sexta-feira, 9 de julho de 2010

José Gomes Ferreira Uma testemunha participante do Século XX



N.º 1908
24.Junho.2010 -Avante
  • Manuel Gusmão

José Gomes Ferreira
Uma testemunha participante do Século XX
.
Nasceu a 9 de Junho de 1900 e morreu a 8 de Fevereiro de 1985, este poeta atento e solidário, fabulador imaginoso e dotado daquela sabedoria que vem de saber olhar para si próprio com ironia e humor. Autor de uma obra plurifacetada e, entretanto, marcada por uma intensa e complexa unidade intencional e objectiva, José Gomes Ferreira é sobretudo um poeta, se pudermos entender a palavra como indicando aquele que exerce um ofício de palavras que afeiçoam um mundo e põem em contacto aquelas muitas e desvairadas gentes que em comum vivem.
.
A sua obra, para além da poesia, conta com vários livros de ficção em prosa: contos, novelas, e um romance, histórias e vagabundagens, crónicas, Aventuras de João sem medo, panfleto mágico em forma de Romance (1963), O Mundo dos Outros (1950), Tempo escandinavo, contos (1969), O Irreal Quotidiano, histórias e invenções, 1971; escritos diarísticos e memorialísticos como Imitação dos dias, diário inventado (1965) Dias Comuns, diário, I- IV. (volumes inéditos V a XX) A memória das palavras I ou o gosto de falar de mim (1965) e Relatório de Sombras ou a Memória das palavras II (1980).
.
A poesia começou a reuni-la em volumes que se intitulavam Poesia+ um número de série (Poesia I, II, até Poesia VI); para passarem depois a chamar-se Poeta Militante 1.º volume, título que um subtítulo significativo e provocante passou a acompanhar (Viagem do Século Vinte em mim) e a ostentar a circunstância de se tratar da «Obra Poética Completa» ou das «Obras Completas de José Gomes Ferreira». 
.
Título e subtítulo são marcas de algo que é fundamental na sua poética, ou seja na sua «teoria» em acto da poesia. A palavra «militante» vem do vocabulário político ou da política. Sendo a qualidade primeira e distintiva deste poeta, ela significa que o poeta tem com a poesia e a imaginação verbal uma relação de compromisso forte, de fidelidade activa, de atenção e cuidado. Mas por outro lado a palavra guarda da sua pertença ao vocabulário político, precisamente a ideia de que a relação com a poesia e o mundo é também uma relação política.
.
O subtítulo, por sua vez, atribui ao poeta e à sua poesia um papel de testemunha, singularmente formulado: não é o poeta que viaja ao longo do séc.XX é esse século que viaja no poeta. O que pode isto querer dizer? Por um lado, o poeta não é, enquanto olhar e acção específicas e exclusivas, a instância e o agente fundamental. Por outro lado, é como se fosse o próprio século que, desenvolvendo-se no espaço interior do poeta («Em mim»), deixasse nele impresso os seus acontecimentos, os seus fantasmas, os seus gestos e jeitos, no espelho ou na matéria impressionável, como se diz da película de um filme. Idealmente, o poeta seria uma espécie de superfície ou de caderno de registos que recolheria os sinais que a viagem do século neles viria inscrever.
.
A passividade impressionável do sujeito é, entretanto, muito mais aparente que real. Porque se esse espaço, que a expressão «em mim» assinala, é uma espécie de teatro íntimo, nele ouvem-se os ecos do existir comum, das lutas e dos combates colectivos; e de várias formas o poeta assume-se mais do que como espectador, como testemunha e testemunha-participante, ou seja, como participante naquilo mesmo de que dá testemunho.
.
***
Ao longo da sua vida sempre foi daqueles que não aceitou o fascismo e lhe resistiu; com o 25 de Abril galvanizou-o a esperança na emancipação colectiva. Por isso sofrerá com o desencadear da contra-revolução.
.
A 20 de Maio de 1979, participa em Baleizão, na homenagem a Catarina Eufémia. Para ele como para muitos outros escritores e artistas, intelectuais, democratas e revolucionários a Reforma Agrária era um exemplo claro e maior da justeza e da necessidade do processo revolucionário, da capacidade dos trabalhadores assumirem a organização do trabalho, controlarem as condições de produção, da confluência das solidariedades, da efectiva transformação revolucionária do mundo e da vida.
.
Nos finais de Setembro desse mesmo ano (1979) participa em Montemor no funeral de dois trabalhadores rurais, António Maria Casquinha e José Geraldo «Caravela», ambos da UCP Salvador Joaquim do Pomar, assassinados a tiros de metralhadora pela GNR em 27 desse mês, na herdade de Vale de Nobre, pertencente à UCP Bento Gonçalves, a cujos trabalhadores iam prestar solidariedade. José Gomes Ferreira foi como disse ao funeral e escreveu o poema XV da sequência «Termidor Errado».

