foi a tomar um longo banho de sol e de azul, esquecendo a política e as ambições da terra.
1 comentário:
Muito refalar com Eça, muito bom!
Fica bem!
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