quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Fialho de Almeida: "O Funâmbulo de Mármore"


O FUNÂMBULO DE MÁRMORE 

A contessina sentiu-se triste nessa manhã, aborrecida da quietação lânguida do  seu boudoir,  da  falsa  pompa  de vegetação  dos  seus salões-estufas,  da  vida  contemplativa  dos  aquários de  cristal-rocha,  da  atmosfera  perfumada  dos  salões e das alcovas,  onde  o oxigênio  vivificante  se  corrompe,  por entre  a  subtileza das exalações de opopanax everveine, contidas nos frascos boêmios,  todos facetados e cintilantes.  Mandou pôr  o cupé,  um  pequenino cupé  estofado de carmesim, grandes fivelões de madrepérola floreteados; escolheu um  vestido claro,  de  um  estofo liso,  grandes laços vermelho e branco,  apertado em longa  cuirasse,  com uma  cauda  aristocrática, que  deixava  no ouvido um doce frou-frou inebriante.

E com um gorro de penas, de forma excêntrica, uma tira de gaze a meio rosto,  atada  na  nuca,  penteado  simples,  em que destacavam contra  a  luz uns  pequeninos  anéis  dos seus cabelos  castanhos,  sobre a  cara  de castidade  sonhada,  com uma  camélia  franca  no seio, a  contessina saltou para  o carro.  Era  sábado,  nos  dias lúcidos  de Maio.  O  cocheiro teve  ordem de seguir ao  longo dos boulevards, atulhados de gente ativa que tumultuava nos passeios, nos armazéns, nas casas de modas e nos ateliers, vivamente, alegremente, raça de gigantes e de artistas que ia fecundando as indústrias com o poder da sua  violenta atividade.  

Na Bolsa, à  porta,  junto  do guarda-vento,  viu o conde  de M.,  que  argumentava  com o  judeu W.  sobre questões  de fundos.  Mais  adiante,  cumprimentou a jovem C., que apartava num livreiro as últimas publicações  de crítica e de estética. Parou no atelier de Carlo Bórgio, o pintor de quinze  anos, que fizera ruído com um quadro impressionista, repudiado pelo júri de  uma exposição artística em Roma. Encontrou lá a fina flor do mundo culto da  cidade:  o médico  F.,  a  quem um  trabalho  sobre doenças cardíacas abrira  as  portas das mais célebres academias europeias; Henrique de R., o folhetinista  mais delicado da Itália; Raimundo Conti, o crítico por excelência, que ditava a  lei do bom gosto, com um bom senso admirável, e mil personagens célebres  do grande mundo ilustrado e do grande mundo elegante.

O pintor tinha olheiras — a contessina reparou nisso —, não afastara o cabelo  ainda  e  o seu trajo de manhã,  cheio  de negligência, o  seu  largo e branco  colarinho decotado,  deixavam adivinhar pela  curva  do seu pescoço forte e  levemente sanguíneo,  cor-de-rosa  claro,  um  corpo escultural  de atleta,  vigoroso e saudável, criado à larga no puro ar balsâmico dos campos, ante a  vastidão  contemplativa  do mar.  Não havia  no  atelier nenhum  quadro novo.  Apenas  sobre o cavalete,  um  cartão esboçado a  traços.  Carlos  fumava  cachimbo; a  contessina  achou-o por isso  detestável,  e saiu sem lhe haver  sorrido  como  costumava.  Sem ela  reparar,  a  camélia branca que levava  esfolhou-se  ao  sair,  maculando  a  alcatifa  escura  do atelier com as  pétalas  imaculadas, brancura láctea, cheia de pequeninos veios caprichosos, como as  ruas do mais intrincado labirinto.

Deixou-se cair outra vez nos coxins do cupé, e mandou rodar para  a galeria  Médicis, no extremo ocidental da cidade.  

Ia fatigada, nervosa e indisposta. Quanto vira lhe apareceu vulgar e indigno da  sua  atenção.  Mirou no  espelho que ficava  em frente,  atrás da  tábua  do  cocheiro,  a  sua  flexível  figura,  magra  e branca,  o seu rostinho fresco,  o seu  belo perfil rafaelesco,  de uma  finura,  de  um  contorno  verdadeiramente  singulares pela sua pureza, pelo se conjunto, a um tempo audaz e tímido. Uma  ruga  impercetível  se  avincava  verticalmente na  sua  testa.  E impacientou-se,  achou que estava feia, trigueira, mal vestida. Então inclinou a cabeça para trás,  sobre os  coxins,  deixou pender o corpo também,  com um  abandono,  uma  morbidezza  tentadora,  estendeu-se  quase  no  cupé,  indolentemente,  sem  vontade,  sem palpitação e sem coragem,  com desejos  de  se espreguiçar,  de  sonhar coisas  extraordinárias  e fantásticas,  de correr aventuras sobre  o mar,  num cutter ligeiro,  pintado de branco,  com jovens  marinheiros escoceses,  loiros  e atléticos,  de  uma  candura  virginal,  que cantassem as  árias  das  montanhas, baladas suaves e frias, onde a manhã rompe e os galos cantam, e  se  ouve bater horas o sino do castelo em  ruínas,  ao descer da  velha  ponte  levadiça,  quando o couraceiro fantasma  recolhe de lança  ensanguentada,  no  meio dos coros das vítimas.

E sob o domínio da  sua  áurea  fantasia  cerrou os  olhos e começou a  viver  naquele devaneio que  interiormente  ia  bosquejando.  O  cupé parou enfim,  desceu lesta no átrio de mosaico e penetrou nos salões abertos à curiosidade  dos amadores.

Sobre os cavaletes,  sobre  degraus  e pelas  paredes,  patenteavam-se  os capid'opera dos grandes mestres da Renascença, do Perugino, de senza error, de  Fra  Angélico,  de Sanzio,  do Buonarroti,  do Ticiano,  do Tintoreto,  de  Dominiquino,  de Júlio Romano, dos Carraches,  de Montagna  e todos os  primores das escolas alemãs e flamengas: cenas de interior, trechos de ménage  e cervejaria, as paisagens realistas dos Holandeses, de céus úmidos e flocos  de nevoeiro, onde o verde alcança todas as gradações vegetais, e o sol, como  uma brasa metida em óleo, se extingue vermelhamente, entre fumaradas que  passam. Roçagando a  sua  cauda  elegante,  a  contessina  passava  sem parar  diante dessas soberbas telas, que resumiam todo o ideal de mais de uma raça,  demarcando  as tendências  e aspirações,  um pouco  modificadas  havia  muito,  na  evolução  social do último século. A cada  passo,  lhe sorriam dentro  de  molduras  de pau-rosa,  de prata,  de sândalo,  bronze ou talha, uma madona  casta,  com o Bambino nos braços,  um  mártir amarelecido e chagoso,  uma  Vênus concupiscente  e nua,  um  Cristo  dolorosamente lívido,  atado ao  madeiro da  ignomínia,  um  guerreiro sob  a  armadura  cintilante das grandes  idades heroicas. E movendo o seu leque de frias plumagens, todo constelado de cintilações preciosas, com o binóculo de ouro na pequenina mão calçada  em peau de Sudde,  o olhar distraído passeando sobre os  aspetos  sem os  distinguir nem os  fixar,  a  contessina  perdia-se  entre os  amadores  oficiosos,  entre os artistas obscuros de ambos os sexos, que tiravam cópias, vestidos nas  suas túnicas  talares  de atelier,  o olhar atento  e  perscrutador  cravado nos  modelos, com uma concentração nervosa e extática. Não tinha já admiração  para  queimar,  como  um  perfume enervante,  ante  tamanhos primores acumulados.  Desde pequenina  conhecia  aquelas magníficas  pinturas,  e  escutara as exclamações de uma admiração mais ou menos convicta, soltadas  pelos entendidos ou pelos pedantes, ao longo dos vastos salões esplendentes  da  galeria.  Mas a  verdade é que os modelos  clássicos,  as sacras-famílias do  colorido éclatant, sempre na mesma pose e composta das mesmas figuras, as  cenas bíblicas repassadas de unção convencional e misticismo fradesco,  não  iam direitas,  pela  sua  maneira  e pela  sua  ideia  simbólica,  ao seu coração  modernamente  educado  de artista,  à  sua  ária  expansiva  de meridional,  tão  cheia de amor pela verdade e tão penetrada da sedução esquisita das pompas  de uma natureza luxuriante e escorrendo de cor, e dos característicos hábitos e  índoles pitorescas de uma raça vigorosa, cheia de culto, de forma e de ideal. A  sua  predileção  artística  era  alguma  coisa  como o  aroma  exalado por quanto  contemplara  em viagens,  estudara  em bibliotecas,  e sentira  em convivência,  aroma que rescendia em espiras balsâmicas e suavíssimas, numa palpitação de  borboleta  irisada  num  hausto  de liberdade sublime,  extraordinária  e  sonora.  Compreende-se que o seu temperamento lhe exigisse uma arte que se pudesse  admirar sem profanação, e se pudesse amar sem remorso, que falasse às suas  exigências e aos seus caprichos, sem incluir a recordação dos velhos martírios, apoteoses entre  serafins  e nuvens,  mistérios idiotas e  teológicos, em que  se  contrariam, por princípio de carolice, as leis mais lógicas e simples da ciência,  da criação e da espécie.