(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-novo pela Guarda)

1
Aqui
Nesta planície de sol suado
Dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui onde
agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas

2

Quando os dois camponeses desceram às covas,
Ante os punhos cerrados de todos nós,
Chorei!

Sim, chorei,
Sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
Para que serviria ser poeta
Se não chorasse
Publicamente
Diante do mundo?

O vergonhoso, antidemocrático e anticonstitucional ataque à Reforma Agrária fazia as suas primeiras vítimas; José Gomes Ferreira apercebia-se disso e na sua poesia como com a sua vida dava testemunho disso e protestava. Poeta da emoção, enquanto movimento afectivo e moral, indignava-se.
.
Em 29 de Fevereiro de 1980, este velho militante de esquerda, este homem de coração grande e generoso, companheiro. desde há muito, da longa jornada do PCP e dos seus militantes, desloca-se à Soeiro Pereira Gomes. Tomara uma decisão e vinha cumpri-la: inscreve-se então no Partido Comunista Português. Quem o recebeu foi o camarada Carlos Aboim Inglês que redigiu a notícia que o Avante! publicaria na sua edição de 6 de Março.

José Gomes Ferreira
Camarada!
 Dia 29 de Fevereiro de 1980, pelas cinco e meia da tarde, chuvosa, caminhaste pelas ruas com o passo firme da tua alma grande e vieste bater à porta da nossa Casa, na Soeiro Pereira Gomes. Na fala directa de quem pensou e se decidiu em consciência disseste enxutamente ao que vinhas: que te aceitássemos como membro do Partido Comunista Português. Aos 80 anos. Em coerência com toda uma vida, repensada e assumida. Dando resposta combativa a um presente que não é fácil. De olhos postos, juvenis, no futuro que faremos, que fazemos.
.
As tuas palavras, o teu acto, tinha aquele peso e asas que pões em tudo. Simples, como as coisas verdadeiras do coração. Como um acto lúcido que se cumpre na hora, por determinação de homem independente que sempre foste e serás. De homem solidário que és, de raiz – poeta militante, companheiro dos homens que sofrem, sonham e lutam. E que, juntos como os dedos da mão, de mãos dadas, hão-de chegar ao fim da estrada e depois hão-de rasgar as estradas novas de Portugal livre, independente, socialista, para os homens novos que estão nascendo já.
.
Ficámos de te dar resposta. E. ressalvando embora a pública notícia, que não está nos nossos usos, mas que a luta aconselha nestes tempos de promoção, de crescimento necessário, aqui estamos para te responder dizendo apenas, com respeito e alegria compartilhada decerto por todo o grande colectivo fraternal do nosso Partido – que te saudamos, camarada! Abril vencerá!

É este mesmo camarada que em representação do PCP profere algumas palavras no funeral de José Gomes Ferreira:

Amigo José Gomes Ferreira, amigo de nós todos:
.
«Homem moral» e «poeta dos factos», como de ti mesmo disseste um dia – foste. E por isso mesmo foste muito mais também, tanto, que me é curta a voz para dizê-lo. Irmão de sangue gémeo do teu povo, respiração solidária sempre com a sua - tu foste voz alta das angústias, sofrimentos e trabalhos de sucessivas gerações de teus irmãos: tu foste cronista fiel dos nossos sonhos quotidianos e de toda a vida; tu foste uma luminosa brasa ardendo na longa noite da resistência antifascista e anti-obscurantista; tu foste um dos cabouqueiros tenazes da madrugada de Abril: tu foste um sábio e prático visionário do futuro.
.
Tiveste sempre os pés bem assentes, na concreta terra nossa colectiva, viveste sempre de mãos dadas - e por isso, poeta inconfundível, original, único, soubeste falar-nos na nossa linguagem de homens comuns terrenos, daquilo que o teu alto voo permitia descortinar além das nuvens e dos estreitos horizontes.
.
Foste um homem bom, um homem simples, corno são os homens realmente grandes. Foste um amigo verdadeiro de inúmeros amigos. Foste inimigo intransigente de filisteus e abutres vários.
.
Homem grande do nosso povo, figura grande da nossa cultura, cidadão eminente da nossa identidade nacional, vulto com dimensão à escala da humanidade - por isso nós todos te admiramos, nos orgulhamos de ti, e te amamos fraternalmente.

Minhas Senhoras e meus Senhores,
amigos, camaradas:

Foi este homem íntegro, este velho e sempre jovem companheiro das heróicas jornadas, que no dia 29 de Fevereiro de 1980, num tempo que então visivelmente se fazia mais agreste e perigoso para nós e para Abril - foi este homem que veio pelo seu pé, com a mesma determinação e naturalidade, coerência e coragem de toda a sua vida, até nós, ao Partido da classe operária portuguesa, e nele ingressou inteiro com a sua modéstia e grandeza. Não buscava a glória, porque já era glorioso. Vinha apenas dar-se, como os comunistas se dão. Ao seu povo, à nossa grande causa emancipadora dos homens.
.
Sabemos que ficámos, nós e ele, mais ricos e mais fortes nesse dia, para esta luta que continua e hoje tem de continuar com acrescida decisão e confiança. Para ele, foi o acto cívico culminante da sua vida de homem independente até à morte, foi a lógica opção definitiva da sua obra de poeta militante. Militante de raiz, de flores, de frutos, de sementes.
.
Creio que foi para muitos mais uma lição exemplar que nos legou. Para nós, comunistas portugueses, foi mais uma imensa alegria.