E numa disposição rebelde, fatigada das saturações da cor, das exuberâncias  sistemáticas de  musculatura,  das garridices da  forma,  da  abundância  de  pinturas,  voltou para  trás antes  de  chegar  ao fim,  entrou no  carro  cheia  de  spleen e abatimento, e mandou rodar para casa.

Atirou o chapéu mal entrou no boudoir; a camareira trouxe-lhe o roupão de  linho de Manchéster com que costumava  trabalhar;  e envolta  no tecido de  listas graves, a fresca figura de uma palidez serena, foi tomar assento no seu  atelier,  diante  da  estátua  de  mármore  branco, que começava  a  sair  ainda  indecisamente da  bruta massa  de pedra,  ferida pelo seu cinzel  fantasista  de  uma graça e de uma originalidade cativantes.

Havia tempos que trabalhava nessa obra, e com que amor!..   

A vida das outras mulheres era-lhe irritante, apertada num pequeno cinto de  conveniências e vulgaridades. Pouco conhecera da família, não sabia admirar o  que nas mães se  chama uma.  missão heroica  e,  nas  mulheres em geral, os  deveres próprios  do sexo.  Tinha percorrido  o mundo sozinha. A  quantos  a  amaram nesse período, sorrira sempre. À sua natureza excêntrica apareciam  deformados  em esgares  ridículos os  galãs modelos.  Fatigava-se  depressa.  Demais tinha  um  intuito finíssimo de artista,  altivo  de mais  para  aceitar  lugares-comuns. Mas havia na sua vida este episódio — uma noite, num circo  de Nápoles, vira fazendo equilíbrios num globo um rapaz vestido de meia, ágil  e elegante. Nunca pôde esquecer aquela figura que surgira pela primeira vez à  sua imaginação, como eflorescência rara, sonhada entre incoerências de febre.  

Procurou depois,  mais  perto,  essa  soberba  organização que fizera  na  sua  sensibilidade como  um lampejo instantâneo, a fascinação sombria e fatal do  jettatore.  Pouco a  pouco,  a  sua  mente apoderou-se  daquela  imagem  fascinante,  correta  como não vira  outra,  juvenil como não sonhara  igual.  Todas as noites ia ao circo ver trabalhar o equilibrista: dominava-a a soberba  atitude do funâmbulo,  livre,  impetuoso  e colossal.  Nela  sentia-se,  de fato,  toda a  opulência  de  uma  seiva  que irrompe,  em circulação vigorosa  e   regularíssima;  todos aqueles  fortes membros  elásticos,  flexíveis e aptos  aos  movimentos mais contrastantes,  se  sentiam palpitar de saúde,  de vida  e de  beleza, ritmo sonoro, cheio de presteza e propriedade.

E aquela apetitosa figura de adolescente trigueiro, os olhos esmaltados de uma  serenidade  de deus, plástica irrepreensível  e firme,  apoderaram-se da  contessina,  com um  ímpeto,  uma  violência  que tocavam  os  paraxismos da  loucura.

Começou então uma  existência  noturna,  roubada  de alegrias,  cheia  de  sobressaltos,  terrores e prazeres.  Zampa, o  funâmbulo,  levava  os dias caído  entre  garrafas de conhaque e fumaças de  charuto.  Além disso,  tinha gordos  pedidos de dinheiro, teimosias de parasita  e surdas raivas de  vadio.  Era  exigente  como um  facchno e brutal  como um  barqueiro:  a  devassidão  exasperada  que  busca  viver  fora  do tédio adquirido por  longos  dias de  desordem,  e mediante fantasias realizadas à  custa  de grandes despesas.  Ela  adorava-o; às vezes tinha medo.

Sentia-lha  as mãos grosseiras,  calejadas do trapézio,  a  voz rouca,  o hálito  alcoolizado, um cheiro a charuto que se metia pelas mucosas dentro. Gostava  porém  de o agarrar  pela  cintura,  de  lhe  pender do  pescoço nu com todo  o  peso do corpo, de se entregar com um grande soluço dilacerante, vergada para  trás,  cabelos  soltos e  a  túnica  rasgada  de alto  a  baixo,  com a  folha  de  um  punhal. E era com uma delícia inexplicável, aguda e cheia de frêmitos, que lhe  tirava a capa, quando Zampa chegava do circo, ainda com os fatos da arena,  couraçado na sua beleza superior e intangível.

O espetáculo de um corpo fortemente criado embriagava-a de uma aspiração  criminosa  e de uma  animalidade fatal:  queria-o!  Algumas vezes  Zampa  não  vinha e as horas da noite deslizavam para a pobre leviana em suplícios atrozes  e vacilações eternas. Então saía a procurá-lo, só, envolta numa dessas mantas  de cores vivas, que Livorno produz, um punhal no cinto e pálida como uma  esperança  pisada  à  beira  de um  esquecimento.  Já  podia  entrar  nos  lugares  lôbregos onde tilinta o dinheiro dos vícios cobardes, para arrancá-lo do jogo, embriagado  e vil,  falando uma  aravia brutal.  Os  convivas faziam-lhe toasts,  cobriam-na  de  sarcasmos,  prenhes de insolência  de  bordel.  Nestas lutas  supremas,  parecia  que  a  sua paixão se avigorava;  queria  explicar  a  si  mesma  porque razão esse palhaço a dominava e a prendia, fazendo dela uma escrava;  refletia  então insurgir-se  contra semelhante envilecimento,  readquirir a  sua  liberdade de  outrora,  a  sua  franca alegria  de  criança;  impossível!  Quando  tratava  de expulsar de si  o ébrio,  com desprezo  veemente e  indignação  explosiva, como se levantava diante dela a esplêndida figura de arcanjo que era  o seu desejo, o  seu gozo, o  seu deslumbramento  e a  sua  perdição;  e era  sempre o mesmo olhar plácido que ela contemplava, a mesma carne vigorosa,  de uma  tonalidade  opulenta,  a  mesma  linha  soberba  do perfil,  a  mesma  postura de academia, altiva e forte,  como a  de um  gladiador  que  triunfa, na  arena onde espadana o sangue dos mártires e se espedaçam corpos frementes  de vítimas obscuras e  trágicas.  Em outros dias,  à  força  de súplicas,  Zampa  ficava: era uma festa. Saíam de carruagem para o campo, lá passavam a tarde  no meio da poderosa eflorescência dos arbustos, no silêncio das villas brancas,  em torno de que se alastravam vinhedos, sob os nogais de um verde quente  ou entre perfumes  acres  de  pinheiros  que  gemem o seu cântico desolado.  Jantavam sobre a relva, como bons lavradores; ele não bebia então. Tudo em roda  estalava  de risos  metálicos,  finamente  timbrados;  era  bom  viver  assim.  Naquela  afinidade de  sensações tranquilas,  a  alma  dele  parecia  irradiar uma  delicadeza poética. A contessina descobria-lhe predileções  de paisagem,  observações sentidas, fortes destaques  de  inspiração,  uma  docilidade de  caráter,  mesmo.  E era  feliz,  esquecida de angústias  de outras horas,  com  a  mente povoada de sonhos de ouro. Se fosse assim sempre! Se fugissem para  um país remoto, o Oriente, num mosteiro em ruínas!. . E figurava minaretes  tártaros, as grandes túlipas das cúpulas, rendas frágeis dos pórticos árabes, o  céu profundo e cálido,  onde  a  miragem  inverte os  panoramas,  paineiras  seculares, erguidas entre  casas quadradas  como dados colossais,  albornós  brancos, barbas pontiagudas e tez parda — como nos desenhos de Bida. Ou numa herdade perdida no seio dos Apeninos, longe do bulício e à beira de um  lago,  num chalé  vermelho,  entre árvores.  E pelas madrugarias  róseas iriam  tomar os leites perfumados de turinas brancas; os sinos das ermidas tocariam  o Angelus,  no meio  de  um  coro de  pássaros;  a  natureza  seria  de  uma  sonoridade cristalina, perlada de orvalhos frescos e cálices de jacintos, cor-de-rosa.

O  seu lirismo  abstraía-se  em  idealidades  azuis, em  grandes  e nebulosas  viagens, em que destacava o grupo formado por Zampa e por ela — um pelo braço do outro.

Um domingo, ele não voltou. No dia seguinte, encontraram-no apunhalado na  casa  de jogo.  Foi  quando  começou a  estátua.  Dentro de  poucos  meses,  o  mármore, desbastado, realizava a criação mais lúcida que se possa sonhar. Era  uma  obra-prima  realmente,  esculpida  com verdade profunda  e inspiração  fogosa.  Sobre um  plano  inclinado, via-se um grande globo polido,  retido  a  meio caminho do declive. Sobre o globo, numa posição agilíssima e graciosa,  o funâmbulo, com os braços abertos, as pernas quase unidas, a face risonha,  juvenil e um pouco irônica, procurava conservar resolvido o seu problema de  equilíbrio pelo maior espaço de tempo possível: e toda aquela obra ressaltava  de vitalidade,  de arrojo e de elegância. Uma  lufada de gênio passara  por  ali.  Quase se esperava ver oscilar o globo, moverem-se os pés de Zampa, erguer- se um pouco o travessão de balança que ele fazia com os braços para deslocar  impercetivelmente  o centro de gravidade a  fim de o fazer subir  ou descer,  andar ou desandar, dentro da base de sustentação, e vir descendo, descendo  conforme quisesse, pelo declive geométrico e doce do plano oblíquo, sempre  sobre o seu globo humilde e no  meio das ovações  estrepitantes  de alguns  milhares de espectadores.  Era  Zampa  tornado  estátua;  as mesmas  soberbas  linhas, a mesma irrepreensível musculatura, perna firme, retesada e direita, de  uma  elegância  única,  os  fortes encontros,  a  larga  espádua de  herói,  de uma  curva severa, o braço sem grandes nós articulares, o pulso atlético, e ricamente  modelado,  um  peito leonino em que subiam ondulações  viris  de seios,  a  cabeça um primor de cinzel e um prodígio de distinção, alta, cabelos revoltos,  a  audácia  dominadora,  olhando em face  a  turba  pressuposta,  com o ar  superior de quem se faz admirar.

Era Zampa. Ninguém que o tivesse visto na arena podia desconhecê-lo.

Ao acabar o trabalho, quando numa contemplação palpitante ergueu os olhos  sobre a sua obra, o cinzel caiu-lhe das mãos e os soluços estrangularam-lhe a  voz.

Toda a sua alma estava ali, como talvez, nos primitivos dias do mundo, a alma  do bom Deus nos corpos dos primeiros homens criados. Nada fora omitido;  era ele, bem o estava vendo, risonho e vivo como outrora, os lábios quentes  de beijos e o  olhar cintilante  de raios. Bem o  estava  vendo!  Os dias que  mediavam entre a  morte e a  ressurreição  daquele homem  tinham-lhe  centuplicado  o amor,  tornando candente  o desejo,  e calcinado  as últimas  fibrilhas de receio. Era sua, era dele para sempre. Passariam diante de todo o  mundo, abstraídos um no outro, com o olhar errante nas estrelas.  

E de rastos no xadrez do atelier, cabelos soltos em espiras procelosas, o olhar  faiscante de loucura, seminua, agonizante, branca, cingia com os braços a sua  obra imortal, tentando aquecer com a lava dos seus beijos a gélida indiferença  do funâmbulo de mármore.

Enfim,  acharam-na  caída  aos pés  da  estátua,  abraçada  ao globo  como  a  serpente dos  retábulos da  Virgem,  um  sorriso divino de bacante  nos lábios  emudecidos. Morrera.

Uma palavra de confidência. Não procurem na sociedade a contessina: seria ridículo!  O  amor  moderno,  despido dos atavios românticos e  das  consagrações imortais, tornou-se, fora da família, o que é na ciência e referido  às outras espécies  animais:  a  excitação fatal,  regida  por  leis  fisiológicas,  que  atrai e  liga. dois seres  da  mesma  construtura  orgânica  e  da  mesma  conformação anatômica, posto que de sexo diferente. O mesmo que para os  cães, que para os elefantes, que para os peixes, que para as aves, que para os  insetos:  instinto,  exacerbado na  raça  humana  talvez,  pela  depuração do  sistema nervoso. Degradante porém neste caso, por improdutivo. Atualmente  há só duas mulheres, a da família: a mãe, a esposa, a filha; e a da viela. Esta  última, compreende-se, se chega a amar um funâmbulo, ama-o caninamente,  pela sensação que lhe arranca. Se o funâmbulo morre, esse amor despertado,  não transforma nunca acocotte numa artista, qualquer que seja o seu grau de  educação, de gosto e de talento.

Se quiserem ver passar por instantes a contessina, tal como a sonhamos, vão a  um  atelier onde  se curve um  escultor  sobre a  pedra  ou sobre o tronco,  ou  observem um poeta  que febrilmente escreve os alexandrinos do seu poema.  Em qualquer dos três, poeta, pintor ou escultor, pousou o beijo da contessina.  Não  é uma  mulher,  meus  caros,  mas o  sopro  abrasado que  passa  e se  extingue,  depois de haver criado  também  o seu funâmbulo de mármore.  Chama-se  a  Inspiração.  Devemos-lhe o machado  de sílex  e  o desenho  rudimentar gravado em certas cavernas sepulcrais; viveu já na cidade lacustre,  onde fazia colares de dentes de carnívoros para ornar o peito dos vencedores;  passados séculos ergueu a Acrópole grega, o Patéon e os circos; fez o Coliseu  e a Capela Sistina; tudo quanto é grande alevantou-o ela, amou os artistas da  Renascença, os  arquitetos  piedosos da  Meia  Idade,  levou às fogueiras os  apóstatas,  guiou Lutero,  descalço e faminto,  através  da  Alemanha,  impôs  Savonarola na Itália, e Cristo obedecera-lhe muito tempo antes. Na ciência, da  mesma forma que na religião e na arte, tudo lhe pertence e tudo lhe obedece;  foi amante de Arquimedes, de Newton,  Laplace,  Tyndall,  Cuvier e Owen, e  sempre a  mesma frescura  de tez e a  mesma suavidade de forma,  a  mesma  cintilação no olhar e o mesmo braço imortal e correto, que rasga no incógnito  um sulco palpitante e magnífico.   

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Fialho de Almeida - Contos (1881)

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