Camarada poeta Zé Gomes

Viemos aqui acompanhar-te para o derradeiro adeus. Mas nós não podemos, e não queremos, dizer adeus aos nossos irmãos. E porque em cada um de nós, em todos, se manterá vivo algo da tua obra, património que é do nosso povo e da nossa pátria; porque em nós, em nossos filhos, pelos séculos, perdurará infatigável a tua esperança militante - ainda não é hoje que te diremos adeus. Dizemos-te, tão-somente, até amanhã, camarada - porque tu hás-de ir connosco até ao fim da estrada, até esse amanhã de liberdade, de justiça, de felicidade pelo qual lutaste toda a tua vida, pelo qual continuamos a lutar hoje, pelo qual lutaremos sempre, e que havemos de alcançar e construir. Abril vencerá, Abril frutificará, podes estar certo disso, Zé Gomes.

Como reparamos, o camarada Carlos Aboim Inglês promete que a memória de José Gomes Ferreira não se perderá nem desvanecerá, porque ao escolher o lado em que queria estar e esteve – o lado da classe operária, dos trabalhadores e do povo português – José Gomes Ferreira conquistou um lugar na nossa memória; e nós, comunistas portugueses, somos aqueles que não esquecemos os nossos e todos aqueles que nos acompanharam no trabalho, no protesto e na luta, no projecto e na esperança de uma comunidade de trabalhadores soberanos, uma comunidade emancipada que será a única capaz de citar os nomes de todos os seus.
.
Hoje ao recordarmos José Gomes Ferreira, vinte e cinco anos passados sobre a sua morte, recordamo-lo como um poeta intensamente solidário, sempre que dizemos um poema seu. A sua poesia aí está à espera de ser lida ou relida. A seguir à morte, um véu espesso de descaso e esquecimento costuma, entre nós, esconder a obra de muitos poetas. Sobretudo, quando é o caso daqueles que durante a vida,escolheram estar ao lado dos trabalhadores, acontece que uma certa historiografia oficial não revela interesse por lê-los e valorizá-los. Entretanto, no caso de José Gomes Ferreira, a sua obra recomeça a encontrar a releitura atenta, inteligente e competente de personalidades da crítica de gerações universitárias mais recentes.
.
Registem-se dois exemplos. O primeiro é o do ensaio «Poesia e Autografia em José Gomes Ferreira» que Rosa Maria Martelo, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, integra no seu livro Em parte incerta – estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea (2004). Entendendo a obra de José Gomes Ferreira «como um extenso auto-retrato, constituído através de um jogo de remissões extremamente elaborado e complexo», a autora estuda as relações existentes entre os versos e os parênteses que surgem no início ou no fim dos poemas de José Gomes Ferreira, e falará do «reconhecimento da existência de uma relação inextricável entre poesia e circunstancialidade, num sentido que abrange quer acontecimentos políticos de fortes repercussões nacionais e mundiais quer acontecimentos aparentemente irrelevantes como "o pontapé numa pedra, o medo de atravessar o corredor às escuras, a flor pisada (…) e principalmente essa coisa nenhuma que é o alimento dos poetas vorazes"». E continua:
.
«Tão atenta ao quotidiano mais imediato ou pessoal quanto aos grandes acontecimentos político-sociais que marcaram o século XX, a obra poética de José Gomes Ferreira abarca um campo de enorme diversidade, encontrando como condição de unidade precisamente o auto-retrato do poeta militante, sendo este último entendido como «um homem que cumprisse apenas o ofício natural de reagir poeticamente perante a vida».
.
O segundo exemplo é o de uma tese de doutoramento, apresentada e defendida por Carina Infante do Carmo, em 2007, na Universidade do Algarve, onde é actualmente professora, e que foi recentemente publicada, já em 2010, A militância melancólica ou a figura de autor em José Gomes Ferreira.
.
Estudando por sua vez o carácter autobiográfico, a diarística e as memórias na obra de José Gomes Ferreira e dedicando atenção aos modos de construção da sua poesia e ao jogo com a figura do autor, acabará assim as suas «eflexões finais»:
.
«[…] Em José Gomes Ferreira funciona «sempre o mesmo pêndulo de arame no coração» a repercutir o fulgor iluminado da esperança e a fantasmagoria das sombras e do bolor. Por essa via, a personagem do autor acompanha e integra o movimento perpétuo do mundo, sem esvaziar ou desligar a memória pessoal da colectiva e, naturalmente sem escamotear a invenção a que todo o exercício autobiográfico dá lugar.»
.
Continuaremos a ler-te, camarada.
 .
.

Sem comentários: